“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

PARIDADE


“Cuidados excessivos dela tornaram-se pesadas preces sobre meu corpo ainda em formação. Sua fé em mim não foi forte o suficiente para tornar-me sol dentro de seu próprio ventre. Minha mãe arruinou-se em mim desde o instante em que tentou negar-me a vida dentro dela – pesada decepção prematura...


Tal evento torna-se agora literatura barata como consolação... E nessas linhas sepulto de vez, o maior trauma desta minha vida terrena.” Após escrever a carta, Joannes lançou-a ao mar. As libélulas graciosas, ali esvoaçantes, carregaram o manuscrito até as mãos de Netuno Soberano. Ele, então, leu o triste pesar e apiedou-se de Cassandra Pedra, que presenciara tal horrendo ato cometido pela obscura mãe de Joannes – que tentou enterrar a filha antes mesmo da criança poder contemplar as estrelas virgens.

O rei dos mares transformou-se em brumas, indo sepultar-se aos pés de Cassandra Pedra, tornando-se garboso laguinho. Iniciou formosa conversa com a testemunha. Queria saber paradeiro de Joannes. A resposta foi imediata! “Joannes nascera Rei Feminino. Padeceria por esse motivo em terras duais. Sua essência aguda não teria paridade neste mundo de terra batida... ao menos que encontrasse sua Rainha Masculina. Mas isso seria difícil...”

“Mas não impossível...”, retrucou Netuno Soberano. “Quero ajudar Joannes a encontrar sua própria carta jogada ao mar”. O rei dos oceanos voltou ao fundo azul e chamou todos os peixes e viventes diversos das águas. Ordenou-lhes caçar o paradeiro da Rainha Masculina. Sob os olhos dos humanos, seria um “Homem”, e Rei Feminino seria uma “Mulher”. Quarenta e cinco anos passaram-se para um, e trinta e dois para a outra...

E num sopro de Júpiter, um dia Joannes esbarrou em Bordadus. Ambos eram míopes, tartarugas e hipopótamos... Como foi difícil olharem-se uma segunda vez! Contavam os deuses, que nesse dia (o do encontro), todos os anjos lançaram seus olhares sobre a Terra. E da mãe de Joannes, soube-se que caiu sua fertilidade desde o dia que pôs na boca saturado veneno para abreviar os (ainda) futuros dias de Joannes – sua mãe, terrível bruxa das trevas, nunca mais pôs os olhos na filha, agora cria do mundo.

Bordadus estava vencido! Sua auto-piedade afundava-o profundamente nos lagos da amargura. Achava ele que não havia mais nada além de seus solitários dias. Perdera as cores dos olhos e a vida transformara-se toda num enorme papel carbono. Para Joannes era o contrário.

O mundo era infinitamente colorido como a eterna coragem de viver intensamente veloz cada minuto de sua vida. Joannes – o Rei Feminino era sagaz! E Bordadus – a Rainha Masculina, sensivelmente machucada pelo Destino Pagão ao qual se entregara desde cedo... e agora sua redenção estava bem diante de seus olhos, e mesmo assim Bordadus não conseguia enxergar. Netuno Soberano irmanou-se com Júpiter, pedindo-lhe para que lançasse sobre os olhos de Bordadus a Luz da Visão. Ele viu por fim... empalideceu, emagreceu, enlouqueceu e morreu para renascer dentro de Joannes. E hoje em dia eles não são mais “eles”. Apenas são.


Katiuscia de Sá
01 de janeiro de 2008.

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