“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

terça-feira, 19 de outubro de 2010

ÁGUAS CLARAS - radionovela


ÁGUAS CLARAS – rádionovela de um ato.
Autoria: Katiuscia de Sá – Belém, outubro de 2010.

Enredo: trágica história de amor entre Rogério Aluísio da Silva e Laura Custódio Damasceno. A história acontece no inverno de 1849, na fictícia região dos Lagos, Brasil.

PERSONAGENS:
CORONEL CUSTÓDIO DAMASCENO: viúvo; entre 58 a 60 anos; latifundiário/dono de enorme fazenda; possui inúmeros escravos, submisso às vontades de sua única filha Laura.

LAURA CUSTÓDIO DAMASCENO: jovem de 28 anos; única filha mulher do coronel Custódio. Solteira; geniosa; maléfica; tem profunda repulsa contra os negros da fazenda, sendo maligna com eles. Mas em se tratando de seu irmão caçula, parece existir sentimentos bons no coração da moça.
CARLOS CUSTÓDIO DAMASCENO: jovem de 21 anos; filho mais velho (dos homens) de coronel Custódio. Charmoso; de muita lábia e poder de persuasão.
JOÃO HENRIQUE CUSTÓDIO DAMASCENO: jovem de 17 anos; filho caçula do coronel Damasceno. Rapaz franzino; é doente mental em pequeno grau, seqüela devido a uma meningite contraída na infância.
Getúlio Müller: amigo de Carlos; tem 22 anos. Rapaz bastante espirituoso, às vezes safado.
Rogério Aluísio da Silva: altivo e inteligente. Mulato alforriado ainda quando criança. Fora criado pelo padrinho e protetor (na realidade seu pai bastardo). Possuía posses herdadas após a morte de seu protetor.
MARIA MARIANA: aia de companhia – negra, escrava da casa grande, de aproximadamente 27 anos (durante toda sua vida e desde criança foi a dama de companhia de Sinhazinha Laura, brincando com ela no período de infância e em fase adulta é quem cuida da toalete e afazeres pessoais de Laura).
PRETA DOMINGAS: escrava; cozinheira da casa grande, de aproximadamente 57 a 60 anos. Negra grande e forte. Conhecedora de toda história e segredos da família Damasceno

:: INÍCIO ::
Ouvem-se barulho de gato pulando sobre os móveis, em seguida, ouve-se um choro desesperado de nenê... e passos apressados no soalho. Um alvoroço.
MARIA MARIANA (voz infantil): foi o gato Iaiá... ele fugiu pela janela... (o choro de criança continua ao fundo).
PRETA DOMINGAS: todo dia é essa desgraceira! Deixa disso, João Henrique. O gatinho volta... vem aqui com a Preta... não chora... shhhh, shhhh. (aos poucos o choro do nenê vai se acalmando. Ouvem-se passos apressados no soalho)
LAURA (voz infantil): quantas vezes eu disse para passarem pano nos móveis, heim! Olha a água do meu aquário! Ta imunda! Já trocaram esta água hoje?!
(ouvem-se passos correndo)
LAURA (voz infantil): volta aqui Maria Mariana... venha trocar a água do meu peixinho...
(ouvem-se passos correndo)
>>música indicando passagem de tempo.
PRETA DOMINGAS: oh, meu menino... vós mêce inda lembra disso? Mas faz tanto tempo... vós mêce inda tava embrulhado nos cueiros...
JOÃO HENRIQUE (voz infantilizada): mas eu lembro vó preta!
PRETA DOMINGAS: ah, meu fio... tua vó preta vai senti muita farta doce, mas vós mêce sabe que é pra teu bem ir simbora pra capitar, sê cuidado pelos médicos...
JOÃO HENRIQUE: mas eu não quero ir, vó preta. Queria ficar aqui com a senhora, com o pai e meus irmãos... e também com meu gatinho, que um dia vai voltar... sei que vai voltar.
PRETA DOMINGAS: ora menino! Esse gato já se foi há muito tempo! Vós mêce já tem 17 anos, meu fio! Aquilo aconteceu quando ocê tinha cinco...
JOÃO HENRIQUE: mas ele vai voltar...
(vem chegando coronel Custódio e Laura)
CORONEL CUSTÓDIO: vamos meu filho! Está na hora, Laurinha já terminou suas malas. O coche já está esperando.
JOÃO HENRIQUE (contrariado): sim meu pai.
LAURA: ora... venha cá, “Riquinho”... eu irei visitar você todos os finais de semana. Não fique assim. Além do mais, são apenas três meses. Logo, logo você estará de volta. Não é papai?!
CORONEL CUSTÓDIO: sim, sim... Domingas, avise o cocheiro para vir pegar as malas.
PRETA DOMINGAS: sim, siô.
LAURA: eu amo muito você, viu “Riquinho”. Tenho certeza que o papai está fazendo o melhor para você. Não chore... você não é mais criança! Já está rapaz... não chore. Senão eu também irei...
JOÃO HENRIQUE: Laurinha, você toma conta do meu gato, quando ele voltar?
LAURA (apreensiva): sim, meu irmão, eu tomo conta dele até você voltar... agora vamos. Indo agora de manhã papai e eu já estaremos de volta à tardinha. Vamos...
PRETA DOMINGAS: siô coronel, o rapaz já levô as mala pro coche.
(ouvem-se passos)
PRETA DOMINGAS: Mariana, as vez eu óio pra esse rapazinho, e nem acredito no milagre que se deu, dele ter vivido àquela terrível meningite, de quando ele tinha seis anos!
MARIA MARIANA: é... mas Deus quis que ele ficasse pra sempre criança, não é vó preta?!
PRETA DOMINGAS: mió assim! Pelo menos ele não cresceu e ficô como os irmão... meu menino Henrique é o único que tem a alma pura nessa família...
>>música indicando passagem de tempo
(risadas espirituosas e passos se aproximam).
CARLOS: ora, viva! Minha irmã! Cheguei hoje pela manhã na cidade e acreditas que só agora consegui uma condução para cá?! Venha cá, Laurinha, dê-me um abraço!
LAURA: quem são aqueles ali, Carlos?!
CARLOS: ah, sim... trouxe meus amigos para conhecerem a fazenda e passarem as férias de verão conosco aqui, até retornarmos aos nossos estudos. Nem acredito que só falta mais um ano e pronto, papai ganhará um advogado na família! Não é maravilhoso, Laurinha!
LAURA: você deveria nos consultar, antes de trazer essa gente para cá, meu irmão...
CARLOS: “essa gente”? Que modos são esses, Laurinha? “essa gente” a qual você se refere, faz parte de meu mais seleto grupo de amigos... veja lá como você fala, heim! Não vá me envergonhar diante de meus companheiros!
(passos se aproximando)
GETÚLIO MÜLLER: não nos apresenta, Carlos?
CARLOS (sorridente): ah, sim... essa aqui é minha irmã: Laura.
GETÚLIO MÜLLER: encantado, senhorita.
CARLOS: e esse aqui Laurinha, é o Rogério Aluísio.
ROGÉRIO: como está, senhora?!
(respiração ofegante de Laura)
ROGÉRIO: a senhora está passando bem?
(logo em seguida ouvimos passos apressados)
ROGÉRIO: Carlos, sua irmã está bem? Porque ela ignorou-me desse modo. Ficou pálida de repente...
GETÚLIO MÜLLER (galhofando): vai ver ela não está acostumada a ver rapazes da cidade... fica só enfurnada nessa fazenda... ei Carlos, sua irmã já conseguiu um pretendente?
CARLOS: ei... Laura é minha irmã. Não brinque assim!
( passos apressados e bater de porta)
MARIA MARIANA: credo, sinhá! Que a sinhora tem? Parece que viu um fantasma!
(ouve-se apenas a respiração ofegante de Laura)
MARIA MARIANA: sente-se aqui. Deixe eu desapertar seu vestido... a sinhora respira com dificuldades... se continuar desse modo, vai desmaiar!
LAURA: foi o Carlos... trouxe gente desconhecida para a fazenda! Ele sabe perfeitamente que não gosto dessas suas companhias! Aborrece-me!
MARIA MARIANA: pronto, sinhá. Assim a sinhora recupera logo a cor.
>>música indicando passagem de tempo
(Almoço – risadas, burburinho paralelo, sons de talheres)
CORONEL CUSTÓDIO: então meu filho, conte-me sobre a capital!
CARLOS: sim, papai! A capital está crescendo e progredindo com a venda do cacau. Estão investindo em saneamento, agora! A cidade da Guanabara está uma riqueza. Trouxeram arquitetos ingleses para reformar a avenida principal e dar aspectos europeus por aqui!
GETÚLIO MÜLLER: finalmente! Já era hora... e com os progressos vêm as maravilhosas inglesas e francesas, com seus sapatinhos envernizados, e é claro que as avenidas da cidade de Guanabara têm de estar à altura de tão belas formosuras...
CORONEL CUSTÓDIO: acho que eu e Laurinha devemos visitar a capital para ver as novidades e estreitar amizades com os exportadores... afinal, temos muito cacau de nossa fazenda sendo vendido para a lá! E também, a viagem fará bem à Laura, pois assim sairá um pouco daqui e terá a chance de conhecer um bom moço para estabelecer casamento!
(som brusco de talher)
LAURA (ríspida): não há necessidade, papai! O senhor sabe o que eu penso sobre o “casamento”!
ROGÉRIO: e o quê a senhora pensa sobre o “casamento”?
LAURA (a contra gosto): acho o “casamento” um mal disfarçado comércio de interesses, onde a mulher é descaradamente vendida ao marido pelo pai, sem ter o direito de escolha! E ainda mais: todos os homens são uns brutos!!!
CORONEL CUSTÓDIO: Laurinha!
LAURA (secamente aborrecida): os senhores dêem-me licença! Estou indisposta. Papai!
ROGÉRIO: ...bem, bem... retornando à primeira conversa. Só lamento que o progresso do Brasil se dê através de violências, injustiças e humilhações provenientes da exploração de mão-de-obra escrava...
CORONEL CUSTÓDIO: senhor Rogério, o senhor é abolicionista?
CARLOS: ora, gente! Vamos deixar essas contradições para o Imperador resolver! Somos apenas estudantes passando as férias de verão em sua fazenda, papai. Não temos idéias abolicionistas... Sabemos o que acontece com os abolicionistas... não é Rogério!
GETÚLIO MÜLLER: pois bem... Carlos, após a sesta ainda vamos até a vila, conhecermos o lugar?
CARLOS: claro, caríssimos! Estou ansioso em mostrá-los alguns encantos que nossa cidadezinha ainda mantêm... Não quer ir conosco, papai. Faria bem ao senhor dar uma volta.
CORONEL CUSTÓDIO: não, meu filho! Esses passeios são para os moços... eu já estou muito velho para isso. Depois da morte de sua mãe, e aquela terrível doença com Henrique, que deixou essas seqüelas nele... eu realmente não consigo mais ter cabeça para essas coisas.
CARLOS: está bem, papai. Então fiquemos assim: não nos espere para o jantar. Chegaremos tarde. E não se preocupe conosco, certo?!
>>música indicando passagem de tempo
GETÚLIO MÜLLER: mas eu me lembro daquelas pernas macias... (risos bobos)
CARLOS: não! Aquela cachaça nos fez virar a cabeça... (risos bobos)
GETÚLIO MÜLLER: quem está porre aqui, ora essa! Veja como sei fazer um quatro nas pernas...
(barulho de gente caindo)
CARLOS (abre uma baita risada, para logo em seguida abafá-la)
ROGÉRIO: ora, recomponham-se rapazes! O que seria de vocês sem mim? Ainda bem que eu não bebo...
GETÚLIO MÜLLER e CARLOS: “não bebe, não fuma, não...” (ambos caem na risada)
ROGÉRIO: essa hora dar conta de dois marmanjões porres! Venham por aqui... cuidado Getúlio...
(som de vaso quebrando)
CARLOS: ei, esse vaso pertenceu a minha tataratatara...vó. Está na família a gerações!
GETÚLIO MÜLLER: você quis dizer: estava... (caem na gargalhada)
ROGÉRIO: shhh... falem baixo! Vocês vão acordar a casa toda!
(som de porta se abrindo)

ROGÉRIO: pronto! Se acomodem ai... e quietos!
(ouve-se abrir e fechar de porta, seguido de passos)
ROGÉRIO (fala consigo): meu Deus! Estou ensopado de suor! Não posso ir para cama desse jeito! Como irei lavar-me à essa hora? Ah! Vou lavar-me na cozinha... deve haver algum balde d’água por lá, sem eu ter que ir até o poço sacar água.
(som de água jogada)
ROGÉRIO: ahhhh! Assim está bem melhor. Agora já dá pra deitar na cama.
(passos andando e parados bruscamente)
LAURA: o senhor. Tire já as mãos de mim!
ROGÉRIO: como? Se a senhora estava quase caindo...
(tapa)
ROGÉRIO: Ai! A senhora está louca!
LAURA: Largue-me, seu... seu...
ROGÉRIO: ...mulato! Sou um mulato, minha senhora, e não tenho nada do que me envergonhar...
LAURA: largue-me, seu atrevido!
ROGÉRIO: a senhora pensa que eu não percebi sua repulsão à minha pessoa desde o momento em que nos conhecemos? (silêncio) Tenho certeza que a senhora apreciaria peles de minha cor...
(passos)
LAURA: Mariana, dê-me essa vela!
(passos apressados)
MARIA MARIANA: o que foi sinhá?! Espera eu...
(passos apressados)
ROGÉRIO: que mulherzinha louca! Cortou-me a cara com aquelas unhas...
>>música indicando passagem de tempo
(café da manhã – sons de xícaras, talheres, etc)
CORONEL CUSTÓDIO: Preta Domingas, onde está Laurinha?! Ande mulher, responda! Ela nunca falta ao café! Está se sentindo mal?
PRETA DOMINGAS: não siô... sinhá Laurinha está de pé desde as quatro... foi caçar negro fugitivo junto com os capataz...
ROGÉRIO(surpreso): como é que é?
CARLOS: Jesus! Laurinha não perde essa mania de calçar botas e tacar-se montada num cavalo atrás dos negros fugitivos??? Pensei que depois desses anos todos, ela havia mudado, papai.
ROGÉRIO (estupefato): a sua irmã faz isso há muitos anos???
GETÚLIO MÜLLER(sarcástico): agora entendo porque Laura ainda não encontrou nenhum pretendente...
(ouvem-se passos esbaforidos e sons de chicotes, entra Laura totalmente fora de si)
CORONEL CUSTÓDIO: Laura! Que modos são estes???
MARIA MARIANA: ...a sinhá quer que sirva seu café?
(ouve-se som de chicote, em seguida passos apressados se afastando)
CORONEL CUSTÓDIO: Mariana, ande! Vá atrás dela!
(entra Preta Domingas)
PRETA DOMINGAS: coronér, venha rápido, pela virge santíssima! Sinhazinha Laura mandô açoitar o negro fugitivo... sinhá ameaçou o capataz, caso ele não desse sessenta chibatadas no coitado... ele tá que não se agüenta!
(todos atônitos)
GETÚLIO MÜLLER (balbuciando para Rogério): ...essa Laurinha tem barbas no lugar dos pêlos???
(retorna Maria Mariana)
MARIA MARIANA: coroné, sinhá se trocou e saiu esbaforindo rumo ao bosque.
ROGÉRIO: isso tem que acabar!
CORONEL CUSTÓDIO: venha comigo, Carlos! Mariana corre atrás de Laurinha... fique de olho nessa desmiolada!
PRETA DOMINGAS(orando consigo): oh, Senhor! Vai começar tudo de novo... o demônio entrô no corpo de sinhazinha! Virge!!!
GETÚLIO MÜLLER: Domingas, a Laurinha já fez isso antes?
PRETA DOMINGAS: sim, siô... e como! Desde novinha ela tem essa desavença com os negros! Nós não entende, pois sempre fomos bons com ela...
>>música indicando passagem de tempo
(sons de ventania, mato, passarinhos e meio ambiente)
LAURA (soluçando, revoltada): eu não acredito! Não pode ser, meu Deus! Eu odeio aquele...
ROGÉRIO(chega e fala de repente): ...negro? Você me odeia porque sou negro, não é Laura? É isso que irrita você? De eu estar na casa grande sem ser nessa condição de escravo que você pode bater e mandar esfolar?!
LAURA: ora! Como se atreve... tire as mãos de mim!
ROGÉRIO (calmamente irônico): se eu não a segurasse, minha senhora... desconfio que iria cair. Não lhe parece estranho que eu tire seu sossego? Que a senhora sempre fique tonta e desfaleça em meus braços todas as vezes em que nos encontramos a sós?
(Laura luta para sair dos braços de Rogério. Silêncio indicando um beijo entre ambos, em seguida um tapa).
ROGÉRIO: volte aqui, Laura!
LAURA (em soluços, indo embora): deixe-me em paz! Eu odeio você! Eu odeio você!
>>música indicando passagem de tempo
PRETA DOMINGAS (ofegante): coroné... coroné, chegou telegrama da cidade. O carteiro disse que é do hospitar onde está nosso Joãozinho...
CORONEL CUSTÓDIO: dê-me, rápido!
PRETA DOMINGAS: o que diz, coroné??!
CORONEL CUSTÓDIO: ...diz que nosso menino não vai ficar curado da cabeça.
PRETA DOMINGAS: oh, Deus Santo!
CORONEL CUSTÓDIO (arrasado): então, mande o cocheiro ir hoje mesmo buscar nosso Henrique... não tem porque ele permanecer trancafiado naquele hospital...
PRETA DOMINGAS: sim siô, coroné!
>>música indicando passagem de tempo
JOÃO HENRIQUE: então o senhor sabe falar latim?
ROGÉRIO: sim, sei sim!
JOÃO HENRIQUE: Rogério, a vó Preta sabe falar uma língua engraçada... ela disse que é a língua dos ancestrais dela, que chegaram aqui carregados dentro da barriga de um navio, e depois, quando esse navio chegou em terra, ele abriu a barriga e os colocou pra fora...
ROGÉRIO: que história bonita...
JOÃO HENRIQUE: mas essa história não termina bonita...
ROGÉRIO: ...não? Por que, João Henrique?
JOÃO HENRIQUE: porque, a vó Preta disse que essas pessoas teriam a noite nos olhos por muitas gerações, devido ficarem muito tempo na barriga do navio que os trouxe para cá. E eles nunca mais voltariam a ver sua Terra natal...
ROGÉRIO: a África.
JOÃO HENRIQUE: é isso mesmo! Foi esse o nome que vó Preta falou. Você conhece essa história?
ROGÉRIO: não toda...
JOÃO HENRIQUE: eu lhe conto o final: então muitos deles fugiam daqui com a esperança de retornarem à África, mas eles eram impedidos pelos homens endemoniados, que os trancava novamente, até secarem todo o sangue de seus corpos... e de tanto sangue no chão, deu origem a uma árvore que dava um fruto da mesma cor da pele deles – a árvore de romã.
ROGÉRIO (triste): que poético...
JOÃO HENRIQUE: quando Laura era mais moça, ela comeu um fruto de romã, e vó Preta teve que fazer um chá para ela ficar boa... então numa noite Laura sentiu muita dor na barriga, e urinou muito sangue... vó Preta disse que se ela não tivesse feito o chá, Laurinha teria um filho da cor de romã...
ROGÉRIO (assustado): quando aconteceu isso, Joãozinho???
JOÃO HENRIQUE: quando Laura tinha dezoito anos. Lembro-me que ela chorava muito e que papai perdeu a cabeça e mandou matar um negro da fazenda... eu não entendi porque ele fez isso.
ROGÉRIO: mas eu entendi... agora.
(ouvem-se passos, entra Laura)
LAURA (altiva): Riquinho, venha para cá! Vamos!
JOÃO HENRIQUE: mas Laura, estou conversando com Rogério...
LAURA (mais raivosa): venha! Já disse!
(ouvem-se os passos dos dois afastando-se)
>>música indicando passagem de tempo
(sons da noite, passos lentos)
LAURA: quem está aí!
ROGÉRIO (voz seca): sou eu...
(breve luta entre ambos)
LAURA: Largue-me...
(silencio indicando beijo)
ROGÉRIO (ofegante): não adianta lutar, Laura!
LAURA (lânguida e com a respiração alterada): venha comigo...
(breve silêncio, sons de tecido, coito entre ambos)
>>música indicando passagem de tempo
(passarinhos cantando, indicando amanhecer)
ROGÉRIO(de repente): Laura? Ela não está no quarto... Devo ir-me antes que alguém me veja aqui.
(som de porta abrindo devagar)
ROGÉRIO (consigo): ah! Que bom... Getúlio ainda dorme.
(ouve-se gritaria e burburinho)
MARIA MARIANA (chorando e gritando): rápido vó Preta!
PRETA DOMINGAS: quê qué foi, minina! Pare de chorar...
MARIA MARIANA (chorando): a sinhazinha...
(vem entrando Coronel Custódio)
CORONEL CUSTÓDIO: o que está acontecendo? Por que essa choradeira, Mariana?!
MARIA MARIANA: coroné... a sinhazinha está morta!
TODOS JUNTOS: morta?
MARIA MARIANA: ela se enforcou na árvore de romã...
[FIM]

ÁGUAS CLARAS - radionovela
Autoria: Katiuscia de Sá
Belém, 19 de outubro de 2010.
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*Conto que inspirou a adaptação:

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

ANIMAÇÃO [teste 01]

Atualmente a equipe de animadores está na fase de finalização da animação que fará parte de “O Forasteiro”. Mário Guardian e Ribeiro Jr. Fizeram os primeiros frames que originaram o primeiro teste, que está postado aqui.

O pequeno vídeo [teste 01] está com os desenhos crus, sem acabamento e finalização, é só um esqueleto para percebermos algumas falhas e corrigi-las no processo da edição, acrescentando mais frames, e também direcionar o ritmo da animação e organizar as seqüências. O não está concluído, entrarão mais três seqüências em animação. Esse post é só para deixar um gostinho de quero mais.

A paisagem sonora do filme está sendo feita pelo músico e pesquisador Clen de Sá, meu irmão. Conversei com ele, expus o enredo do filme, a proposta visual e da direção, meu mano achou super interessante e topou compor uma trilha sonora para meu primeiro trabalho em audiovisual. Para mim esse fato é muito importante, pois “O Forasteiro” está sendo o primeiro trabalho em conjunto que eu faço junto com meu querido irmão. E pelas nossas conversas, essa parceria de talentos em família para futuros trabalhos artísticos, não termina por aqui.

Mais coisas a respeito do filme, podem ser vistos em:

Águas Claras (conto)


Deram asas ao gato! Este pulou de prateleira em prateleira. Voou pela janela ganhando o pátio para nunca mais... deixaram voz ao pequenino que ficou. Ainda em fraldas aprendeu que liberdade só é Liberdade quando fugidia. Mas o gato voltara à noite, retornou pela mesma passagem por onde escapara. Tomou leite em tigela. Do mesmo leite do nenê. Após o escândalo do nenê pelo sumiço do felino, todos dormiam com um olho no gato e outro no peixe... Alonso era o peixe de Laura, irmã do nenê em cueiros. Caprichosa a menina. Corria os dedos todos os dias pelos petrificados móveis de jacarandá de toda casa, e despejava seus dedinhos sob o aquário, se fizesse sombra nas águas, mandava açoitar a escrava... Laura era menina alva, feito boneca de porcelana de rosto cândido. Tinha alma desesperada como noites escuras de mortes coletivas. Seus olhos gritavam ódio e sangue pela negrada. Custava ao pai aceitar aquele gênio na menina, enquanto Carlos, o mais velho dos meninos, descambava delicado para as Artes. Laurinha era o filho mais macho do coronel Lourival Custódio Damasceno. Quando atingiu a idade de dezesseis anos, calçou botas mandando até mesmo no capataz da fazenda! Corria a cavalo junto aos capitães-do-mato. Adorava caçar negros fugitivos. Todas as suas aias tinham-lhe como um demônio naquela família. Sua ama de leite contava que sinhazinha Laura nasceu junto com a tempestade de 1839. Laurinha devastou a própria mãe, que só engravidou novamente após penosos sete anos, quando veio Carlos. Franzino e delicado, despojado pelos bons costumes. Adorava trabalhos manuais, sendo a Pintura e o gosto pelo Belo quem delinearia sua personalidade. Quando rapazola simpatizou pelas idéias abolicionistas. Articulava panfletagens debaixo das barbas do coronel Custódio, viúvo coitado... obedecia todos os caprichos de Laura, que parecia ser o homem da casa. O pequeno João Henrique nunca soube o que seria. Ainda criança tivera meningite, escapou da noite eterna, ficando com modos infantis e amedrontados para o resto da vida. Laura tinha-lhe pena. Às vezes João Henrique lembrava-se do gato de sua infância e chorava longamente, parecia o mesmo nenê de outrora. Às vezes Henrique sumia o dia inteiro, sendo encontrado cutucando formigueiros junto às senzalas. Os negros não judiavam dele, gostavam dele até! Sabiam que o jovenzinho era a única alma boa daquela família.
Os anos passavam... e coronel Custódio deveria casar a filha. Era o costume das famílias bem-nascidas. Quem seria o braçal-homem que desposaria aquele furioso animal? Todos na região dos Lagos conheciam os predicados de tão doce personalidade... Coronel Custódio queria mesmo era afastar dali aquele doce mel... isso que deu: foi dar língua à cobra, voz ao tigre, mãos e pés à gorila. Nasceu sinhazinha Laura Custódio Damasceno!
No inverno em que o jovem João Henrique fora levado para internação na Santa Casa dos Loucos, Carlos retornara da Capital. Trouxera consigo dois amigos de farra: Getúlio Müller e Rogério Aluísio da Silva. Este último mexera com as barbas da severa sinhazinha... Rogério era mulato alforriado ainda criança. Altivo como os grandiosos bambus. Foi adotado pelos senhores de sua mãe escrava; freqüentou os melhores internatos do País, teve educação de Doutor no exterior. Sempre tivera a proteção do homem que o alforriara. Bastardo no nascimento e bem-nascido de coração. O mulato acumulou a fabulosa herança de seu protetor (e não assumido pai). E não à moda dos jovens desse período, mas por amor e garra, Rogério destinava-se às causas abolicionistas.
Getúlio Müller era alto, de faces coloridas e afocinhadas. Seus olhos de doninha combinavam com seu sorriso fácil e preguiçoso de hiena. Era rapaz bastante espirituoso e também sabia ser safado. Rogério tinha a pele da cor perturbadora de romã. Seus olhos eram duas grandes poças de mel à luz solar. Lábios de caju. Faces de leopardo – muito atraente e exótico rapaz. Carlos os havia levado para passarem as férias na fazenda da família Damasceno. Laurinha ao se deparar com aquilo, não foi de bom gosto, mas o irmão soube persuadi-la. Carlos era exímio jogador de seu charme e podia converter até a mais ardente carola, quando assim quisesse. O trio de rapazes foi instalado no mesmo quarto. Gozavam das mesmas liberdades. Coronel Custódio até gostava de companhia mais juvenil. Os rapazes o acompanhavam nas conversas da tarde. À noite, sumiam para a boemia na Vila. Certa noite, Carlos e Getúlio mal se agüentavam em pé. Derramaram-se assim que entraram nos aposentos da casa grande. Rogério, que nunca bebia, os carregou até o quarto. Ficou em gotas pelo esforço de babá de marmanjos... decidiu banhar-se antes do sono. Mas àquelas horas... seria mais prático assear-se, apenas. Molharia a face e o pescoço. Já seria o bastante. Mas ao sair da cozinha vestindo apenas suas calças e o restante do traje nas mãos e os cabelos e o dorso obscenamente molhados, deu de cara com Laura no meio do corredor. A mocinha sentiu um rubor acender suas faces. Fraquejaram-lhe os joelhos indo a moça desabar se não fossem os fortes braços de Rogério a ampará-la... “o senhor. Tire já as mãos de mim!”, grunhiu Laurinha, recompondo-se dos olhos revirados. Rogério nem teve tempo de explicar coisa alguma, quando sentiu o peso certeiro da mão e o corte profundo das unhas de Laura. Maculou-se aquele lindo rosto cor de romã.
“Ai! A senhora está louca!” – escapou daqueles lábios de caju.
“Largue-me, seu... seu...” – safava-se Laurinha
“...mulato”, concluiu Rogério, cheio de vitória na voz. “Sou um mulato, minha senhora, e não tenho nada do que me envergonhar...”. Os olhos de ambos eram do mesmo fogo.
“Tenho certeza que a senhora apreciaria peles de minha cor...”, gracejou ele somente para infernizar Laurinha. Ela já estava quase em erupção, quando uma escrava materializava-se no breu do corredor; Laura aproveitou-se da vela que a escrava trazia e escapou pela fileira agourenta. Ao chegar a seu quarto, desabotoou a camisola. Os seios ofegavam. Sua roupa de baixo transpirava pelo rapaz mulato... acontecia um gozo dos sentidos, deixando Laurinha apavorada em febre. Pela manhã não estivera presente ao café da manhã. Coronel Custódio estranhou a ausência da filha. As amas disseram que a moça pôs-se em botas à caça de escravos fugitivos. Quem a viu naquela manhã, disse que sinhazinha parecia o próprio capeta de tanta malvadeza contra os negros.
Ao chegar à casa grande, Sinhazinha Laura varou pelos cômodos tal raio em tempestade. Ia abandonando tudo pelo caminho, restando-lhe às mãos apenas o chicote. A moça batia em tudo que via pela frente... e via somente aqueles lábios de caju... passou a semana toda naquela sofreguidão. Quando sua atitude chegou ao conhecimento de Rogério, a fúria de seu coração abolicionista o fez travar caloroso discurso contra a rapariga! Estavam a sós pelas mãos inconseqüentes do destino. Um delicado final de tarde envolvia ambos, quando se encontraram face a face no bosque da propriedade dos Damascenos. O vento se ressentia ao golpear a delicada pele rósea de Laura e de ressecar os tão perturbadores lábios de caju de Rogério... o vento infelizmente também testemunhava e carregava os gritos de ambos. A situação se agravou quando o rapaz arrebatou das mãos de Laura o furioso chicote com o qual ela açoitara os negros dias passados. Quando a pele de romã roçou a pele rósea, Laurinha estremeceu. Aquietou-se, porém, rapidamente quando Rogério a amparou de ir-se direto ao chão. E na fúria de seus sentimentos, ela compreendeu que amava aquele mulato, cor de romã... largou-se imediatamente das mãos de Rogério, indo carregar pesadamente seu vestido azul-marinho cravejado de pequenos lírios líquidos espartilhados de rendinhas. A moça corria afundando suas botinhas caprichosas na lama dos arredores. Afundou-se pelo bosque, escapando dos olhos afogueados do rapaz. Laurinha aportou-se num tronco caído. Não sabia se respirava e continha a euforia, ou chorava depositando seu ódio para o mundo. Seu desgosto pelos negros fora punido. Laura fora domesticada por aquilo que mais odiava... tornava-se ela, cativa... cativa de seus próprios sentimentos a partir de agora!


De seu lado, Rogério também foi pego de surpresa. Como pôde ele gostar daquela mulherzinha cruel e nojenta? Ela simbolizava tudo contra qual Rogério lutara em toda sua vida! Laurinha era má com os negros e fútil, tão rasa e inútil quanto uma lamparina enferrujada, velha e sem óleo. Mas Rogério também estava apaixonado por ela. Os últimos raios de sol daquela tardinha, o consolavam: davam brilho àquelas lágrimas sofridas que queimavam o rapaz por dentro.
Laura conseguiu tornar-se mais pálida do que uma Lua Nova. Os fios negros de seus cabelos caídos sobre a fronte davam-lhe feições cruéis e macabras. O contraste que os últimos raios do dia conferiam ao rostinho oval, afundava Laurinha num universo tempestuoso de loucuras... seus olhos grandes e negros em face pequena, dominavam os dentes fortes em pavoroso aspecto de gato do mato. Laura era um animal perseguido. Sentia-se agora, como os negros que ela tanto judiou por anos a fio...
A seu modo, Rogério continuava as rotineiras camaradagens com Getúlio e Carlos, sem que nada estes desconfiassem. Sinhazinha tornava-se mofina. Passavam-se os dias e Rogério partiria daquele lugar... e o desassossego depenava o peito de Laura.
Após algumas semanas, chegaram noticias de João Henrique. Os médicos mandaram dizer por carta, que o rapaz não poderia voltar a ter a sanidade normal, devido à meningite que ele tivera na infância; e que o único remédio era aceitá-lo como está e ter alguém ao seu lado para cuidá-lo a vida toda. Saber daquilo foi um baque para o coronel Custódio. Com a única filha em demônios e o filho caçula adoentado para sempre... o sofrimento naquela família traçava as linhas no destino de todos.
“Então, tragam-no de volta!”, resolvera coronel Custódio. O que adiantava manter o rapaz internado se não ficaria bom dos juízos! Melhor tê-lo em casa no meio dos seus. E para aborrecimento maior de Laura, Henrique simpatizara com Rogério; tornando-se ele amigo do homem que aprisionara o coração indomável da moça. Partilhavam conversas e segredos. E através de um desses segredos que Rogério compreendeu a origem do ódio que Laura alimentava pelos negros...
Numa madrugada de domingo, estavam a zanzar pela casa grande Rogério a procura de algo que o distraísse, e Laura consumida pelo furor debaixo dos tecidos, ao pensar naqueles lábios de caju... Na escuridão de um corredor, esbarraram-se novamente. E novamente, Laura deixou-se cair nos braços daquele rapaz cor de romã.
“Largue-me...”, antes dela proferir outro insulto qualquer contra Rogério, a língua obscenamente quente do rapaz entrelaçou-se na de Laura, emudecendo aquela angústia que lhe tirara o sono... e o fervor dos sentimentos de amor reprimido, que tirara ambos da cama, foi o responsável de os colocar novamente envolto nos lençóis, e nos braços um do outro... Como animais no cio devoravam-se mutuamente.
Laura jamais experimentara tão apaixonado corpo, nem os beijos que lhe afogavam a face e o ventre... Abandonava-se naquele rapaz cor de romã. E nos primeiros raios de sol vazados pela cortina, Laura ressentia-se da madrugada tão escura, que escondia a pele de Rogério, enganando a visão da sinhazinha. Mas à luz do dia, a realidade colorida judiava do mau caráter da moça. Ela odiava os negros... e agora também se odiava.
Pela manhã, Rogério ainda estava na alcova de Laurinha, mas não a encontrara nos aposentos. O rapaz escorregou discretamente para o quarto de hospedes, deitando-se em seu leito sem acordar o companheiro que dormia na outra ponta. Não seria coerente saberem que Rogério e Laura estiveram juntos naquela noite.
Entretanto, antes que todos se acomodassem para o café da manhã, ouviam-se gritos apavorados e correrias no salão principal. Um escravo bradava a notícia de que sinhá Laurinha estava morta, enforcada no saguão da casa, no alto de uma frondosa e bela árvore de romã.
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Katiuscia de Sá
25 de abril, e 18 de outubro de 2010.
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Adaptação do conto para radionovela:

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

ILUMINÁRIOS – LIVRO ÚLTIMO


*Imagem: René Magritte
(Para: Vicente Franz Cecim)

Um filamento prendia o cérebro que flutuava acima do céu. E no Espaço pensava. Logo abaixo a pequena caminhava para movimentar o corpo. Estava em vigília. Lutava para manter sólida a lembrança ainda armazenada na memória. Porém, boa parte já havia evaporado. A decisão persistia em cauterizar o coração. E no meio da ginástica dos ossos, aqueceu o cérebro novamente. Todas as folhas reluziram e a escrita punha-se em movimento outra vez. E agora tendo as mãos vazias das Dele, regressava ao Lar, onde oO encontraria à sua espera.
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Vários sonolentos espalhados, mas nenhum deles pertencia ali. Tapuia recolhera as asas, pois o cérebro flutuava acima do céu. No Espaço, então!? O ninho das Aves. Eles terão um filho, mas um pequeno planeta em órbita. Chamariam Lunar, a cabeça do lápis que escreve.
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Três dias maturando a Alma que veio. A Vontade de existir venceu o Pensamento. O diafragma reagia a cada sopro. Restabelecia-se. Ele ouviu a voz dela: “Cecim... Cecim... Cecim... Cecim...”. Ela estava presente mesmo com o cérebro suspenso. O copo aqui. E com este pregado ao chão, relaxava. Aquele indivíduo sólido e branco a envolvia. Ele era o único de sua espécie, e ela também. Juntos seguiam.
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A pequena deixava-se ficar, pois o filamento que existia lá em cima e ali em baixo era Amor; Amor que trouxe Lunar à vida. Tinha seus ciclos de Luz no firmamento. Pequenos brilhos partilhavam entre si toda a Beleza do Universo, que ambos também tinham – a pequena e aquele índio branco.
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Grilos cantavam escondidos nos matos. Corujas brilhavam seus olhos. Cururus açoitavam os barrancos dos rios com seu barítono canto. Era a vida misteriosa e Bela envolvendo o interior Dele. E a pequena Tapuia morava ali, Agora. Tanto tempo fora de Casa... Descobria ela, cada emoção genuína. Emoções Reais e profundas, um fundo de oceano. Águas turvas e gélidas. Silenciosas como Ele, o Pensamento.
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A semente formava-se. Os filamentos Dele chegaram nela com toda força. Um emaranhado de selva. Os bichos cantavam seus corpos celebrando a vida. No inicio das manhãs sabiás e bem-te-vis gritavam suas gargantas ao calor dos primeiros raios de sol (os olhos de tapuia e do índio branco florindo). Borboletas multicolores ministravam o compasso da melodia visual. Um sustenido.
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Várias notas musicais nos carros. Nas igrejas. Nas casas. Nas pessoas. No mundo... inalados e engolidos a cada instante. Recolhiam-se abrindo espaço ao Espaço do cérebro suspendido. Abaixo, o corpo dormente a caminho de Casa, “Andara”, como Ele dizia... seus braços a queriam. A fotossíntese, segunda etapa da metamorfose, a Vida.
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Nuvens em torno da Luz suspensa. Um oceano frio com geleiras compondo o néctar da noite. Nenhuma coruja ausente. Muitos lilases e azuis. Cada geleira que passava alegrava mais aquele céu oceânico, pintado ao vivo em cores movimentos. A Vontade.
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Como cérebro ainda nas nuvens preso por extenso filete, graveto inicial do ninho. Era esse o sonho? Mas o menino branco não dormia. Quando fechava seus olhos de Sol, acordava para a outra Vida, onde a pequena caminhava para movimentar o corpo de ossos com o cérebro suspendido.
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Depois que a Ave Que Não Se Sabe O Nome voou, Menino branco afundou-se mais e mais em si, deixando-se escapar mais um Verso: o coração, o Dela. Já amanhecido de flores venenosas, não haveria outro caminho, senão, sucumbir ao que estaria escrito durante todos os meses que já passaram. Os Tempos fora de lugar... O Tempo sempre incompreensível e maldito! Foi exaurido. O Tempo, Senhor de tudo e invencível!
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A pequena indo tão rápida durante a travessia da Mata, desabotoou seus olhos pela ultima vez. E da pintura corporal – traço de seu povo, fez-se concreta! Tão concreta e forte, alcançando alturas inimagináveis acima do Sol e das Nuvens, que o menino adormecido sobre a relva de si mesmo, nunca iria alcançá-la, não mais...
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Então ele depositou seu ovo nela; estaria Presente por outro Caminho, mesmo após seus Sóis que anoiteceram para sempre. Essa era a única prova de Amor que ele era capaz de realizar por aquela menina perdida para sempre de sua tribo, porque seus olhos já haviam anoitecido..., os dele. Ele partiu sem sua Eva. Na profecia de Domã-Naã algumas criaturas evoluem ganhando asas; outras evoluem, ganhando sonhos... A pequena ficou com os do índio branco, os Sonhos. E ele se foi.
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Tapuia acordou naquela manhã sem os zumbidos no ouvido, e os mosquitos não lhe fizeram nuvem nos pensamentos. Todos na aldeia estavam bem, e ninguém mais ouviria o barulho das cigarras.
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Katiuscia de Sá
10/10/2010.
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*ILUMINÁRIOS - Livro Três: