“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sexta-feira, 7 de maio de 2010

Espatódea


"Minha cor
Minha flor
Minha cara
Quarta estrela
Letras, três
Uma estrada


Não sei se o mundo é bom
Mas ele está melhor
Desde que você chegou
E perguntou:
Tem lugar pra mim?


Espatódea
Gineceu
Cor de pólen
Sol do dia
Nuvem branca
Sem sardas

Não sei o quanto o mundo é bom
Mas ele está melhor
Desde que você chegou
E explicou
O mundo pra mim
Não sei se esse mundo está são
Mas pro mundo que eu vim já não era...


Meu mundo não teria razão
Se não fosse
a Zoé
Espatódea
Gineceu
Cor de pólen
Sol do dia
Nuvem branca
Sem sardas

Não sei quanto o mundo é bom
Mas ele está melhor
Desde que você chegou
E explicou
O mundo pra mim..."


~Nando Reis~

segunda-feira, 3 de maio de 2010

7s#¬a@ho

Imagem: René Magritte


"Não entenderás meu dialeto
Nem compreenderás meus costumes
Mas ouvirei sempre as tuas canções
E todas as noites procurarás meu corpo

Terei as carícias de teus seios brancos
Iremos a miude ver o mar
Muito te beijarei

E não me amarás como estrangeiro"



(Max Martins)

MARFIM - gênero: conto

*escrito e dedicado para Cesário Augusto Pimentel de Alencar



"Macaléu-Camaleão" e "Vigiliana-Amaflor"
Desenhos/Criação: Katiuscia de Sá

(cap. 01)
O Nevoeiro

Como um pedaço de península, Macaléu-Camaleão transitava por entre as pessoas. Às vezes boiava nas ruas, flutuando em direção ao trabalho. Seu lazer ficava relegado freqüentemente às viagens mentais nos livros de toda espécie. Não encontrava eco entre os mortais e humanos. Metia-se nos escritos e atividades físicas, alcançando o equilíbrio necessário à sobrevivência básica de sua espécie.
Macaléu ignorava a presença dos seus espalhados pelo mundo. Nunca conhecera sua própria aparência. Não sabia de seus olhos de cometa. Não sabia de seu sorriso oceânico, sorriso que enchia todo ambiente em que se manifestasse. Não sabia de seu corpo – península de um mundo extinto, o qual navegava por aí sem que ninguém desse por falta.
Aos olhos dos normais, Camaleão era nada de pessoa ordinária. Tão comum que atingia o anonimato profundo como as ostras coloridas do negrume abissal, ou sereias envolvidas por algas invisíveis pela escuridão marítima – o que dava no mesmo.
Um dia, porém, Macaléu deparou-se com Vigiliana-Amaflor, figura estranhamente discreta, recoberta por um concretismo desconcertante. A moça vestia uma discrição tão fortemente talhada e matematicamente costurada ao corpo, que chamava atenção instantaneamente em qualquer lugar que estacionasse seu indivíduo peninsular.
Tão enfiada em seu próprio ser, ganhava dimensões extraordinárias. Escapava de si sem ter conhecimento disso. Atravessava as pessoas mexendo com o funcionamento delas. Era desligada das coisas, talvez por isso a moça frequentemente gerasse um pequeno redemoinho ao seu redor nos lugares por onde passava despercebida, atraindo a atenção inconsciente das pessoas.
Vigiliana absorvia tudo que via pela frente com uma rapidez paciente, oriental e milenar. Abstraia somente a alma das coisas, cuspindo fora o bagaço. Melancólica, vivia entre cadáveres envoltos numa realidade estragada, enrugada, desgastada e murcha. O exterior das cosias não a fascinava. Não havia cores no mundo, apenas sombras, mas Vigiliana tinha faróis nos olhos então, esquecia-se...
A jovem Amaflor cintilava por aí com a volaticidade do Éter. Ninguém conseguia realmente saber se era gente palpável ou apenas imaginação que escapava das mentes em idade ingênua.
O desconcertante era que ambas penínsulas infiltravam-se pelo mesmo caminho líquido, sem se darem conta da existência um do outro! Mas havia algo dentro deles que fazia buscarem-se mutuamente. Talvez fosse o grito tribal de seus antepassados. Macaléu-Camaleão e Vigiliana-Amaflor nunca mais foram os mesmos depois que se encontraram pela primeira vez sem se verem.
(...)
A pequena amanhecia e adormecia Macaléu... Havia uma ferida no lugar do coração de Camaleão que escoava seu sangue, emprestando cores ao que sobrou fora de Amaflor.
Um dia, contam..., que ambos passaram horas de frente um para o outro sem dizer uma só palavra. E através do magnetismo de suas penínsulas, causaram terremoto, assustando os humanos e mortais, os cadáveres de Amaflor ressurgiram com seus cabelos de palha e fogo e correram a se esconder na floresta de ferrugem. Foi ali que se ergueu feito muro, o primeiro povoado fora do centro das ilhas. Isso foi há muito, muito tempo. Eu ainda nem era nascida, mas foi depois desse terremoto que eu virei vulcão.
Por sua vez, Macaléu-Camaleão conseguiu desembainhar seus punhos do timão. Conquistou uma liberdade tão esperada, que quando esta lhe veio por merecimento cármico, o moço nem se dera conta. Foi aí que começou o descompasso... chegou-lhe nas mãos a escolha, esta que faz divisa entre a consciência e a fatalidade. Macaléu tinha uma em cada mão. Soltou ambas soalho abaixo e foi pisando no concretismo, ignorando o poder que a vida concedera-lhe.
Deitada sobre o chão, a escolha era um pequeno espelho de bolso. Amaflor distraída como sempre, tropeçou no artefato quando voltava para casa. Graças à natureza vaidosa que as espécies femininas – bem ou mal – carregam dentro de si, o espelhinho foi juntado pelas mãos da moça-éter.
Ao chegar o tempo necessário ao conhecimento dos fatos, Vigiliana foi olhar-se naquele objetinho. Era difícil ver-se, reconhecer-se naquele pedaço de vidro. Amaflor estava machucada. Era ainda tão moça e já recoberta pelas chagas do tempo; suas cicatrizes umbilicais estavam lá como troféus de pescaria.
Nesse mesmo instante Macaléu pairava sonâmbulo em ressurreição assistida; seu sangue e o de Amaflor misturavam-se inconscientes no paralelo invisível. Os líquidos viraram adubos coagulados tão férteis, que mesmo sem se conhecerem Macaléu e Vigiliana começaram a nascer um do outro.
No dia seguinte, tanto Amaflor quanto Camaleão não sabiam o que fazer com as flores iniciais. Tentavam em vão manter-se encaixados em suas rotinas cotidianas. Por causa do perfume que exalavam, arrastavam atrás de si, comboios de borboletas, beija-flores, formigas e besouros. Aí o anonimato ordinário de Macaléu caiu por terra... e a extraordinária discrição matemática de Amaflor, por água abaixo...
(...)
Vigiliana fora amaldiçoada para todo sempre a abrigar uma mente infinita e stricto sensu dentro de si para sobreviver verso ao avesso por entre os cadáveres que coexistiam no mundo de fora. Resignada, sofria em silêncio e inconsciente. As carnes e nervos de seu cérebro eram insuficientes para acolher aquele infinito de alma pensante, daí seu rosto de desdém e desligamento das coisas.
Quando parava de navegar e se concentrava em algo, era como se regredisse tudo para dentro de si, e após tamanho esforço colossal, aumentasse sua distração ao exterior – era quando sua feição adquiria a miragem de arrogância, enganando os sentidos dos forasteiros que a julgavam fria, antipática e orgulhosa, quando na verdade, Amaflor no alto de sua idade adulta, não passava de uma criança descobrindo o mundo através de seu coração ingênuo e desprotegido por entre suas mãos.
Após a menina conhecer Macaléu (sem tê-lo visto ainda...), absorvera dele todos os anos de dor, sofrimento e solidão que fossificaram seu corpo de península. Sem mais nem menos anoiteceu nela uma tristeza do tamanho do mundo secreto. Seus olhos doíam as lagrimas que Camaleão vertera anos a fio.
Por mais que se enterrasse em seus estudos, afazeres e algum lazer frívolo, havia algo em Macaléu que o devastava de uma saudade avassaladora e inesgotável. Durante anos, ele chorou dolorosamente, querendo abraçar algo que não compreendia o que poderia ser. Até que um dia suas águas secaram, permanecendo apenas a vontade de chorar. Seu rosto petrificou-se. Seu sorriso endureceu. Os cometas de seus olhos perderam o fogo.
Amaflor absorveu, como um filtro, os cataclismos psicológicos que atormentavam o inconsciente do rapaz-peninsular. A pequena sofreu em meses a vida inteira de desamparo, desespero e solidão que dormiam no interior de Camaleão. Como degraus de uma escadaria, a menina-éter descera até às urnas crematórias dele, tocou suas cinzas, calçando o chão secular de Macaléu com o único fertilizante capaz de curar o que já fora desenganado – ela concedeu-lhe o Amor. Um Amor tão escondido e mágico, que até Vigiliana tentou fugir pensando que fosse praga...
Diante dos comboios de borboletas, beija-flores, formigas e besouros, ambos foram obrigados a se abrir. Para Macaléu-Camaleão a resistência era maior, seus incontáveis traumas-terremotos embruteceram seu perespírito de tal maneira que este parecia um magma.
Amaflor sempre fora argila com água, era quase líquida. Vez por outra evaporava e voltava nuvens de açúcar e sal que a remodelavam novamente. Camaleão, porém, abraçou o umbral. Seu rosto alto e duro registrava em delicados desenhos o assombro da mais terrível e temível de todas as guerras: a que travava consigo próprio.
Entretanto, o rapaz-peninsular não podia concorrer com aqueles comboios de borboletas, beija-flores, formigas e besouros a lhe seguir. Certa vez uma formiga carecia de açúcar. “Não tenho. Vá embora!”, rosnou Macaléu à pobrezinha. E reparando naquele insetinho magro, cujas peles finas e descobertas eram quase incapazes de suportar maiores esforços do que a sobrevivência num mundo de gigantes, Camaleão soltou uma lágrima àquela constatação. Foi o suficiente para nutrir a formiga com o açúcar necessário, pois sua lágrima era doce.
Mesmo com todas as experiências de vida, Camaleão permanecia no próprio lugar – a mente de Vigiliana. Ela distraída, e ele descrente do acaso das coisas. Embora passando horas na frente setentrional dos olhos de Amaflor, ele não acreditava que o que seus cometas em cinzas sugavam da realidade era seu próprio reflexo naquele espelhinho de bolso em que Amaflor olhara suas chagas.
Ao contraste do espelhinho, Vigiliana dormia a cabeça nos livros, avançava até sua velhice quando ainda não atinava o mundo, época em que seus avós lhe seguravam as mãos. Nesses anos idos, Amaflor não atravessava as pessoas, estas eram apenas nevoeiro. Foi somente após seus avós afundarem ilhas para nutrir a população marinha, que a menina começou a penetrar nas coisas. A cada ano que passava ela se aproximava mais e mais de sua Infância. Foi num desses dias de ontem que ela compreendera que “Deus” era uma criança, não um velho como acreditavam os cadáveres. Todavia, Vigiliana calou-se, dissimulando aquela constatação... adormecia sua cabeça nos livros.
Ao ressonar, brincava os tempos em que o céu era uma pele negra cravada de sinais pelo corpo. Uma vez Amaflor queria porque queria um sinal de beleza entre sua boca e nariz. Desejou tanto, mas tanto... que apareceram “As Três Marias” em sua face. E aí desandou... Estavam “As Três Marias” em seu ombro esquerdo, “Três Marias” em suas nádegas, “Três Marias” em sua coxa traseira... “Três Marias” no ate-braço direito, “Três Marias” em seu Plexo Solar. Desde então, ela aprendera a ter cuidado com seus desejos.
E quando Vigiliana acordava, a dor de seu escondido Amor-fertilizante, demolia pacientemente cada pastilha que bordava o muro-fortaleza que prendia o coração de Macaléu. Mas o coração de uma península nunca está no corpo, está na mente... e a mente de Camaleão estava em Amaflor. E num comum acordo, os dois corações resolveram se apaixonar, imaginem! Danem-se as penínsulas...
A ciência pragmática do rapaz desesperava-se sem saber lidar com a assombrosa e sufocante simplicidade exata que a mente de Amaflor concebia às coisas. Sua calma em assimilar rapidamente tudo que via pela frente, exasperava o moço, desorientava-o, amedrontava-o a ponto de querer fugir de si mesmo.
Ela mal falava, e quando falava, soltava cada pérola... suas palavras eram de uma transparência absurda. O raciocínio de Camaleão apavorava-se. Ele sempre fora cientificamente metódico, dava a volta ao mundo antes de tomar qualquer decisão ou assimilar algo diverso. Macaléu tinha um temperamento argonauta açucarado num sentimento cristalino de mel, incapaz de compreender tamanha sinceridade a queima roupa que Amaflor profetizava à boca aberta.
O coração da menina-éter compreendia isso e em meio a lágrimas, sufocamentos e abandono de si mesma aprendeu com as viúvas-aranhas a tecer uma paciência delicada, pegajosa e resistente para poder desenvolver uma comunicação tão abstrata a ponto de penetrar o magma que envolvia o coração de Macaléu. E acreditem, esse exercício valeu a existência de seus descendentes. Hoje os filhos de penínsulas flutuam por entre as gentes.
(...)
Os mais antigos dizem que foi numa torção de terra que Macaléu e Vigiliana arribaram um ao lado do outro, e após exatos dois anos servindo de portos, por capricho das águas que inventaram de fazer o caminho oposto à vazante, pela primeira vez se olharam de frente. Como tracajás ao banho de sol, ficaram assim numa lentidão tão lenta que o céu de pele negra quis ser chão e deitou-se como terra firme, barrancos e planaltos. Algumas estrelas caíram e transitaram desconhecidas por entre os cadáveres de Amaflor. Elas seriam as gentes de mesma raça e nacionalidade, incapazes, porém, de se reconhecerem devido o mundo não lhes permitir o acesso imediato ao ato de viver.
Essas gentes não se reconheciam devido à espessa neblina que cortinava a imitação das coisas, cujos cadáveres acreditavam ser a realidade. As estrelas cadentes, no amparo do firmamento, permaneciam protegidas pela grande pele negra. No sideral espaço suspenso mantinham o brilho de uma alteza imóvel – eram todos reis e rainhas, comportavam-se tal bibelôs de louça crochetados em estantes centenárias de casarões coloniais.
Não funcionavam no chão. Suas realezas sobrenaturais foram engolidas pela miséria de espírito dos cadáveres inumanos! Algumas dessas gentes refugiaram-se ao interior das terras, indo morar na barriga dos desertos, nas cabeças das florestas, nas ilhargas dos rios. Ornamentavam-se com as sombras de suas nobrezas – uma lembrança vaga e distante anos luz do que foram um dia.
Mantinham uma rotina tribal. As peles perfuradas por ossos animais e cascalhos polidos, harmonizavam-se perfeitamente com as pinturas corporais de vida ancestral. As fêmeas, (perversamente belas com seus penteados nus e altivos de pedrarias com ouro), suspendiam aos céus, uns olhares inquebrantáveis, quando as civilizações brancas chegaram para cortar-lhes os pescoços e violarem seus corpos perturbadoramente inocentes. Foi uma época bastante triste, o solo-térreo fora mergulhado em sangue e dor... engrossando o nevoeiro da intolerância.
Ao longo dos tempos, pouco dessas gentes restou. Hoje alguns desses espectros vivem nas entranhas das selvas amazônicas, lembrando comunidades ribeirinhas, sobrevivendo desconhecidamente longe das cidades grandes. As histórias acerca desses lendários povos distantes semeiam uma cultura que resistiu ao tempo, e pela força da oralidade, hoje são entidades!



(cap. 02)
O Sonho

Os dois tracajás continuavam no exercício imóvel de banho de sol, até que Macaléu começou a sentir algo que o soltou de si. Reconheceu na outra península um sentimento capaz de transformá-lo numa rotunda serpente enrijecida. Sua cabeça inchada e voraz possuía olhos de cio...
O rapaz vasculhava em Vigiliana algum caminho possível para deslizar seu corpo inteiro, agora circunferência carnal quase obscena. Na moça-peninsular encontrou pequeno ninho virginal, organizado como se aguardasse apenas por Camaleão, agora serpente.
Ele deslizava suavemente dentro desse ventre imaginário que Amaflor aquecia em febres de desejo. Macaléu ia e vinha vagarosamente, causando um atrito delirante de prazer indizível dentro de ambos. Em contrapartida, Vigiliana concedia à cobra negra e descomunal, duas frutas agridoces. Macaléu, em serpente, sugava o néctar com uma virilidade insaciável. As bocas de ambos enroscaram-se línguas cheias de mel um do outro...
Macaléu ia e vinha, ia e vinha... até que gozou no ninho um jato de felicidade ardente. Vigiliana chorava e sorria com aquela brutalidade maravilhosa em carícias. Seu pequeno corpo estremecia e apertava a serpente como se a quisesse sempre dentro de si, até que o abrigo inundou-se de uma grossa camada viscosa capaz de acalmar a febre da moça.
Camaleão abriu os olhos, com o corpo em quebrantos pelo que havia acontecido sem acontecer. Havia nele uma inquietude sem precedentes. Lembrava-se apenas de uns olhos de faróis. “mas ninguém possui olhos tão profundos assim...”, pensava. Amaflor os possuía, mas como estava sempre dentro de si, raramente brilhava-os em direção ao nevoeiro.
Ela conhecia os cadáveres indignos de sua humanidade já desumanizada. Vigiliana nem era mais gente, era prisioneira livre dentro de seu próprio mundo. Vinha por aqui vez por outra, tempo suficiente para absorver a alma das coisas e cuspir fora o bagaço. Esse era seu fardo: fertilizar o mundo com um adubo dolorido por uma transformação sobrenatural.
Um tempo atrás, contavam que esta península solitária fizera-se floresta – chão para o menino do mato de pés voltados para trás poder pisar. Com ele Vigiliana brincava os segredos-verdes. Sua tataravô – legitima pajé de uma tribo – ensinava-lhe desenhos, porções, ervas, cânticos e rezas fenomenais capazes de apavorar os demônios.
Amaflor era um solo de fogo azul repleto de movediças armadilhas que a conservaram intacta! Virgem em pensamentos até hoje – um terreno puro para Camaleão viver a salvo.
A tataravó tribal de Vigiliana disse que ela e Macaléu já se conheciam há muitos e muitos sóis. Estiveram árabes nas areias amarelas e ferozes do deserto. Foram coqueiros em oásis a abrigar forasteiros em camelos. Já brincaram golfinhos com Netuno, avô da sereia Iara, que hoje mora na Amazônia.
Vigiliana-Amaflor e Macaléu-Camaleão eram penínsulas antigas, tinham quase a idade do mundo, carregavam muitas vagas e histórias em suas cicatrizes adormecidas. Mas um dia teriam que aportar: teriam irremediavelmente a felicidade de encontrar o Amor.
Macaléu, embrutecido pelo sentimento de não sentir, aborrecia-se com aquele comboio de borboletas, beija-flores, formigas e besouros a lhe perseguir, não lembrava do sonho que tivera com Vigiliana, mas lembrava do incrível Amor que o envolvia sem saber do que se tratava. Inquietava-se...
Ele agora estremecia a leve hipótese de entregar-se a uma paixão. Em outros tempos Macaléu-Camaleão fora desenganado por uma estrada de equívocos, um caminho traçado pelo rastro de uma mulher do passado. Estava traumatizado e desacreditado do amor.
Camaleão Ignorava que Vigiliana fosse transparente, feita de pensamentos exatos, e que seu Amor era matemática de Belas Artes. A primeira chave que o comportamento dela daria ao rapaz-peninsular, seria o respeito ao que ele escolhesse, mas o moço nem sabia que possuía tal privilégio.
O passar dos dias o aborrecia. Para escapar daquela inquietação inventou um passeio à casa de um amigo, indo parar na esquina da Rua do Intervalo. Camaleão perdera-se, como sempre... “irei chegar atrasado...”, pensava, ajeitando os óculos em cima das narinas ofegantes. Devido ao entardecer dos acontecimentos, a estreita rua afundava-se em pontos escuros, e Macaléu que já não enxergava direito, achou que aquela era a rua do endereço amigo. Avistou a casa 47-B. “É aqui sim!”, confirmou de si para si, já que a viela estava vazia de mais alguém. “Vou bater...”. Não ouviu sinal de vida. “Ôh, de casa!”, insistia.
A maçaneta de leão-machado contendo um trocinho de bater na porta virou-se em seu eixo. A tábua grossa rangeu os dentes ao convidado: “nhéééém...”. Uma menina pretinha de olhos brancos com um pontinho de esmeralda dentro, apareceu quase como um espectro fantástico. “Acho que a vovó está esperando o senhor”, sussurrou docemente a voz infantil e meiga daquele rosto sem sentimentos. “Entre e sente. Vou chamá-la...”, enfiou-se corredor de madeira adentro, a passos de carreira.
“Será que é mesmo aqui que eu deveria estar?”, estranhava o moço-peninsular. “Será que me enganei de endereço?”, Macaléu examinava as tábuas caprichosamente enceradas que emprestavam um tom avermelhado ao soalho. Acanhadas aos cantos da sala, as paredes de madeira-crua macheada confeitavam ao ambiente algo natural que só era quebrado pelas luminárias azuis. Umas grandes lâmpadas redondas e azuis faziam parecer que a sala-de-estar era um mundo submarino. O ar rarefeito ficava lento dentro daquele cômodo. “Mas não é Natal ainda... Por que será que usam lâmpada colorida nessa casa?”, Macaléu tentava solucionar o fato.
As órbitas curiosas dele examinavam tudo! As estantes negro-cedro pesavam suas prateleiras com delicados paninhos de croché e outros panos meticulosamente bordadinhos. Em cima destes, um monte de retratos de família. Retratos outros acamaradavam amizade às paredes. O fascínio era tanto que Macaléu teve o ímpeto de levantar-se do assento estofado-rubro. Fora contemplar de perto um retrato que parecia ser o mais antigo daquela coleção.
A moldura oval com as cores descascadas colocava a salvo a foto de um casal de velhos. Pareciam dois bonecos de cera. Pelo terno azul-bebê dele, e pelo vestido branco com broche madrepérola dela, talvez fossem gente em meados de 1929. Ela, uma senhora de faces duras, provavelmente a governanta da própria casa. Suas mãos fortes e alinhadas ao encosto da cadeira onde o homem prostrava-se sentado, acusavam ser eles os patriarcas de uma família de pelo menos doze filhos: onze varões e uma menina-moça.
As maçãs do rosto ósseo e fino esculpiam um semblante senhoril ao homem velho. As linhas e vincos profundos de sua face revelavam a dureza e dignidade com que sustentara sua família. Seus grandes olhos profundos e enigmaticamente úmidos e solares lembravam os grandes olhos que Macaléu sonhara dias atrás. “A vovó pediu pra o senhor subir ao quarto dela porque ela está meio ruim das pernas e não pode descer as escadas...”, parecia que a voz metralhada da criança pretinha trouxera Camaleão de volta de um túnel. E ao se despedir do casal de velhos da foto carcomida, notou que eles sorriam.
Às paredes esquerdas daquele comprido corredor continuava o festival de retratos dependurados. E a cada intervalo de dez tábuas, saltavam janelas abertas na parede direita de quem se enfiava residência adentro. Em todas as janelas abertas uns vasinhos contendo plantas diversas domesticavam as batentes. Já era noite lá fora. E a casa inteira pareceu adormecer em ares frientos. Às vezes morcegos precipitavam-se para dentro, repelindo-se imediatamente devido à luz amarela que esquentava aquele corredor de vida artificial.
Ao chegar ao andar de cima, Macaléu-Camaleão assustou-se com os grandes tapetes de pano a cada pé-de-porta dos quartos. Notava-se que ali morava gente de muito capricho. As paredes do andar superior eram nuas, retornando a sobriedade dos pensamentos. Eram tábuas cruas também, porém sem janelas a revelar.
No último quarto estava uma senhora sentada à cama. A luminária do ambiente era cor de outono. O cômodo quente e oprimido por um guarda-roupa simples, dividia espaço com uma cômoda compacta sem nada em cima, e um criado-mudo comportado, o que lhe permitia a regalia de ter sobre si um paninho de croché. A colcha da cama também era tecida, mas de fio grosso. Tudo dava a impressão de que o ar ficava sempre parado naquele lugar. Nada se movimentava. Os ponteiros do relógio fizeram-se assombrosos como aspectos de museu.
Os ossos sobrepostos de peles morenas de maracujá moviam-se lentamente, buscando segurar algo no espaço. “Traga-o aqui perto...”, abanavam as mãos trêmulas à menina pretinha que poderia estar a qualquer canto do quarto, que mesmo assim seria ignorada pela senhora. “Aqui está ele, vovó...”, empurrava as mãozinhas nas costas de Camaleão em direção à senhora de pedra-pome.
Ela o apalpava os braços e o rosto, precisando seu semblante. “É bonito...”, confirmava a velha aos seus sentidos. Os olhos da senhora de pedra-pome já não tinham mais o lume. O vapor do tempo levou embora a visão dela deixando-lhe apenas a vontade de viver no escuro.
(...)
Após o acidental passeio que culminara numa estranha visita equivocada, Macaléu resolvera lembrar de onde conhecia aqueles olhos de faróis. “Eu sei que já os vi antes...”, tentava recordar. Todas as noites Macaléu punha-se emborcado tentando resgatar seu hábito de dormir, mas impacientava-se demais a ponto de perder o sono.
As pequenas e ágeis perninhas do tempo escorriam como uma centopéia adulta, cuja amargura não poupava nem os arruinados cadáveres de Amaflor. Pela mudança da estação, as localidades afogavam-se em bicas, sufocadas pelos vapores quentes dos dias. Macaléu trocara seu terno e gravata de aborrecimentos por uns chinelos de consumição, e na cabeça sustentava agora um chapéu de melancolia, nos pensamentos a eterna lembrança que atormentava seu músculo viril. Tudo fruto do sonho perturbador e extasiante – amor das mentes desgarradas dos dois corpos peninsulares.
O sentimento constante coloria outra atmosfera em redor de Camaleão, ele vivia as voltas de um tempo-particular mais lento, mais fino, mais leve, mais tudo... às vezes petrificava seus olhos numa miragem infinita e inexistente, perdido de que estava aqui. Na verdade ele estava na mente de Vigiliana o tempo todo...
No trabalho, o rapaz deslocava-se em risos. Quase ninguém compreendia seu comportamento, posto que suas terras faziam-se areia movediça, em contraste com as borboletas que fluíam docemente de sua alegria arco-íris. A primeira a perceber a mudança no rapaz foi Archiri-Jezebeth.
Archiri há muito tempo espreitava Camaleão. Perseguia-o com seus olhos de jumento. Encurralava-o à quina das situações, envolvendo-o com sua conversa dissimulada. A mulher-medusa se esgueirava feito uma salamandra atrás dele, tentando aprisionar Macaléu com sua lábia pegajosa.
Jezebeth já tinha seu arado, porém, ao perceber que outra fêmea cedia delicadamente suas sementes de alfazema a fertilizar os poros do rapaz-peninsular, movida por um apodrecido sentimento de inveja que acordou em seu finado coração putrefato, ela se fizera empecilho ao encontro das duas penínsulas.
A mulher com ancas de cimento, despejava sobre Macaléu um arsenal de sorrisos e conversas falsas, venenos que escorriam pelos lábios cavalares que forçava nas situações com ele. Jezebeth passou a cavalgar equilibrada nuns tamancos de tridentes vermelhos. Toda sua roupa era agora vermelha, como as carnes-vivas de incêndio. Doía a Alma de Amaflor presenciar tal coisa através das retinas invisíveis.
Quanto mais Archiri-Jezebeth punha-se enfeitada em panos, mais seu corpo de fumaça deformava-se demônio pavoroso. Quanto mais ela pintava o rosto de sangue para achar-se bela aos olhos de Macaléu, mais seus vincos embruteciam-se pela antipatia e despeito pelo amor puro que vingou entre Vigiliana e Camaleão.
O incomodo foi tanto que fez despregar-se do limbo a real natureza de Jezebeth – ela tinha a alma corrompida de um nosferatus. Por conta dessa travessia de rancores dissimulados, a atmosfera ao redor dela afundara-se num poço mentiroso e negro, de onde se ouviam gritos de terror! A criatura que demorasse estar perto dela amufinava-se; até os outros cadáveres enfraqueciam, e as penínsulas que dela se acercavam por força dos afazeres cotidianos, sentiam-se infelizes.
Vigiliana percebia esse mal estar de erva daninha, presságios que a forçava ser ainda mais resistente, maior do que o tempo. Tinha de aumentar seu raio de Amor para nutrir o terreno de seu amado Camaleão. Amaflor fizera seu ímpeto, algo como um guerreiro de aço para poder aportar próximo a Macaléu através de um caminho natural. A mente de ambos trabalhava em conjunto tentando acertar os rios que suas próprias penínsulas deveriam navegar até formarem um único chão de terra.

No outro extremo dessa história, Vigiliana guardara o espelho – troféu esquecido por Macaléu. Ela, enquanto península ignorava quando, onde e como deveria entregar ao rapaz o artefato que era dele por direito. E quando apertou um nó na história, os pirarucus contam que Macaléu temia precipitar alguma investida em possível relacionamento com alguém – ferida-seqüela deixada pela mulher-castor que roera as bordas do coração do moço-peninsular tempos atrás deixando nele o verme da insegurança.
Amaflor – através de sua delicada, e não menos titânica paciência – aos poucos alargava sua alma, conseguindo aprender a linguagem abstrata das viúvas-aranhas na esperança de chegar raios de vida ao moço-peninsular para fazê-lo compreender (e acreditar!) na admiração sem precedentes que ela tinha por ele. Vigiliana amava-o tão insustentavelmente, que era quase uma lenda delirante e inconcebível o que sentia! Algo como o sumiço de um povo maravilhoso e inteligente que fora levado embora por extraterrestres!
Uma das conseqüências desse mágico amor veio como a materialização de uma cobra gigante que foi morar em uma cidade que tinha cheiro de manga, localizada próxima de umas ilhas de barro-marajoara. Dizem que o corpo desta serpente de olhos de lobo entrecorta o subterrâneo daquela cidade indo de uma igreja branca a outra igreja branca.
Na verdade naquele lugar existem três igrejas-irmãs, e são todas brancas! Numa delas moram um monte de santos coloridos; noutra mora uma santa azul; e na terceira vive uma santa-moreninha que adora passear por aí um mês inteiro todo santo ano.
No dia em que a tal cobra gigante se movera pela primeira vez, causou um tremor de terras; mas eu era vulcão pequenino em outro continente e não fiquei sabendo disso em maiores detalhes... Então voltemos à fantástica história de amor entre Camaleão e Vigiliana, que é o que as águas oceânicas deslizam folia por toda eternidade.
O engraçado era que ambos continuavam a passar um pelo outro em correntezas, e nunca se viam... O mundo físico estava a par daquele descompasso líquido, porém não tinha pernas nem braços nem voz para gritar aos dois que eles surgiram penínsulas apenas um para o outro. E o mundo invisível podia-lhes interferir aos ouvidos adormecidos somente algo arquivado que seria acessado por Vigiliana e Camaleão quando se dessem conta de que ainda estavam naquele eterno banho de sol como dois tracajás...
(...)

Jezebeth ficava cada vez mais em convulsões cerebrais de tanto ódio que sentia pelo fato de suas investidas não darem certo com Macaléu. Ele, deveras desestimulado àquela sensualidade inútil e vulgar que a mulher-navalha cortava a veias de sangue para tentar impressioná-lo. Não se conformando Archiri descarrilava frequentemente os dentes de suas faces medonhas na inútil vaidade de convencer Camaleão de que ela fosse naturalmente simpática... e para cada situação Archiri se utilizava de uma cara-de-coringa, entretanto, aqueles olhos de jumento denunciavam que Jezebeth era dissimulada e perigosa. Seu hálito venenoso perdia em potência apenas para um dragão da Indonésia!
A feiúra da moça não se denunciava pela sua aparência onitorrinca e sim na atitude traficante de querer roubar de alguém a possibilidade de ser feliz. E Vigiliana merecia ser feliz, não pela inalcançável torcida do leitor atento em favor dessa heroína de letras e argila, mas devido ao fato de Amaflor ter sido privada, desde criança, do adubo primordial ao crescimento sensível de qualquer vida orgânica e inorgânica. A menina-concreta sofrera de inanição emocional precoce devido à escassez de amor ao seu corpo físico. Foi tão profunda essa inanição, manifestando a moléstia quando ainda dormitava imóvel em barriga materna. Vigiliana já nascera enjeitada, foi expelida e violentamente abandonada para viver entre os cadáveres. Por conta dessa escassez de afeto, a pequena criatura teve que descobrir em si mesma um mundo, e uma força, e uma energia capazes de conceber algo de júbilo. Ainda bem que existiram os seus avós-ilhas que a ensinaram a usar o discernimento – única bússola capaz de assegurar-lhe a sobrevivência.
Amaflor continuava sua navegação. Era ótima capitã de si mesma. Jamais naufragara penínsulas alheias. Nunca cativou nativos e não obtivera tripulação. Chegou ao topo dos pódios tão cedo e secretamente. Não houve torcidas, nem público, nem testemunhas. Ganhou todos os troféus solitários e medalhas de incompreensão. Pela bravura em abrir clareiras nas selvas humanas recebera muitas menções honrosas de desesperos, abandonos, humilhações e prantos escondidos.
Vigiliana era um terreno fértil de possibilidades, sempre para os outros. Sua mente de horizonte estava tão à frente de seu tempo que para o que ela se preparava ainda nem existia. De tão sensibilizada, tornou-se embrutecida. Humanizou-se profundamente através de sua dor, que já aos sete anos de idade alcançara a desumanidade de si – tornou-se península de argila a navegar indiferente ao sol e à chuva.
Amaflor fizera-se bússola tão autômata que até no exercício de renovar suas vitaminas atmosféricas, absorvia a alma das coisas cuspindo fora o bagaço, entretanto houve um momento no breve encontro-tracajá de Macaléu e Vigiliana onde ambos libertaram uma lágrima em cada rosto. Em Macaléu, pelo fato dele ter lembrado e reconhecido àqueles olhos profundos. Em Vigiliana, pela emoção de desconectar-se daqueles anos de solidão.
No meio daquele turbilhão, Jezebeth reconhecia Vigiliana, sabia que vinham da moça-concreta as pequenas sementes de alfazema que restabeleciam Macaléu em península retumbante. A inveja que azedava o fígado de Archiri era a clarividência de sua incapacidade em conceber semelhante milagre. Se ela ao menos parasse de se ocupar da vida alheia e semeasse seu próprio terreno, também poderia executar tamanho prodígio. Todavia irmãs, como no eterno exercício humano de viver, é mais fácil demolir do que edificar, a mulher-onitorrinca preferia permanecer abissal...




(cap. 03)
As Cartas
Passados os dias Camaleão estivera suspenso. Aquela inquietação em seu músculo viril cedera lugar a uma apática nostalgia. Seu corpo de península celebrava a conquista de reconhecer os olhos de Amaflor. A sutileza interna do moço equiparava-se à de Vigiliana. Foi uma costura adequada dos acontecimentos porque os cadáveres da moça enterraram-se sozinhos e a interferência de Jezebeth cessara, pois suas caras-de-coringa foram inutilizadas por Camaleão que tratou de cortar fora essas ervas dadinhas. No outro extremo Amaflor alastrava-se cada vez mais em alma, ultrapassou todos os mundos, motivada pelo amor imortal que devotava pelo rapaz.
Às vezes materializavam-se manuscritos enrolados em uma florzinha de origami que a própria Vigiliana acariciava às mãos de Macaléu. Outras vezes submergiam clarabóias através de vozes cotidianas chegando ao ouvido interno do rapaz, e mais recentemente, cartas-mágicas como uma peça teatral talvez dirigida pelo próprio Macaléu-Camaleão.
Todas as evidências possíveis (e impossíveis) estavam latentes para levantarem em Macaléu uma pequena tempestade de areia visando à uniformidade de suas dunas. Foi a partir daqui que Camaleão sentira falta do espelhinho de bolso... Quando fora a ultima vez que esteve com o artefato em mãos? “Acho que o deixei na casa de minha irmã...”, pensava. Como a hereditariedade é mais reveladora do que as lembranças, o rapaz investigou que não devia confiar naquela suspeita. Se Macaléu era avoado, sua irmã era mais ainda, nem sabia do que ele estivera falando...
Amaflor era prova redundante da sabedoria hereditária em manifestação na natureza. De seu avô herdara a capacidade sobrenatural de engolir os fatos e repeli-los em apavorantes descrições minuciosas. Sua avó deixara à menina o legado daquela matemática simplicidade e rapidez de uma comunicação oral lacônica, objetiva, sincera e sem cortes. De sua tataravó, a marca registrada e clarividente – os grandes olhos ciganos de um Xamã. Daqueles que a enjeitaram, ficou em Amaflor somente o exemplo do que ela não queria se tornar.
O caro leitor saiba que dessas características hereditárias estavam também na sacola umas pequenas esquisitices de família. Como uma das tias de Vigiliana que adornava as estantes e mesas da casa com belíssimos vasos de porcelana os quais tinham de tudo dentro de si, menos flores! Em cada vaso daqueles podia-se encontrar festivais de cotonetes usados; tesouras; números de telefones anotados em cantinhos de papel; chaves perdidas de variados tamanhos e funções; moedinhas; chumaços de algodão; arames enferrujados; contas a pagar; caderninhos de anotações; até grampo de cabelo dava alma aos vasilhames.
Uma outra tia de Amaflor era tão desligada da vida prática – em favor de sua própria expansão intelectual – esquecendo-se da manutenção básica da casa. Vez por outra havia algum legume brotando dentro da geladeira. Normalmente eram os pequenos galhos de cebola que gritavam primeiro, vindo logo em seguida os chifrinhos impacientes das batatas e cenouras a nascerem descaradamente nas prateleiras e gavetas do eletrodoméstico. Amaflor, criança sensibilizada ao ver aquele canteiro congelado, retirava as pequenas vidas em manifestação, assentado-os em algum pedaço de terra firme no quintal...
Outra parenta da menina-peninsular descobrira uma extraordinária utilidade para o único artefato de cozinha que possuía em casa. Numa velha panela de pressão adormecia de molho roupas de utilidade comum a espera de esticarem-se num varal improvisado.
Vigiliana não escapara a esses lapsos comportamentais. Após destruir várias roupas, desistira de usar o ferro de passar, porque sempre o esquecia a queimar os tecidos. Preferiu andar amassada a correr o risco de incendiar a casa por algum descuido.
Algumas primas de Amaflor também sofriam dessas pequenas alterações. Uma delas em idade escolar, por pura birra, decidira não levar nem cadernos nem canetas às aulas. Chegava ao recinto estudantil e sentava-se tal uma boneca de louça sem piscar, de frente à professora, e ao chegar a sua casa narrava à mãe tudo o que acontecera, com uma descrição mais verdadeira do que a própria realidade!
A própria Vigiliana tinha semelhantes esquisitices quando criança. Ás vezes num único dia balizava uns vinte desenhos de uma só vez, com traços leves, rápidos e precisos, para logo em seguida abandoná-los a um canto da casa. No final de uma semana o ambiente afogava-se mergulhado a uns oitenta ou cem desenhos que as mãozinhas nervosas da criança fazia, sendo que Amaflor não se contentava em utilizar uma só mão. Desenhava com as duas ao mesmo tempo! E quando a menina resolvia cantar... não havia ouvidos que chegasse. Os únicos a incentivar essas precoces excentricidades de Vigiliana eram seus avós de orelha-de-livro. E quando esses dois parentes-ilhas se afogaram, Amaflor se fizera península-jazigo para que ambos descansassem em paz, aconchegados e seguros no amor que ela os devotaria até o último momento de sua vida em navegação.

É válido confessar ao leitor, que mesmo com a jardinagem recortada de Camaleão às ervas dadinhas de Jezebeth, havia as infiltrações sinuosas de seu pseudo-amigo Grão-vizir Manipulador impregnando a mente de Macaléu. Manipulador era do tipo pegajoso e egoísta. Aproveitava-se da fragilidade distraída de Camaleão, não admitia que este respirasse por si, em detrimento às facilidades adquiridas através dessa amizade meticulosa e conveniente. Grão-vizir tratava de afastar toda possibilidade de Macaléu restabelecer sua autonomia em relação às suas decisões-concretas, desse modo era bem mais fácil usufruir das influências peninsulares...
Manipulador secretava uma amizade por interesses. Impostor de sentimentos, Grão-vizir desejava apenas de Macaléu as facilidades para chegar ao topo. Pouco importava a segurança emocional de Camaleão; pouco importava o restabelecimento da autoconfiança de Macaléu. Para Manipulador era melhor essa inconstância emocional do rapaz-peninsular, pois através de uns conselhinhos aqui; gargalhadas amarelas ali; palavras amilhoadas acolá..., Manipulador trazia na rédea curta Macaléu, que sem se dar conta fazia exatamente tudo que a mente astuta de Grão-vizir ordenava.
E este era o muro de hera mais perigoso e venenoso que Vigiliana teria de atravessar até poder abraçar delicadamente o coração-peninsular de Macaléu, rapaz que tanto ela amava.
A seu turno, Vigiliana esgotava-se frequentemente devido ter que alastrar cada vez mais sua alma em direção a Macaléu, deixando-lhe a abertura da escolha consciente respirar livremente à sua pele de areia. Em contrapartida, Grão-vizir sugava e assassinava da menina, aos barrancos setentrionais, toda e qualquer ajuda translúcida que ela devotava a Camaleão. Era uma luta sobrenatural altamente devastadora para a moça-peninsular. Ela ziguezagueava como bolinha na Roda-da-Fortuna – carta mais disputada no baralho cigano; carta-chave para todos os caminhos. Dessa abertura vinham todas as peças para trilhar seguramente os compromissos assumidos em vidas passadas, para que hoje todos os Dharmas fossem entregues aos legítimos donos. Macaléu e Vigiliana eram os únicos... Entretanto, por conta dos sortilégios, armadilhas argumentativas e interferências diretas de manipulador sempre ao lado de Macaléu, o rapaz-peninsular afundava-se na escuridão do esquecimento, dando as costas para Amaflor. Ela, com seu vestido bordado de diamantes-esperança, aguardava respeitosamente, indiferente ao sol e à chuva, o momento em que Camaleão se decidisse consciente de sua vontade ativa, aceitar o ramalhete de Dharmas, presente alcançado pelo esforço edificante proveniente apenas de escolhas responsáveis.
Mas pela ganância do espírito de Manipulador, que mantinha sobre seu olhar de chacal os passos de Camaleão, impedindo-lhe a aproximação de Vigiliana, tal momento adiava-se. Grão-vizir com o peso de suas mãos-de-cofre, mordia a liberdade de Macaléu com a força certeira e inarredável tal mandíbula de jabuti abocanhando alimento. Esse pseudo-amigo enfeitiçava Camaleão numa atmosfera argumentativa que apenas privilegiava os interesses dele próprio, Manipulador. A construção do cenário era tão fantástica, que Macaléu-Camaleão não se compreendia marionete controlado por Grão-vizir... mesmo a essa escuridão, Vigiliana respeitava as decisões do amor de sua vida, porque acreditava num relacionamento consciente. Essa era a liberdade que Camaleão não atinava... ao acostumar-se aprisionado às convenções, Macaléu não compreendia a manutenção de viver em liberdade. Embora Vigiliana estivesse sempre ao seu lado, como um anjo invisível, o mérito do amor é conseguido individualmente. Ela podia apenas oferecer-lhe as peças, para que sozinho, Camaleão decidisse o que fazer.

Tantas pistas, tantas cartas, tantos chamados... e o espelhinho a espera do reflexo. Lembro-me das circunstâncias em que Vigiliana juntara o artefato do chão. Aquele achado custou-lhe tanto, disseram-me...
O caríssimo leitor – sensível espectador desse romance psicológico, logo compreenderá qual é a diferença entre a morosidade de uma decisão a ser tomada e o medo consciente de torná-la concreta. O medo pode paralisar uma vida, cerrando uma porta que se abre para a felicidade...
Contaram-me que os olhares que se reconheceram pela primeira vez àquela rotina, foram os mesmos olhares que libertaram uma lágrima, porém, os envolvidos verteram líquido por motivos diferentes.
Os dois pares de olhos-tracajás ao banho de sol fixaram-se um no outro devido à violência com que tudo aconteceu! Vigiliana ao estabilizar seus passos, guiando graciosamente suas mãos para junto do artefato rolado no asfalto, descuidou-se de si, esquecida ao meio-fio – instante em que um automóvel atravessou-lhe o útero.
Com o artefato em mãos, Amaflor debulhou-se em vísceras a enfeitar de vermelho o chão. Macaléu, na outra ponta de esquina, assistia a tudo, paralisado no meio da rua, petrificado pelo reconhecimento tardio de que amava aquela moça concreta e desconcertante. Amava aquela moça que vestia uma discrição tão fortemente talhada e matematicamente costurada ao corpo, abotoada para dentro de si, e que se revelara tragicamente naquele momento imóvel de tracajá ao banho de sol.
Macaléu a amava...
Camaleão reconhecia Amaflor presente em todos os dias de sua rotina de trabalho. Vigiliana discreta... tão discreta confundindo-se com a própria imagem de Macaléu. Ela sempre estivera ali, ao alcance do rapaz, aguardando sua decisão em desposá-la definitivamente para sua vida.
Entretanto, no momento em que o rapaz-peninsular deixara escapar o espelhinho de bolso para as mãos da menina, soube então quanto tempo dispensara apenas fugindo e pensando... Desperdiçava-se também o sangue inocente e inestimável que corria para fora de Amaflor em busca de proteção por entre as calçadas.
Os olhos de Macaléu libertaram uma lágrima pelo tempo que se perdeu... E Vigiliana, liberou a sua, pela alegria de libertar-se daquela vida solitária ao qual Macaléu anulou-se por medo... ela nada pôde fazer.
Nunca sabemos quando o Verdadeiro Amor nos chegará. Quando ele chega, é sem avisos prévios, quando percebemos já estamos em meio a um turbilhão de emoções, e a decisão de viver esse Amor é a escolha individual e intransferível de cada um. Essa decisão pode ter como amigo ou inimigo, o tempo...
Amaflor morreu com seus grandes olhos abertos, absorvendo a alma das coisas, cuspindo fora o bagaço como era de costume. Sua última visão materializou-se nos olhos estáticos de Camaleão que se projetaram no reflexo do espelhinho de bolso, que Amaflor constatava estar incrustado num pedaço de marfim.

~FIM~

Autoria: Hellen Katiuscia de Sá
Finalizado em: 28/ 09/ 2009.
------------------------
*para saber mais: MARFIM - capítulo comentado:
http://hellenkatiuscia.blogspot.com.br/2012/07/marfim-conto-capitulo-comentado.html