“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Canção de Bach


Passou um bando de Aves agora pela minha janela.
Trouxeram teu cheiro masculino de Cecim
- Chuva sobre meu botão


Em teus lábios
Palavra secreta escrita no meu peito:
Amor.


Passagem de vento
Tua boca,
Meus arbustos


Abriu-se um caminho
- Teu coração em meu seio!


Cristal Puríssimo
Alimento teu
Meu gosto de Mulher,
Botão
Tua rosa-menina.


Andorinhas-romãs na Viagem Eterna
Uma Canção de Bach
O vento pelas ruas
Das árvores sorrindo até o Mar



Katiuscia de Sá
25/04/2010

sábado, 24 de abril de 2010

A CASA

(Escrito e dedicado a Vicente Franz Cecim)


"Sorrisos-Olhos" e "Menino-de-Asas"
Desenhos/ Criação: Katiuscia de Sá


Observou que as janelas estavam fechadas, também a porta da frente. Não atentou quantos anos se passaram; não havia mais risos, faltavam correrias nas serragens. As cortinas já estavam bastante desgastadas. O tempo deixara-se descansar...

As letras não estavam mortas. Apenas esquecidas a um canto da sala-de-estar, tão acomodadas quanto um recém-nascido envolto em cueiros de lavandas. As letras, antigas pela condição do esquecimento. Nunca usadas. A ventania uivava pelos aposentos, varando as salas numa brincadeira de cata-ventos – um choro silencioso de criança. Só lembranças adormecidas, e no final das contas até os carpetes rendiam-se suportando a preguiça instalada à simetria deles. As poeiras não mais se remexiam, nem em cima nem embaixo dos panos; nem o uivo do vento passando pelos cômodos sacudia o pozinho das coisas. Parecia morte. Mas até a morte se movimenta nos caixões... da matéria gelatinosa e sanguínea, músculos ressequidos; estes em vermes; destes, o pó... e no interior da Casa, tudo parado.

Entretanto, numa tarde dessas comuns, sem graça, uns grandes olhos flutuavam pelos aposentos – letras amontoadas num livro sem capa, sem páginas... a curiosidade foi maior do que o medo, então pôs-se a perguntar: “Do quê se trata?”
“Filosofia”, disseram as mãos sobre o livro sem capa-previa. “Ah! Eu gosto de Filosofia”, a curiosidade ávida de informações. Nesses termos o medo ficou em segundo plano. Foi quem primeiro adormeceu o corpo para que pudessem conversar melhor. Quase um milagre retumbante. As poeiras puseram-se em movimento, sem que ninguém pedisse. Primeiro um grãozinho espreguiçou-se e atormentou seu companheirinho aconchegado. “Ei, acorda... vambora...”, o outro nem aí. Demorou mais uma semana para que resolvesse se mexer do lugar e juntar-se ao que já acordara. Mas aconteceu.

As folhas dos pulmões foram desabotoando. Uma imensa copa flutuante. Muito bonito esse processo de curiosidade. Pôs-se em contato com a Paciência. Esta era bastante estranha... Não perguntava, mas também não escapava nada, toda observação absorvia. Apenas esperava... o quê, não se sabia. Então a Curiosidade resolveu avançar aposentos do Casarão adentro, a exemplo da Paciência... em silêncio, porém com a velocidade característica à sua juventude.
As paredes brancas, de uma paz consoladora. Tristes e solitárias. Atrás daquela pintura serenamente branca, havia lembranças. Uns risos pelos corredores, salas e aposentos. Na cozinha um aroma antigo de chá de mato. Lágrimas e soluços no quarto da menina... O vento carregava tudo de um cômodo a outro. Um vendaval por dentro, calmaria por fora. O Casarão.

Duas luminárias lambendo a parede exterior. Nunca adormeciam. O tempo das horas não importava muito, posto que o que está esquecido não necessita da precisão dos relógios. E quem escreve, também adormece em cima do que escreve.

Silêncio mordaz. Os carpetes gastos lembravam-se com muito esforço das festas, das valsas, dos risos. Tudo sepultado abaixo das areias. As duas poeirinhas puseram-se a rastejar com ajuda do vento que circulava vez por outra. Foram compreendendo o que era ali. ”É um Casarão...”, deduziu a primeira criança, mas uma Casa não se movimenta de um ponto para o outro. Essa Casa se movimentava tanto fora, quanto dentro. E o vento invadindo os quartos de janelas abertas. “Estavam realmente abertas?”. Na verdade a certeza não era bem-vinda.

Tudo estava por detrás das coisas. Tão detrás quanto um sonho que rebenta de repente num mundo de origens outras, luminosas, velozes e barulhentas. Uma cachoeira de cristais bem ao meio na sala. O garotinho ilhado num remoto pedacinho de terra firme. Não chorava, arquitetava logicamente como libertar-se de sua pequenina prisão – brincadeira sem graça da força das marés!

O lago foi engolido em volta da pequena ilha. O menino bebeu atmosfera, caminhou afundando, lançava sua cabeça para fora. Compreendeu o mecanismo da vida: respira-se com a fronte sobre as águas enquanto o corpo flutua pesadamente no cotidiano... o importante é salvaguardar a mente. “É, a mente...”

As mãos continuavam sobre o livro sem capa. Diziam elas que havia uma correnteza maior que movimentava tudo sobre os moinhos nos campos selvagens, a mesma força que movimentava as folhas mortas nas calçadas. “o interessante é saber por que se está indo, não necessariamente onde se está indo...”, dizia. Como as horas não contavam muito naquele lugar, não sabia exatamente quem eram os interlocutores. “Isso é o de menos, concentre-se no que está por detrás das coisas”, acrescentou novamente sobre o livro.


(...)


Após o que se reconhece como sendo umas três semanas, as duas poeirinhas estavam à divisória entre a sala-de-estar e o salão. O vento interrompido abruptamente por bem-te-vis. Chegavam violentamente, arremessando-se pelas vidraças do Casarão, momento em que os dois torrõesinhos de areia atentaram que ainda corria água na encanação da Casa, “era desse modo que o Casarão ainda se mantinha vivo...”, recordava-se um pozinho. Essa informação seria de grande valia.

Vaivém de passarinhos estilhaçando-se contra as vidraças. Certa vez um deles partiu a transparência. Entrou a voar desgovernadamente no Casarão. Agitava suas asas, até que pousou naquele Lugar. Passou dias preso ali, sem lembrar a saída – a mesma fenda arremessada que o trouxera para dentro. “Esse é o mal de quem sai às carreiras sem atentar ao caminho que se percorre. Tudo parece ter o mesmo gosto – gosto de nada!”


O bem-te-vi permaneceu isolado. Sem comida e sem água. Morreu. Transformou-se em poeira. Os dois grãozinhos que ali estavam, beberam a cena: da matéria viva ao pó da destruição. “Se ele virou pó como nós, então um dia nós também fomos outra coisa...”, disse a segunda poeirinha.
”Como poderemos nos lembrar o quê fomos antes?”
“Não sei. Perguntemos a Curiosidade, ela sempre encontra repostas para tudo...”.


As paredes do cômodo empurraram-se umas contra as outras na tentativa de encurtar a conversa entre o Tempo, o Espaço e a Precisão das Horas. Tudo muito inútil. O máximo que se processou foi o nascimento de uma rachadura do solo até o cume do Casaril. A parede – agora sangrada – deixava-se atravessar largamente pela luz externa e longitudinal. Não se sabia se era dia ou noite. Há tanto tempo na penumbra, que qualquer luz padece de mesma intensidade fosse dentro, fosse fora.

(...)

No alto o sol levantava-se para logo em seguida largar-se vertiginosamente ao chão. A ginástica das Horas. A rigidez dos dias. A mesmice momentânea. Nuvens apostavam corrida. Quem chegaria a molhar o chão manchando de sal os que lá embaixo viviam? Pirraça de um S. Pedro! Os aposentos continuavam imóveis. A lembrança do menino disse às paredes, que segredaram aos tapetes, que confessaram ao corrimão, que ele soltou-se das nadadeiras e aprendera a voar. “Saíram de suas omoplatas umas coisas que o sustentavam no ar”, observou a rachadura que se formara na parede.
“Mas eu desejo ver o que há lá fora...”, insistia o pozinho curioso e irrequieto, indiferente ao menino-alado que estava feliz ao descobrir que seus pés flanavam.

(...)


O coração ofegava do lado de fora da Casa, pulsava desesperado no céu junto ao sol acelerado, erguendo-se e se pondo, erguendo-se e se pondo, erguendo-se e se pondo... o vento que atravessava os aposentos arregalando as montanhinhas de poeira de um lado a outro, era a velocidade do coração que rangia do lado de fora. “Ele chorava por alguém...”
“Eu me lembrei de algo...”, cochichou um pozinho ao outro. Lembrou-se de uns olhos solitários carregados de Amor e Esperança. Vagavam acordados e sombrios durante as madrugadas, esperando por Ela. “Quem era ela?”, quis saber a outra poeirinha. Disso não recordavam, mas queriam uma revolução dentro daquela Casa.
(...)


A parede danificada partiu-se mais ainda, dançava um balé aritmético em direção ao telhado. O perigo era a construção ruir-se caso a rachadura chegasse à cumeeira: esteio-sustentáculo de todos os cômodos.


O menino-alado esticava-se cada vez mais. E o lago formado acima do tapete da sala-de-estar evaporava-se. Era um processo doloroso porque impunha necessariamente o desapego e desligamento com todo o resto... ficaria mais leve. Desse modo poderia ocupar ou desocupar qualquer lugar de agora em diante, virara força-motora a assoviar desenfreadamente cômodos afora.

“Mas se o quê foi, tornou-se passado, continua sendo... portanto, ainda É; não Foi. Permanece...”, confundiam-se as poeirinhas paradas numa das esquinas-aposentos.
“Não se pode fazer nada, mantendo-se imóvel...”
“Mas o pensamento, pode...”, observou seu coleguinha poeira. Queriam passar de um cômodo a outro. Quando outro rastro de vento percorreria o interior da Casa, emprestando mobilidade e encantamento às coisas? Ninguém saberia dizer.
Mais pássaros rasgavam o céu do lado de fora. Gritavam o nome Dela. “Ela está aqui dentro...”, espantou-se a poeirinha esperta!

“Mas o menino-réptil que agora é alado?”
“Ele é Menino-de-Asas, não Sorrisos-Olhos...”, protestou a outra poeira. E agora o infante não queria mais nadar. Queria voar...
E uma lembrança latente querendo despertar na atmosfera esquecida em um dos quartos. Porém, para que algo seja lembrado necessário se faz a presença de alguém para que essa lembrança venha à tona.
Esse “alguém” és tu.
Sim.
Tu.
Tu mesmo!
Tu que me olhas...

(...)


Uma das telhas ruiu. Partiu-se desabando para dentro. Chegou com violência junto ao soalho. O impacto causou impulso inesperado. As duas poeirinhas voaram uma para cada lado.

“Onde está você?”, ecoou pelo espaço, a pergunta.
“Estou aqui... cheguei ao quarto da Madame...”, gritou uma poeira à outra.
O Destino estava cada vez mais indócil às vontades individuais. A força da coletividade sempre fora maior, porém nunca domesticada...


O sobrado estava hermeticamente fechado – violado, contudo, pela rachadura lateral-oval por conta das brigas entre as paredes-irmãs.
A briga interior.
“Sempre essa briga...”. Ela é capaz de promover catástrofes, ou “revoluções...”, como observou o pozinho rebelde.
O mais sensacional era que o quarto da Madame continuava ileso.
Tudo novinho.
Intacto.
O mesmo brilho.
A mesma ausência.
O soalho nu.
As paredes róseas-escarlates.
A caixinha de música exalando aquele som pesadamente sincronizado, indolente a hipnotizar tudo pelo espaço. As janelas sem cortinas acusavam dia lá fora. Aliás, meio-dia para ser exato.
Existia outra casa do lado de fora da Casa. Era quase loucura ou sonho dentro do Sonho. A mobilidade externa atravessava as fendas herméticas, interferindo diretamente nas coisas interiores.

“Ontem a noite ele confiou em mim. Abriu seu coração ao meu. Serei fidelíssima até perder os cabelos de meu juízo...”, confessava a página escrita do Diário sobre a penteadeira. Ali era o Coração-Interno da Casa.
Sereno.
Intacto ao encantamento do tempo.
O Amor é imune a isso, e a tudo. Permanece porque é puro. Alastra-se, infiltra-se, reage, transforma... promove revoluções.
Outro Coração galopava fora. Era a revolução sendo tecida, ganhava lentamente cômodo após cômodo, em todo Casaril. O mais trabalhoso seria abrir-se, retirar o couro e emborcá-lo para fora. O couro era duríssimo! Necessário seria uma força extraordinária... apenas o Amor seria capaz.

“A porta estivera por longo tempo aberta”.
“Mas existe um filtro, o guardião que hoje a ti serve”.
“Este é Amor que te dou...”
A semente-cardíaca ramificara-se. As veias estouraram, inundando tudo de sangue e Paz. Raiz e planta ergueram-se precipitando a porta – um sopro repentino das asas do ex-menino-réptil. Seus olhos de peixe dilataram-se como os de um felino no escuro. Ele sentia a presença Dela dentro de si.
No interior da Casa, Menino-de-Asas; por fora as faces recobertas de pelos vaidosos, prateados. Ainda conservava a beleza e o frescor. Encantadoramente maravilhoso! Seu corpo esguio – como o de um rei. Reinava sobre si mesmo. Reinava dentro Dela.
Menino-alado esperava ansioso pela presença Dela novamente. Um terço de século estivera à espera.
“Ela veio. Eu me lembro...”, ouvia-se um gritinho entusiasmado.
“Onde estás?”, bradava abafado, outro gritinho.
“Estou aqui...”, rangeu o outro.
“O que aconteceu?”
“Ela veio. Chegou a conhecê-lo...”, explicava aos berros.
“Então eles foram felizes?”
“Isso eu não me lembro...”, ressonou o pozinho à distância, morrendo o assunto.

(...)
O ar era cigarro. Baganas gastas ao chão. As horas passavam sobre si, não lhe despertavam. Vivia em vigílias, em apnéias, em transes domesticados. Despertava disso vez por outra impregnado da presença Dela. O Menino-de-Asas crescera em tamanho, contudo, continuava menino.

Nascera Ela, seria criança por toda vida. Encontraria Menino-de-Asas num olhar peregrino. “Ah! Então foi isso que aconteceu!”, concluiu sozinho uma das poeirinhas. Porém, não deu nem tempo de partilhar a recordação, porque o véu do dia foi se queimando. As atrocidades matavam-se ao fio do horizonte. Tudo estivera escarlate... era o horror da guerra galopando rapidamente em tempestades voláteis, expurgando os resíduos que ali residiam. O compromisso firmado num pacto sem acordos prévios, sem palavras, sem cuidados... apenas de alma para alma. O dentro para fora; e este naquele, agora.


Violinos ulularam animalescamente felizes, ontem. A ventania precipitava-se pelos cômodos. Brincavam como as duas crianças de outrora!
“Mais uma página sendo escrita...”
“E de quê se trata?”.
“De mim e de ti.”
“Ah!”
“Compreendes agora, o quê é um compromisso?”
Disse que “sim”, às mãos sobre o livro sem capa-prévia. E os olhos dele foram cada vez mais fundo... mais fundo... “A ausência é que te traz a mim...”, disse Paciência à Curiosidade. E a lembrança vindo à tona. Pedaços de histórias sendo recontadas. Lá fora era azul, aqui dentro era cinza. Depois da primeira revolução do acordo firmado de alma para alma, lá fora ficou verde e dentro ficou salmão.


(...)


Amanhecia... e as poeirinhas no mesmo lugar. Do lado de fora, a Casa dera um passo importante, largo, profundo. Um ciclone tamanho médio rodopiou tudo bem para o centro de si. Dessa vez cortinas soltaram-se de algumas janelas. A luz de fora ganhava os aposentos. Escorria um mormaço róseo. Pequenas fagulhas flutuando lentamente sob a luz nublada. Um mundo áurico, submarino e vegetal. Havia lodo na horizontal do quarto. Cogumelos dançavam butoh para o alto. Sentiam-se vitoriosos pela quebra do protocolo. Estavam entre as madeiras da janela e da portinha que dava acesso a um saguão misterioso e inútil. Nunca ninguém soubera exatamente para que servia aquilo. As crianças brincavam de esconde-esconde, nada mais!
Pequenas orelhas-de-pau atentas a conversa paralela dos grãozinhos.

“Estamos nos mexendo...”, observou um.
“Aonde vamos parar dessa vez?”, protestou a poeirinha preguiçosa.
“Quero voltar par Casa...”, desesperou-se.
“Estamos em Casa!”
“Não...”, duvidou este ao outro pozinho.
À medida que avançavam pelos cômodos, ficavam mais alvos e leves, sendo qualquer brisa capaz de movê-los de lugar.
“Estamos flutuando”, admirou-se a poeirinha preguiçosa. Isso era bom. Chegava a autonomia parcial dos movimentos. Mas ainda faltava muito para que pudessem adivinhar o quê tinham sido antes, ou o quê foram, ou o quê estavam sendo.
(...)


“Agora compreendi o que significa compromisso”, disse ela, e em resposta ela ouviu: “O meu compromisso é conosco”, concluiu ele. Sua voz era firme e repleta de ternura. Sorrisos-Olhos comoveu-se com o que havia compreendido, e eles dormiram.
“Eu falo através de tua boca e tu, através da minha”. Então as bocas se uniram num beijo. Sorrisos-Olhos sem querer ergueu-se das órbitas, deparou-se com Menino-de-Asas a zombar-lhe das lágrimas gastas em rios sem peixes.

“Se quiseres, trago-te peixinhos para nadarem nesse rio...”, comemorou sua voz, bem distante do chão. Sorrisos-Olhos não reagiu porque estava ocupada em represar o que lhe escorria. Sem resposta, Menino-de-Asas atravessou o véu que gelatinava a única vidraça movediça da Casa. Suas asas promoviam novo combustível às duas poeirinhas já bastante distantes uma da outra.
A história recomeçara!
“Gosto de ouvi-la de sua boca!”
“Também gosto de dizer a tua Palavra!”. Ambos uniram suas bocas novamente. Não mais num beijo. Agora em Força e Vida. O sol nasceu após ambos retornarem! Mas nasceu dentro... crescia. Ele sorriu e zombou dela novamente, “preste atenção para fora... não olhe apenas para dentro. Não descuide de fora”. Ela compreendeu muito depois porque falava através da boca dele.
“Então, o que eu digo é para ti?”
“Não!”, concluiu o interlocutor.
Dos que espreitavam na penumbra, teriam de se conhecer, pressuposto existir apenas um Verbo. “O mesmo que sai da minha boca e da tua”, lembrou.
“Gosto dessa história”, pensava. “Começo a compreendê-la”.
“Escrevo-te com a esfera que achei na rua.” As tintas desaparecem quando entranham no papel. Mas uma esfera não tem lados, nem começo, nem fim.


(...)

“Onde estás?”, ecoava a pergunta. Sem respostas, adentrou ao aposento do Senhor da Casa. Um grossolivro de capa azul sobre uns papéis avulsos-amarelados. As horas passavam tão rápido.
“Tudo se manifesta em mim, mas é através da tua boca que me fala”, gotejou a última lágrima de Sorrrisos-Olhos para Menino-de-Asas, que ia agora distante.
“Mas e o quarto da Madame...?”
“Madame...”
“Madame...”
Repetia-se o eco. Até chegar ao outro lado, à poeirinha. Desistira de prosseguir com a conversa, já que estavam agora flutuando a esmo dentro da Casa – a lentidão.

Um girassol sobre a escrivaninha acomodava-se tímido ao lado do grossolivro de capa azul sobre uns papéis avulsos-amarelados. A alma desse aposento cheirava a tintas e revistas por todos os lados. Paredes cáquis mostravam-se umas às outras, os dentes. Um riso de espantar mosquitos. O zumbido do silêncio, essa sinfonia! Sorrisos-Olhos estremecia de tanto jorrar água para o rio sem peixes.

“Ainda posso trazer-te peixinhos para tu brincares no teu rio...”, prontificava-se ele para ela. Contudo, sua oferta permanecia sem respostas. E em silêncio Sorrisos-Olhos fechara-se.
As bocas unidas...

“Tudo vem a mim. Tudo passa por mim. Tudo se manifesta através de mim...”, uivavam os ventos aos aposentos. Lá se vão novamente os dois pozinhos, mais distantes um do outro.
“Já disse... falas através da minha boca e eu, da tua...”
“Dá-me um beijo?”

E outro beijo foi dado. Ambos falaram pela boca um do outro, então, uma das penas soltas das asas dele veio às mãos. “Era a esfera...”, compreendia o pozinho-revolucionário.
“É com ela que te escrevo agora...”, voava uma das folhas do diário da Madame, indo junto aos alfarrábios aprisionados pelo grossolivro de capa azul. “A solidão do esquecimento é a mesma solidão criativa”, e como uma voz-extensiva a escrita reapareceu sobre as páginas do livro. [O mesmo livro que as mãos pousavam inicialmente].
“Do que se trata?”
“Já disse... Filosofia!”
Eram os anos de festas! Sorrisos-Olhos mocinha.
Casamento.
Enxovais...
Tudo registrado em seu diário.
Uma casa dentro da Casa. Uma história dentro da outra. Um livro dentro de um Livro. E os olhos dela, ali. E os olhos dela, ali... Suas mãos de cigana brincavam os anéis nos dedos avulsos sobre si. Na cama, debruçava-se. As rendas que lhe cobriam gracejavam sobre os joelhos tímidos, e a perna direita dele repousou sobre as pernas dela. O amor chegando para domá-la.

E foi assim a primeira metade de noite de ambos. Ela beijou-lhe os olhos. Cheirou sua pele. Permitiu-se... então, num coito feroz às costas dela, ambos galoparam! A voz dela retorcida pelo quarto, não de dor. De prazer. Entregava-se a ele, agora (e para sempre) seu esposo. “Foi a primeira vez que um homem a amou daquele jeito” – explicava-se o Diário aos alfarrábios retrucados debaixo do grossolivro de capa azul, e este, emocionado largou-se numa queda! A ventania fez as folhas soltas do Diário da Madame em núpcias junto aos alfarrábios desgovernados do Senhor da Casa. Menino-de-Asas divertia-se movimentando ventanias por onde flanasse. Sorrisos-Olhos parara de chorar. Seu rio já era suficiente para ambos abrigarem.
“Acho que aqui se preparam almoços...”, arriscou poeirinha revolucionária. O fogão inexpressivo não fazia esforço algum para acender as chamas, sequer assar bolos. A neblina-ocre reinava em absoluto. Seus súditos – as teias e as aranhas – tramavam algo contra os pernilongos dia e noite. Uma lentidão nostálgica acomodava as panelas largadas umas às outras. Não dormiam. Não acordavam. Estavam eternas. Um animal doméstico acusava-se pela existência de uma passagem ao rodapé da porta. Talvez fosse um gato, um cão...


“Não era nenhum desses...”, vociferou poeirinha preguiçosa.
“O que era, então?”
“Uma grande coruja branca-prateada”, emendou logo, poeirinha corajosa.
“Ah!”
“Foi ela quem ensinou Menino-de-Asas subir aos céus...”, recordou o pozinho valente. E o dito menino encontrava-se na cozinha. Meteu-se a remexer todos os cantos a procura de peixinhos.
“Lembro, havia peixinhos aqui...”, poeirinha disse à outra. Escondidas de todos, as crianças rabiscaram naquela cozinha. Menino-de-Asas viu. E num toque de seus dedos longos e brancos, o desenho ganhou vida. Soltaram-se a pular no chão, os peixinhos.
“Servem apenas dois?”, perguntou ele a ela. Sorrisos-Olhos fez que sim. Eles nadavam agora. E Sorrisos-Olhos deixou-se pela primeira vez sentar-se ao lado de Menino-de-Asas.


Uma árvore ergueu-se em forma de “S”, crescia apenas a noite. De dia abria seus olhos – as folhas. A menina depositou seu rio ao pé dessa árvore, “Assim ela poderá alimentar-se...”, festejava delicadamente Sorrisos-Olhos. Os azulejos da cozinha cederam espaço para uma geladinha terra preta deitar sua presença de agora em diante. A árvore-S queria companhia, entretanto.
“Onde estavam as demais letras?”, ávida a poeirinha rebelde.
“Eu não me lembro...”, disse a outra. Mal sabiam que a Casa inteira era constituída de letras – O Verbo.

(...)


Pousadas à cumeeira estavam as crianças, viram a chegada do Senhor da Casa – distraído, nem notou a presença de uma árvore que enxergava, de um rio que seguia o curso que desejasse, nem viu também os peixinhos saltitantes.

“Meus peixinhos!”, mergulhou num pulo a menina para dentro d’água. “Para fazer companhia à árvore-S” – estendeu as mãos molhadas com cinco sementes para Menino-de-Asas distribuí-las aos aposentos. Cada uma crescia a cada hora do dia. Abririam seus olhos – as folhas.

Rebentou a primeira parede. Árvore-S foi responsável por isso. Os ramos trovejavam em proporção, abraçaram a divisória setentrional da Casa e não teve jeito... ganharam as ruas.
“Era agora o lado de fora?”, não saberiam dizer as poeirinhas pioneiras. Tudo se misturava. Cogumelos cresciam. Caracóis arrastavam-se, a Natureza brotava. O Senhor da Casa sentia-se estranho... suas barbas, agora verde-mata, arregalavam arbustos por todos os lados. Ele enxergara Madame passeando no bosque. Como era linda... estendeu-lhe o braço. Passearam juntos até o cair dos dias.


“Venha até aqui”, Sorrisos-Olhos lamentava ao menino que voava.
“Não posso... apenas sei voar...”
“Quero voar contigo. Ensina-me...” – a voz, melodia aos ouvidos dele.
Mas ele fugiu e chorou. Sabia intimamente que para Sorrisos-Olhos voar, algo muito doloroso tinha de acontecer com ela, e isso viria das mãos dele...
“Por que, afinal?”, quis saber poeirinha.
“Medo...”
“Medo de quê?”, continuou a indagação.
“Medo de amar...”, finalizou poeirinha sorridente.
(...)

Muitos anos passaram. Menino cresceu. Nunca esquecera Sorrisos-Olhos. Ela permaneceu naquele lugar encantado – a lembrança dele. As árvores, bosques freqüentados pelo Senhor da Casa acompanhado de Madame. E a única coisa que restara da Casa era a porta de entrada, erguida naquele imenso jardim. Atrás dela, ainda morava Sorrisos-Olhos.

Como um dos Dias de mãos dadas com a chuva no céu, passarinhos teciam o raiar do sol, Menino-de-Asas retornara àquele bosque. Encontrou Sorrisos-Olhos, o mesmo rosto maroto de outrora. E na primeira hora daquela manhã, ele se desertara de uma de suas asas... dor insuportável! O adubo líquido que lhe escorria da fenda, fez nascer um enorme terreno movediço... eis o parto que ele fizera de si mesmo!


“Por amor?”, quis saber poeirinha romântica.
“Sim. Por amor...”, concluiu poeirinha curiosa.
“Aqui está uma de minhas asas...”, oferecia ele a Sorrisos-Olhos. “Mas tenho de machucá-la... perdoe-me a audácia!”, pedia.

“Está bem...”, inocente a voz dela dizia. Foi quando ele partiu uma de suas omoplatas. Ela gritou. Todo o bosque fez-se em silêncio! Sorrisos-Olhos esquartejada, imóvel ao chão. O amanhã respiraria tranqüilo. O Hoje tapara os ouvidos. O ontem fechava os olhos testemunhas. A dor da Vida em toda sua plenitude!

A asa!
Uma asa amputada.
Verdadeira Asa, porque fora compartilhada com Amor. E durante toda Vida (que era eterna), eles voaram um nos braços do outro... em cada mão, uma semente espalhada, e brotada ao chão, Sorrisos-Olhos e Menino-de-Asas.



(...)



“Ah! Já sei quem somos...”, festejava poeirinha a outra.
E num descuidado sopro, uma rajada de vento.
“Então, adeus. Boa sorte em teu caminho”.



~Fim~








Hellen Katiuscia de Sá
18 de junho de 2009.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

*Poemas da amiga VII

Gosto de estar a teu lado,
Sem brilho.

Tua presença é uma carne de peixe,
De resistência mansa e de um branco
Ecoando azuis profundos.

Eu tenho liberdade em ti.

Anoiteço feito um bairro,
Sem brilho algum.

Estamos no interior duma asa
Que fechou.


*Mário de Andrade


.
.

sábado, 17 de abril de 2010

Rosto d’Água

Arte: Katiuscia de Sá/ 2010.



Não quero ser planta repartida em dois!
Quero ser momento único e breve,
Da mesma brevidade espontânea da Vida – sal e terra do açúcar do Mar.

Quero ser EU nos muitos eus espalhados pelo mundo, na condição de meu EU Único e indivisível inundado de sentimentos.

Tudo reflete água em ondas que vão e vêm
Refletem de volta meu Rosto Iluminado.

Para estar ao meu lado:
o Sol,
as Nuvens
e TU;
é necessário, pois, a interjeição do
Verbo e dos Gestos e
Não ter medo de mostrar a Verdadeira Face.


Não quero ser apenas mais uma maçã mordida!

Sou aquela árvore que te deu sombra e comida nos teus instantes de solidão e tristeza.
Sou a árvore que tu plantaste no teu quintal e que alçou raízes para além dos teus muros subterrâneos, indo abrigar rumores de Vida bem longe do útero-mãe.


Floresço aos Céus.
Sou Alegria em outros Países.


Há mais Vida em quem se expõe a gritos do que nas encostas da tua cama...


Empalideço e morro diariamente...
E mesmo ao som das ondas quebrando nos declives
Meu coração sobrevive sabendo que sou meu Verdadeiro Amor,


Um pequeno Rosto d’Água.





Katiuscia de Sá
17 de abril de 2010

quinta-feira, 15 de abril de 2010

*PRESENTE – O Olho Direito de Hórus

Aos meus avós (in memoriam):
Benedito Benício de Sá Raimunda Ferreira de Sá





Arte: Katiuscia de Sá /2010


Entrei já na metade da chuva de papéis picados. A princípio a sala úmida de vento me era absorvida pelo lado de fora, até que um pedacinho me chamou para dentro. Fui. Infiltrei-me de Presente o máximo que eu pude através dos vidros de minha ampulheta.
Chegamos então ao milharal. Algumas espigas soltaram-se das bagens. Eu apenas observava. Não quis tocar fogo ainda. Decidi esperar até a próxima safra.
Vez por outra me transformava em passarinho para ir ver o Amado-Eu. Mergulhava nele e dançava minhas asas ao comando de suas mãos-de-neve... Mas a primavera era curta, tinha de retornar aos papéis picados.
Na paleta, as cores de um sol pálido, torto e frio. O céu do lado de fora era musgo-fundo-do-mar. Os passarinhos: demoninhos-pretumes, enfeitavam o musgo-fundo-do-mar em câmera lenta.
Como pedra de jardim, retornava a mim vez por outra num mergulho de lucidez. Tudo continuava do mesmo jeito à espera de minha respiração. Aí eu falei a ela:


- Respiração, espera até quinta-feira... eu te dou um novo sopro e tomarás novo lugar no mercado persa.


E no pavilhão 26, os dois Sóis reverberavam até se tocarem-néon, varando a madrugada. Sorriam-se, em pensamentos voltados um para o outro. Amavam-se! Sonhavam-se acordados...

Havia uma Fênix no céu sinalizando que hoje eu tocaria fogo. Porém, não estávamos mais no milharal. Estávamos agora no estomago de um castelo. Percorríamos suas costelas, sobressaltando as sensações do Todo.
Entretanto, meus olhos-represas abrigavam pequenos lagos que se afogavam para dentro de mim. Revoltei-me ao constatar a injustiça descoberta ao final do quebra-cabeça.




Chorei.




Chorei para dentro...




Chorei para muito dentro e decidi naquele momento nunca mais caminhar em solo alheio. Segui anjo.
Estanquei ao pé de uma laranjeira. No meio da confusão, um pedacinho me veio. Pediu-me socorro. Então, desenhei-lhe o mapa que enxergava em sua fronte. Pobrezinho! Não via porque ainda não aprendera a contemplar-se... dei-lhe um mapa inacabado e algum lápis de cor para que completasse a figura.


O pedacinho se foi, segurando esperanças nos olhos. E minha revolta-lágrima-para-dentro transformou-se em Luz a me guiar. Continuava anjo.


O musgo-fundo-do-mar estava menos musgo e o sol pálido-metade, entortava-se na quina do céu a nos observar. Ele me disse para ter calma e acreditar... acreditar no que eu sentia e não em que eu via. Foi quando soube que estava acordada, e era quase dia, Dia-Presente para os dois Sóis da madrugada.

Dessa vez nós construiríamos a História, e a História era o que conseguíamos sustentar em nossas mãos. Decidi carregar apenas a jóia mais rara que encontrara pelo caminho – a minha cegueira... e meu coração aqueceu-se novamente, na minha escuridão dilatei-me no ambiente e os papéis picados viraram algodão doce.

O mago soprou em meu corpo o pó do conhecimento e a serpente abocanhou seu próprio rabo. E o veneno matou meu oponente.

No dia, que iniciou ontem e continua hoje, comecei o processo vermelho. Não haveria juiz, apenas consciência, e esta nunca nos rouba... Ao encargo dela retornavam as idéias.


As folhas da laranjeira entristeciam ao perceber que ainda não havia igualdade entre os dois corações. Uma poeira-neblina turvava o chão.


Estendi-lhe as mãos e passo a passo, compreendia sua dança vagarosa. Acompanhava cada movimento.


Entregava-me.




Entreguei-me...




Estava entregue.


Acalmava-me ao pensamento do processo vermelho, imaginando os sininhos que meu corpo abrigaria a partir de agora.

- Amor... não tenhas medo quando eu não estiver em ti. Eu sempre retornarei, porque eu sou tu!
Expliquei-lhe que havia apenas uma chave, e ele próprio a tinha. O castelo, o milharal e tudo mais, apenas ele percorreria. E tudo delgava-se ao labor delicado de suas mãos-de-neve.

Nasciam de mim os primeiros sininhos. Era o sinal de que eu estava pronta para a viagem no trilho-de-velas. O timoneiro guiava-me. Era-me estranho estar sob a escolta de outrem. Não tinha escolha, afinal decidira como bagagem apenas minha cegueira...

O capitão sentou-me ao cabo de uma janela. Durante o percurso desgarrei-me de mim. Ouvia os sons, as vozes, mas adormecia consciente aos mesmos. O timoneiro insistia em me avisar aonde eu desceria.

À minha distração pariu-se uma voz feminina. Era uma mulher cujo rosto vinha emergindo das ferragens. Interessando-se pela minha cegueira, ofereceu-me como moeda, um olho de Hórus (o esquerdo), que estava enterrado em seu bolso-de-camisa. Aceitei a troca. Então, a mulher o colocou entre minhas sobrancelhas, e este foi desfazendo-se sob minha pele, até fazer-me enxergar. Ainda estava anjo.

“Desça aí... vire à esquerda e caminhe até o fim!”, disse-me o timoneiro. Mas onde era o fim? Fui indo, indo, indo... e nunca chegava ao fim. Na rua, distraia-me junto ao vaivém dos vaga-lumes. Das pessoas eu não sabia nada. Desliguei-me de fora, meu corpo doía devido à saudade engolida. Amado-Eu permanecia em mim, sem estar presente do lado de fora de mim. E isso me fazia doer...

Sabia que não havia mais volta. Passei para o além do Agora, e com isso meu Espírito não mais me pertencia.


Era dele!

Apenas dele!



Nele eu moraria, enfim!



Sofreria seu Inferno e festejaria seu Paraíso. Era nossa História apoderando-se de nós dois. A Infinitude nos possuía!


Ao final das nuvens enroladas, estava o Lugar. Pedacinhos assanhavam-se por todos os cantos. Cheguei a tempo! Tocamos fogo. Mas, fechei meu olho e acordei passarinho a contemplar Amado-Eu. Estava tímido, mas sutilmente feliz e mimoso.

Chorei ao ouvir sua Alma cantar para a minha. O Sol levantou-se aqui dentro e foi banhá-lo a vida em sedas. Meu corpo respirava ele... e ele, desapercebido de mim de tão emparelhados que estávamos, sussurrava-me inconsciente, “fique”.


Seria eu (para sempre) uma nau a navegá-lo. Amava-o profundamente, suas mãos-de-neve me mostravam o mundo que eu transformava e devolvia Presente. Dividi-me em cinco, para tocar-me fogo novamente. “Haveria agora os sons e eu...”, pensava.



Após me transformar em cinco, instantaneamente retornei a mim, Pedra-Angular, por acaso, morava no chão que eu pisava estando ali. Ela me desafiou. Disse-me que eu não era capaz de transformar-me em cinco novamente. Dei de ombros. Virei cinco, e desses cinco, cada um virou-se em três... só sei que ao final, estava quase cem.



Por desobediência minha, Pedra-Angular nos mandou aos Infernos. Estávamos estacas fincadas no chão. Ouviam-se gritos, fugídios-sons, contorções, e torções; e lamentos, conventos, cata-ventos e tormentos...

Não sentia pena, nem dor, nem nada. Não morava sentimento no meu corpo fincado no chão dos Infernos. Entretanto, assombrosamente, esculpia-se em mim, um leve sorriso. Foi quando as paredes daquele Lugar perceberam que eu não os alimentava, cuspiram-me de volta imune rente ao jardim. Pedra-Angular apenas subiu-me os olhos em silêncio, e eu parti.

Os pedacinhos fincados no chão dos Infernos continuaram suas lamentações. Como um relógio emperrado, repetiam-se, esquecendo-se de quebrarem os olhos em outra direção para que pudessem escapar àquele Lugar. Nem olhei para trás. Determinada estava em tecer o Presente.


Não quis carregar em mim Amado-Eu nessa hora do Dia, quis poupá-lo do horror de estar aos Infernos. Aconcheguei-lhe amorosamente na página delicada do Tempo-Futuro, e segui sozinha. Ainda estávamos num Único-Dia. Amanhecia e anoitecia apenas em mim...

Amado-Eu dormia criança, lindamente menino. Suas mãos-de-neve esqueciam-se ao navegar em sonhos-veneza. Beijei-lhe a fronte e segredei-lhe Amor. Velei-lhe os sonhos como uma Valkíria-Mãe. E às minhas asas, fortemente seguras e solares, Amado-Eu sonhava.



Amado-Eu acordara homem feito, encarou meu olho de Hórus em busca do “como?”.

Eu era labirinto. Amado-Eu ainda não compreendia que o dentro e o fora de mim era através dele. Ele era meu início, meio e fim. Através dele eu enxergava; transformava e devolvia Presente.

Num relâmpago, percebi o que lhe faltava; era o olho direito de Hórus. Cabia a mim, encontrá-lo e oferecê-lo a Amado-Eu.

O Amor dele transbordava aos poros e minha Alma era a neblina-rosa que nos envolvia. Ainda estávamos no mesmo Dia, e eu ainda era anjo.



O Amor me vinha...




Chegava-me,





Tomava-me para si.





Éramos néon,





neblina-rosa um para o outro.





Meu processo vermelho continuava sem os concretos. Mais sininhos brotariam do meu corpo num assombro sonoro; somente desse modo Siddartha me chegaria. Contei-lhe que caminhava com minha lanterna à Luz do dia. Ninguém notara... Então, pedi ao Camaleão para sombrear o Sol com as cores noturnas.

Caminhei com minha lanterna ao escuro da noite, em busca do outro olho de Hórus. Siddartha disse-me para ofertar o mimo para Amado-Eu poder enxergar o que eu enxergava. Desse modo ele saberia o “como?”.

Nesse trecho não havia pedacinhos. Dormitavam todos flutuando à cauda de um cometa que passava. Traziam de volta as cores do dia.
Segui em busca do olho que nos faltava. Como um cíclope, colhia os momentos que formariam nosso Presente.


- Amor atravesse-me amarelo-sol, queime a mim em teu inferno-de-amor. Sejamos Paz...


Eu disse “sim”... voava borboleta desajeitada e leve dentro do coração dele.


Eu era borboleta, ele, meu Jardim-Delicado.


De repente um sopro oriental me fez reparar que a parede soltara um longo fio grisalho, indo embolar-se à dobradiça da janela fechada. Pensei em atravessá-la. Mas iria sair da estrada... Talvez não fosse prudente...
Enraizei meus pés naquele jardim e cessei todos meus movimentos... comecei a pensar com o coração. Existia um coração dentro de mim. Tal fato emocionava-me... Já podia oferecê-lo ao Amado-Eu. Mesmo estando pequenino como um botão de rosa, meu coração já nascera para ser apenas de Amado-Eu.


Não sabia onde começar a procurar o mimo para Amado-Eu. Saí da estrada. Encontrei um anão japonês. Ele estava à sentinela. Olhava o horizonte ultrapassando as árvores da paisagem. Perguntei-lhe o que esperava, “minha donzela chegar...”, dizia.

Era-me intrigante sua postura, pois ele sequer se mexia! Reparei que atrás dele havia outro rosto e outro corpo... Era sua donzela mirando diferente horizonte. Perguntei-lhe o que esperava, “a chegada de meu amo e senhor...”, respondeu-me.


“Desse jeito nunca vão se encontrar...”, pensava. Presos um no outro fica difícil voltarem-se para si. Siddartha havia me falado que o Amor verdadeiro já está em nós mesmos, assim como Amado-eu e eu própria.


Apiedei-me... Segurei a mão direita e esquerda do anão japonês e entreguei uma à outra. Concluiu-se o encontro. Ambos horizontes formaram um círculo espelhado ao redor do anão. Ele e sua donzela puderam se entrever, enfim! Adentraram-se, e absorvidos, os horizontes expandiram-se, e nasceu outro Dia!


A essa luz projetou-se para mim uma janela occipital. O Passado estava lá dentro. Os pedacinhos treinavam a luta. Eu não reconhecia aquilo. Escondi-me do Generalzinho-de-Botas. Virei árvore na floresta, mas o General me reconheceu, não disse nada, porém não me deixou entrar no Passado.


Nesse novo Dia viajei muito até chegar ao pavilhão 26. Percorri Amado-Eu de ponta a ponta. Saí de sua rua durante uns minutos, que se seguiram séculos. Quando eu voltei, ele estava bailarina-homem. Muito bonito... ele estava muito bonito como bailarina-homem!


Devido ser um Novo-Dia-Passado, meu processo vermelho nem havia começado. Estava branca com meus sininhos ainda por nascer. Amado-Eu bailarina, e eu ainda anjo... Minhas asas impediam-me de abraçá-lo, lamentava tanto.


Em minha embriaguez atemporal, não lembrava de muita coisa, o Novo-dia-Passado me dificultava, não me dava pistas onde procurar o olho direito de Hórus.

Tudo estava cinza-amortecido. Os pedacinhos ensaiavam o que fariam futuramente, e eu alheia. Estava sempre fora do Tempo. Meu relógio não funcionava igual aos demais, por isso podia estar sempre com Amado-Eu.


Todavia, sem meus sininhos não poderia permanecer no Novo-Dia-Passado. Retornei ao Presente numa só respiração. Passei novamente pelo anão japonês, vi suas duas faces. Muito rapidamente, meus pés pisavam outra vez a estrada, e o dia voltou Presente consecutivo.


Amado-Eu deu-me dois lances de olhos, eu os agarrei com toda força e felicidade. Estão aqui para quem os lê. E eu pude dormir uma só noite, antes de tocar fogo novamente.


Na manhã seguinte-agora-ainda acordara do primeiro descanso. Estava quase morta. O ar faltava-me. O olho ardia-me. O fio da linha da minha vida estava prestes a rebentar. Achei que o botãozinho-de-rosa, que mal acabara de nascer-coração em mim, iria implodir-se.


Caminhei ao longo do dia, cansada... extremamente cansada. Minhas veias vazavam a perfeição das Horas, escoavam-se, jorrando não-pensar... era o primeiro esforço de meu coração recém nascido.


Permanecia cansada... extremamente cansada. O sono levara parte de mim ao intervalo. Fiquei parte lá, parte aqui. Daí a fadiga que me acompanharia desde então.


Encontrei os pedacinhos novamente. Aquecemos brasa. Ardemos chamas de constelações. Alastramo-nos pela sala na luz suprema de um Fogo Real. Generalzinho-de-Botas adicionou-me ao Livro.


Fomos novamente ao milharal. Viramos quatro, depois mais quatro e mais quatro... terminamos fogo! Três oponentes foram aos infernos, e lá ficaram.


Meu sopro cada vez pequeno... iniciava o outro lance da ampulheta! As Horas regressavam agora. Minhas energias alastravam-se para Amado-Eu. Submissa ficava, nascera para servi-lo... e eu estava feliz.

Durante a metade-magenta, forjava minha espada. Treinei bastante com ela, dancei cansaço. Fiquei sem pernas e com cem intervalos de mim. Dei mais da metade de minha vida ao Tempo para procurar o outro olho de Hórus fora da estrada, por isso enfraqueci para o exterior.


O Tempo ficou segurando para sempre o fio da linha da minha vida. Entretanto, estava eu serena e dócil, por servir Amado-Eu. Não me importava com o cansaço, nem com o morrer. Permanecia, permaneci, permanecerei...


E na madrugada-surda e solitariamente bordada ao invisível, soube onde estava o olho direito de Hórus, o qual tinha de oferecer para que Amado-Eu enxergasse o que eu enxergava...


Aproximava-se a travessia e comigo estavam apenas meus braços, minhas pernas e um único olho míope... eram-me suficiente. Em algum momento anelou-se diante de mim uma tribo de gafanhotos. Dialogamos ao tronco de uma árvore. Amado-Eu mais e mais enraizado em mim. Respirava-o dentro e fora dos verdes.


A essa hora do Dia-Presente estivera eu não-pensar. Havia sentimentos! Maravilhosamente sentimentos agitando-me mar-calmo encanto piano-diamante de ondas no ar. Os anelados iam e vinham Amado-Eu para mim.

Passiva e dócil estava o eu à sua vontade. Respirava gueixa ao toque de suas mãos-de-neve. Nossa conexão a ziguezaguear flores ao violino-coração de Amor. Éramos primavera solar em pleno verde-musgo-oceano.

Minha tarefa consistia em manejar a espada forjada e a lanterna que eu mesma fizera. Seriam elas minhas moedas de troca em favor do olho direito de Hórus quando esse momento me estivesse em mãos.


Voltei criança e a cada passeio do sol, Amado-Eu enxergava um pouquinho de mim, entretanto com a vista ainda turva. Seu penetrar nas coisas seria aclarado através de meu sacrifício futuro. Nossa raça era ciclope e dourada desde os remotos arenitos deste chão, mas Amado-Eu não se reconhecia por completo em mim, em vigília caminhava...


Brilhavam as fagulhas transformadoras do Presente, e através do tato ele se aproximava, somava-se timidamente e delicadamente Amor a nutrir o pequeno botão-de-rosa que crescia invisível e invulnerável ao meu lado de dentro.


A travessia iniciara-se! Minha submissão versou coragem ao corredor negro que amparava meus pés. Nada vi. Nada senti. Nada temi. Nada me parou. O impulso que me movia era apenas Amado-Eu a fortalecer-me. A felicidade ardia-me certeza-esperança, em breve Amado-Eu me enxergaria por inteira.


Das vezes que fui guerreiro, mago, raposa e mulher, a ventania veio aos ouvidos e me disse: “existirão seus filhos, resistirão seus filhos e haverá felicidade-marcial no mundo”, compreendi que o Dia-Futuro seria aquecido pelo Fogo-Coração de nossos antepassados.


Eu-Anjo e Amado-Eu: os versos não mais solitários.



Abotoaduras de um lado e múmias-etéreas-ferrugentas do outro. O espaço imensamente vazio preenchido por olhos compactos e viajantes em busca das letras.

Entrei na Mente. Era lindamente ferrugenta e neblinada. Todos os livros do mundo estavam lá iluminados e guardados pelas grandes lentes. Um facho quente-adormecido furava as vidraças emprestando vida ao que já foi.



Os pedacinhos que ali estavam moviam-se lentamente como se sonhassem. Senti-me Felicidade. Estava na Mente pisando descalça no solo do Saber. Era verso e Amado-Eu também.

Éramos juntos!


Éramos juntos!




Após o gélido vazio da Mente, soltei-me de mim. Fui nevoeiro a esconder o unicórnio que estava de passagem. Anotei o recado numa concha de papel, enrolei-o ao ouvido, enfiei para dentro. Sai às carreiras atrás do Tempo para tatuar xadrez.


Reparei em volta e a condução da Mente fora absorvida pelo meu corpo. Alimentava-me de Saber sensitivo. Era maravilhoso! Os versos no Livro, e este na Mente-Meu-Corpo pintava as paredes do beco sem saída onde me aguardavam os binóculos. Marcamos outro horário aos ponteiros soltos do Tempo. Prometi voltar e voltaria, e voltei!


Da parede ultrapassei de letras a gestos. Amado-Eu tímidos versos, fazia a leitura escrita para nós dois, e na senil manhã estivemos face a face. Ele me enxergava parcialmente. Eu era metade anjo e ele não me via nada...


Sorri dentro de mim. Percebi seu doce e puro Amor como pequenina criança em meu ventre. Meu botãozinho-de-rosa espalhara-se ramalhete surgindo um chão em cores. Amado-Eu caminhou lentamente sobre seu Reino, que era eu em Alma.



Eu era dele.



Apenas dele...




Fui raposa, depois mulher. Versei todo meu Espírito para acompanhá-lo poesia. Éramos os versos não mais solitários. “Ele fica tão lindo, quando me chega tímido...”, pensava sorrindo para dentro de mim. E os olhos humanos de Amado-Eu abriram-me a passagem do beco sem saída. Entrei, e ao sair deixei minha espada e minha lanterna dentro da sala.


Amadureci pisar. Nua fiquei diante de todos para poder retirar o olho direito de Hórus que estava sob a guarda do fundo-vazio que se formava ao meu redor. Estava eu, entre o lá e o aqui.


Generalzinho-de-Botas e Pedra-Angular abriram as mãos e tocaram-me asas...



Voei!



Voei!


Voei o mais rápido e alto possível para devolver o olho direito de Hórus para Amado-Eu. Agora não era nem mais lá nem aqui. Estávamos no Livro do Mago.


Estou ardendo em febre... Os pedacinhos, a partir de agora, cientes uns dos outros, como plasticidade a dançar contínuo... Eu amanheci versos e Amado-Eu também.


Estamos aqui.

Somos aqui.
Amado-eu em mim e eu poesia em movimento à vontade e Amor de suas mãos-de-neve, para todo sempre.

O Amarelo apavorou-se! Sua manhã sairia do pêndulo e eu não seria mais lá. De posse do objeto-olho e de minhas asas, haveria de efetivar o sacrifício. Deformei-me raposa. E dessa vez meus pulmões não suportaram. Faltava-me a vida. Seria esse o preço... Faltava-me a vida. As areias retornavam à ampulheta. Faltava-me a vida.

Os ares não preencheriam mais meus pulmões. A respiração vociferou: “eis-me aqui. Agarra-me e vede além dos nevoeiros...”.
Amado-Eu em terra caminhando os pés no sol. Eu ardendo em febre, deslocava-me de mim num assombro sobre-humano. Soltaram-me peles... Lascaram-me ossos... Evaporavam-me poeiras... Nada restou... Nem lembrança... Nem dormência. Não havia pensar. Apenas Samadi.
Atravessei tempestades e ventanias, os pedacinhos unidos em uníssono. Generalzinho-de-Botas sorriu, Pedra-Angular moveu-se. Eu me desorientei anjo para pisar solo. Porém, dessa magia me era proibida. Nasci anjo, não humana... Então, em meu sofrido e derradeiro suspiro me desfiz.


Estou em tudo. Amado-Eu me sente e me enxerga em si. Os dois olhos de Hórus são sua fronte anelada e torpe. Ele me vê, finalmente.

Fui vencida pelo Tempo incompreensível e nele sangrei invisível. Meu processo vermelho findara, afinal! As vagas encontraram cada um seu par de sons. O Amor mais Sublime e Belo nascera delicadamente no subsolo de Amado-Eu extrapolando as cercanias do Pavilhão 26 – ganhava o sol, Flor-de-Cesário.
Tornamo-nos universos paralelos e helicoidal um no outro... Somos com todos que percorreram seus caminhos particulares, chegando até o final deste contar. Nasci e morri inúmeras vezes até compreender que somos imortais na literatura do universo – o Livro do Mago, que hoje está amanhecendo em tuas mãos.


~FIM~







~PRESENTE - O Olho Direito de Hórus~
*Escrito e dedicado para meu querido amor: Cesário Augusto Pimentel de Alencar.


Autoria: Katiuscia de Sá
escrito entre 20 de agosto a 18 de setembro de 2008.
(Sempre às madrugadas)
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*Esse texto é meu Diário de Atividades, (poeticamente) escrito durante meu processo criativo para o espetáculo "Tayo To Ame", peça-conclusão de meu 1° ano no curso Técnico de Formação em Ator, pela Escola de Teatro e Dança da UFPA. A montagem cênica foi orientada pelas professoras: Wlad Lima e Karine Jansen.

segunda-feira, 12 de abril de 2010

A Primeira História

Fotos e tratamento: Katiuscia de Sá
Local: Cemitério Santa Izabel - Belém/Pa

Uma imagem branca olho-de-peixe ao lado direito. À frente disso, manchas multicolores em matizes diversas variando do róseo ao laranja-avermelhado. Um sol cada vez mais tímido, tímido... até desaparecer por completo, deixando-se proteger pelas horas passadas.
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Sua saudade era das gentes da infância: seus avós, seus brinquedos, bichinhos de estimação. E mais recente, seu gato malhado que falecera.
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Levava dentro de si muito frio. Um Ártico completo em seu peito. Isso fazia verter água dos olhos por vezes.Sons de passoa dentro de si, vagando ecos num Silêncio profundo. Carregava nos olhos do coração todos os que amara. Todos mortos.
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Baixou os olhos na esperança de parar aquele rio vertido em fins de sol... lembrava-se de uma história que um dia alguém lhe contara:
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“Havia dois anjos de Luz, muito claros, envolvidos por muita Luz... mas um estava caído, paralisado por lama e dor, enquanto o outro voava livremente em círculos acima deste caído e machucado...”
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Enquanto falava, suas mãos balançavam no ar com se fossem o próprio anjo que voava querendo ajudar o companheiro caído. Ele disse que ela voava há muito tempo a procura dele, e quando o encontrara, este encontrava-se muito machucado. Mas ela insistia em querer ajudá-lo, porque o amara desde sempre...
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“Daí ocorria um impasse, ela querendo ajudar o companheiro alçar vôo novamente, mas havia a dúvida e perigo dela não ter força suficiente para esta tarefa, e também afogar-se naquele rio de lama...”
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Então, parou subitamente de falar, arregalando os olhos rumo ao nada... pensou em algo longamente enquanto o vento noturno farfalhava seus cabelos alvos e brilhosos, deixando-o abandonado em si mesmo... Olhava-me furtivamente, com receios...
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“Havia outro anjo voando, (um anjo-negro) ameaçando os dois apaixonados...” E me olhou nos olhos novamente:
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“... eu não sei como terminar essa história... eu sempre soube o final das outras histórias, mas dessa, eu não consigo terminar...”
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Na verdade ele não sabia o final dessa história, porque ela depende de quem ouvia..., dependia da Verdade contida naquela atmosfera invisível de um mundo lúdico e desconhecido de todos, exceto daqueles de quem se falava – os anjos apaixonados. O final dessa história, de minha Alma, eu digo:
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"o anjo que voava foi (e sempre será) forte o suficiente para estar ao lado de seu amor. Ela conseguiu erguê-lo e juntos alçaram vôo infinito. O outro anjo-negro, ao ver a Fortaleza que os amantes juntos brilhavam, nada mais pôde fazer, a não ser ir embora para sempre do caminho dos anjos de Luz, pois havia neles Verdade suficiente para superar toda escuridão... Juntos alçaram vôo perfeito! E assim aconteceu para todo sempre”.
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Katiuscia de Sá
07 de março de 2010
(ao pôr-do-sol)

Meu Hobbie (fotografia)

Fotos e Tratamento: Katiuscia de Sá
Local: Cemitério Santa Izabel/ Belém-Pa
Agosto de 2009.
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sexta-feira, 9 de abril de 2010

ILUMINÁRIOS - Livro Um

Imagem: René Magritte
(Para Vicente Franz Cecim)

Havia acordado mais cedo naquela madrugada. Seus olhos já estavam cheios de Sol, e suas mãos com orvalho escorrendo abastecendo as beiras de rio. Os pássaros matutinos gritando e chacoalhando as asas rumo ao nascente. Sabiá cantarolava algo para dona Matinta não se aborrecer e incomodar os moradores ribeirinhos, que a essas alturas ainda nem se libertaram de seus sonhos vagarosos.
Levantou-se. Caminhou arrastando os pés nus sobre as serragens úmidas. Murmurou algo compreensivo apenas aos sapos esparramados pelo matagal calado. Sabia que já chamavam por ela... Mas naquele dia não queria ir, porque havia sonhado com Almas-pardas transparentes pelas narinas.
Por isso abriu Sol nos olhos antes mesmo do galo cantar. Precisava limpar os ouvidos e as peles desses sonhos-pardos. Mergulhou neblina adentro. Cerrou os olhos de Sol vagarosamente para que os mosquitinhos não lhe afogassem a vista. O zumbido, porém, a levou para outro lugar. Havia cigarras espalhadas no escondido.
Todas elas cantando algo sussurrado. Uma música de nota só. Ainda carregava Sol nos olhos, mas estava morno. Quase cinco da tarde. Caminhou com seus pés nus sobre o lodo morno, deslizou um pouquinho até um carvalho. Havia nele algo grafado no tronco. As letras dançavam muito felizes, não conseguia concentrar o foco no que escrito estava.
De repente, uma mão cheia de galhos, arrebatou sua atenção. Suspirou o olhar na direção. Era Verde. Ele a estava a chamar desde a madrugada. Queria-lhe um pequeno favor...
“Entreguei-me a você pela manhã...”, repetia sua voz baixa, como delicado cristal-melodia em águas derramadas sobre um bebê em batismo. Sua garganta abrigou um coração soluçando em compassos. Uma flecha cheia de vermelho atravessara-lhe o corpo de ponta a ponta!
Nunca sentira isso d’antes.O Sol de seus olhos conheceu a Noite naquele momento. Suas mãos cheias de sereno derramado secaram subitamente, e sua pele de estrela mudou de cor. Ele a havia chamado. Sentia seu coração em compassos. Essa Música tirava a pequena de órbita, carregava-a serenamente pela neblina de seu coração.
E lá se foi ela. Fechou os Sóis, abriu a fenda sobre a cabeça em repouso. Navegou para dentro de si novamente. Esqueceu o canto do Sabiá, também de dona Matinta, que já se ia em direção às casinhas de palha, pedir Liamba...
Ele via seu rosto por dentro do dela. Sentia o frio de suas mãos, estava em seu mundo Verde-Sabor. Mergulhara até lá para nunca mais encontrar o caminho de volta. Perdeu-se no incompreensível Amor que ambos conheciam dentro de si.
Olhos-de-Sol abraçou sua Árvore. Imaculou cada pequena folha. Sobreviveu cada ninho sepultado em passarinhos. Escutou Uirapuru declarar Amor Encantado para ambos. Sobre a proteção das matas e das águas cheias de Jarinas flutuando, as cigarras cantavam seu nome junto ao dela, que era Nau nua percorrendo Pensamento Único.

Como aquele pequeno ponto de retumbão estivesse atuado pelo chão, no momento em que dona Matilda Matinta arreganhou os dentes, suspendeu o sobrolho esquerdo em direção à rua. Alguém passava nesta hora imprópria, trazia uma porção de tabaco em fumo enfiado nas algibeiras. Tocou-lhe com tudo naquelas mãos de feiticeira; e a velha não se fez de rogada... esfumaçou, sumindo na própria neblina, pisando molhado pela mata-escorregadia.

Sabiá que cantava, virou cumbuca a carregar água para lavar menino batizado. E ele nem chorou com a frieza líquida apertando-lhe o corpo, pois ainda não tinha aberto seus olhos de Sol. Foi quando lhe bateram o bumbum. As cigarras, enfim, todas cantaram seu nome: cccccccceeeeee....ccccccccciiiiimmmm...
cccccccceeeeee....ccccccccciiiiimmmm...
cccccccceeeeee....ccccccccciiiiimmmm... foi uma cantoria pelo resto da madrugada. Juntaram-se a esses, os grilos e os cururus à beira dos rios. Havia nascido um menino branco com olhos de Sol. Viera nascido e batizado pelas mãos das matas. Um índio branco.

Havia uma pequena lagoa onde os menino batizado pelas cigarras brincava de ser peixe. Um dia, mergulhou em seus próprios olhos. Rei de castanhas-águas; enquanto sua rainha estava por vir...

Naquele momento, cururus chacoalhavam seus papos, crescendo e amofinando... crescendo e amofinando... até que foram aninhar-se junto à uma vitória-régia. Foi ali que as matas encontraram uma menina que também tinha olhos de Sol.

"Então, acordei abrindo meus olhos de Sol. Avistei um Sabiá janela a fora. Estava igual a todas as manhãs. Cantava desesperado para dentro de mim. Toquei em meu cocuruto, ainda aberto. Fazia escapar aquela neblina da qual eram feitos os sonhos. Deixei-me ficar com a cabeça aberta, não haveria tempo de fechar..."

Em pé ante pé, ela foi se afundando até retorcer-se minhoca gordinha celeirando adubo no terreno. Sua árvore nasceria ali. Ele sabia disso. Plantava idéias-verdes na cabeça dela antes dela abrir seus olhos de Sol para o mundo.

Levava calor aonde chegasse e vida para quem a olhasse. Aquelas mãos de galhos puxou-a para si, quando se deixou escutar das cigarras. Era o nome dele em seus ouvidos. Anoitecia. O candeeiro estava quase aposentado da chama. Lambeu-lhe por completo quando o último suspiro da madrugada escorregava à beira da nuvem.

Foi lindo o encontro. Os dois estavam na mesma Viagem Invisível. Tecia-se a oOutra História, que ninguém contou, porque não sabiam contar... era contada sozinha por ele e por ela, às vezes. O encantamento era tanto, que envolveu a cabeça de ambos. Aqueles olhos cheios de Sol formavam um sorriso. Estava enamorada daquele Verde-Homem, de nome cantado pelas cigarras. O mês era Agosto, do dia sétimo. A Floresta que andara...

Então daquela floresta num assombro, foi derretendo-se em cores turvas, indo se depositar às margens dos rios e às testas dos igarapés. Escorria junto aos pingos do céu. Durou três dias e três noites. E depois disso, seu Pererê-Piaba remendou o telhado de folhas. Quase inundou o quintal com tanto aguaceiro! É que a chuva estava com raiva de ainda não estar aqui. Pois agora está! E está feliz!

Menino roto com os olhos de Sol nem imaginava que o céu podia misturar-se com as árvores e ter cores turvas junto aos igarapés e rios. Foi assim que viu a pororoca. Um retumbão de águas alegres arrastando peixes e tudo que junto estivesse.

Mas Jacaúna, que era primo mais moço de Anhangá não gostava dessas brincadeiras das águas, pois foi numa dessas que sua mãe virou cardume de peixes lá pras bandas de Soure. Amarrotava a cara, ele, toda vez que rebentava pororoca.

Haja os peixes pularem. Era de dia. Era de noite. Era uma Ave Maria!

Pois é... e a pequena havia saído de casa com o cocuruto da cabeça aberto... raspou o topo da cabeça, pintou-lhe a tez de urucum pra sair imaginação. Voava a pequena! A dois passos dali, chacoalhava as asas, uma arara muito esperta. Era matraqueira. Implicava com o tucano as pupunhas penduradas. Como o tucano tinha mais bico... arara só podia gritar o mesmo discurso furado.

Às duas cinco horas de todos os dias arara estava a tagarelar. Foi quando descobriram que não era arara, era curica! E não sabia falar. Fiz vôzinho devolver a bichinha. Ninguém mais agüentava essa briga de garganta.

Tornava a pequena ao quintal. Voltava-se ao céu com seus olhos de Sol, era noitinha quando ouviu nome do menino branco batizado pelas cigarras. Ouviu o nome dele, mas não entendeu o que era aquilo. Foi sonhar, então.

E daquela noite teve encontro na neblina com seu Pererê-Piaba. Viu bem de perto sua pele cinza-marrom; viu bem de perto seus dentes apertando fio de mato seco-serrado; viu bem de perto seus olhos de cobra possuída. Estático estava agachado num pedacinho escuro. Silencioso como era. Apenas indicou à pequena por onde passar. A menina saltou da imaginação! Havia emagrecido cinco quilos por causa daquele sonho.

Emagreceu tanto, mas tanto... a ponto de suas asas de libélula suspendê-la a altura das matas. E desde àquele sonho não comia; não bebia; não sorria; não brincava; nem cantava. O povo achava que ela fora encantada. Além das asas de libélulas, seus olhos de Sol estavam mornos e sumidos em nuvens de suspiros...

“Leva ela pra aldeia pra ver Domã-Naã benzer...”, diziam. Mas quem leva? Se todos tinham medo da mata! “Vai sozinha! Quem mandou ouvir nome que não devia”, era a solução. Descobriram que além de olhos de Sol, tinha ouvidos de tamanduá.

Vistou para um lado. Vistou para o outro. Aprontou-se com tintas e plumagens de proteção e reconhecimento de seu povo, foi em direção à Floresta que andara. E desde a vez que ouviu o nome de menino batizado pelas cigarras, adentrava mais e mais nas veias de rios espalhadas por todo aquele Branco Rosto inundado de Vida.

A tempestade furiosa fazia tudo desaparecer diante daqueles olhos castanhos-mel. Quando estavam às tinas abarrotadas de aborrecimentos, fazia seus cabelos aloirados-rubi-de-fogo-do-fundo-da-terra, dizia sua língua toda junta de palavras.

Mas quando a tempestade apenas brincava de ser tempestade, vestia-se de cabelos alvos como horizonte de neve. E seus olhos ficavam pretos como noite sem Lua. Não era tempestade. Era apenas formação rochosa das nuvens.

Entretanto, nesse caso era tempestade do primeiro exemplo... Tudo estava sumido. Sem dó nem piedade a pequena foi deixada às próprias pernas. Adentrou na mata sumida pela tempestade possuída, sendo que a pequena também sumira naquele branco todo.

Enxergava-se de longe somente os olhos de Sol-poente da menina. Algumas tribos mais do interior do mato achavam que se tratava de algum Espírito Mau que vagava pela floresta. Foi daí que inventaram o Boi-Tatá. Pensavam os índios, que aquelas luzes perdidas na tempestade branca eram olhos de homem peludo em cima de morcego gigante que não voava... mas eram apenas os olhos da pequena reluzindo no meio daquele branco sumido.

Quando a tempestade se acalmou, devolveu a mata para onde estava. Mas não estava no lugar de antes. Por isso diziam que era “Floresta que andara”. Vozinha dizia que nessa floresta havia olho d’água que fazia perna de menina-moça afundar na terra, e da cintura pra cima moça que fosse engolida pela terra virava tajá-de-leite. Quando os homens iam caçar e avistavam terreno repleto de tajá-de-leite, sabiam que estava por perto o Boi-Tatá para vigiar seu jardim-de-moças. Corriam todos arregalados.

Nem isso havia. Depois da tempestade tudo mudara de lugar e o caminho indicado por Pererê Piaba não era mais onde ele disse que era.

O sol estava quase se deitando quando as cigarras cantaram novamente: cccccccceeeeee....ccccccccciiiiimmmm...
cccccccceeeeee....ccccccccciiiiimmmm...
cccccccceeeeee....ccccccccciiiiimmmm...
Dessa vez cantaram em sustenido

#
Era Lua Nova, misteriosa, de sorriso difícil. Olhava a pequena perdida na mata. Mas a pequena aprendeu a não chorar por qualquer coisa, porque lágrimas de olhos de Sol eram de muito poder. Uma vez quando era criancinha ainda, chorou em cima de uma semente de Jatobá. Nasceu e cresceu tudo tão rápido, com as raízes rasgando o chão. Indo o Jatobá chorado conversar com as estrelas. A pequena não chorava. Guardava lágrimas para momentos especiais.

Então, a pequena olhou bem para a face da Lua Nova, viu que ela não sorria. Estava pálida. Subiu num açaizeiro e passou um pouco do urucum de sua face na face da Lua Nova. Ficou bonita. Encantou os homens na Vila de pescadores. Esses nem mais olhavam pras moças que passavam. Havia festa no povoado pra comemorar dia santo.

As luzes redondinhas penduradas confundiam-se com poderosos vaga-lumes. E como os caboclos estavam ajuremados pela Lua Nova com urucum nas faces, nem se atiraram para dançar com nenhuma moça da festa.

O boto viu a face de Lua Nova e percebeu o que havia... aproveitando-se disso. Saiu da água. Fez-se homem bonito. Vestiu seu melhor terno. Calçou sapato lustroso. Escondeu a cabeça em seu melhor chapéu. Era moço lindíssimo! Fez seus olhos verdes para encantar mais ainda as moças solteiras da festa.

Boto em pernas de calça dançou e fez o que quis com as moças. Ficou nisso até pelas quatro da manhã. Depois foi embora abandonando-as ao som de seus próprios suspiros. Estavam abaloadas... já carregavam uma nova vida no interior de si. Depois de um tempo boto voltaria à Vila para visitar seus futuros filhos, que seriam todos machos.

A pequena não sabia que por dividir o urucum de suas faces com a Lua Nova causaria todo aquele rebuliço. Enrolou-se numa folhona de vitória-régia. Abotoou seus olhos de Sol a esperar pela manhã seguinte. Sonharia em como chegar até Domã-Naã.

Depois da sinfonia de grilos ao afundar da tarde, emergiram enormes cururus arrontando sem parar à beira dos igarapés. No interior da selva olhos de onças famintas vagueavam pelas frestas das árvores sumidas no pretume da noite. A vida pairava normal na Floresta que mudara de lugar, aonde a pequena ia se perdendo mais e mais...

Após esse sono, até o último, aconteceram inúmeras mudanças, e uma delas foi ao temperamento daquele índio branco. Quando ouviu voz da pequena com olhos de Sol, sentiu que talvez fosse parar de andar de um lado para o outro. Na verdade ela não sabia lidar com seus próprios sentimentos.

Vestia azul e estava de olhos arregalados, como um galo de briga. O azul das penas reluzia através do clarão diurno. E seu bico entreaberto engolia medo de voar. Estivera cativo numa gaiola na Vila de pescadores durante anos a fio... passara a vida toda desse jeito, dialogando com as grades da jaula. E ao menor descuido da porta aberta, escapou um Verso!

Verso liberto, porém sem consciência do mundo paladar. Não sentia Amor, não sabia o que era. Não sentia gosto de Liberdade, não sabia também como era. Nunca experimentara antes. Estivera mal tratado pelo dono. Nunca cantou e nunca cantará (se mantiver o medo por entre os dedos...). De asas em aço inoxidável. Cavaleiro. Pesadas de mais para alçá-lo.

Menina com olhos de Sol achou-o lindo, mesmo assim; porém despossuído de inteligência nos sentimentos. Nunca os tivera antes, pois! O menino de nome cantado pelas cigarras avistou um punhado de grãos, quase parecidos com alpiste cativo. Mas estes eram selvagens... pois eram Amor.

O índio branco não lhe tinha paladar nem segurança. Tinha-lhe medo, mas a pequena não apenas tinha-lhe visto o coração, como também tinha ouvido seu nome ecoando pela floresta cabeça adentro. Pela primeira e última vez, alguém penetrara naquela floresta flutuante. A mata desconfiada pôs-se a observá-la com todos os olhos dos bichos. Aonde a pequena ia, sabia-se de seu paradeiro.

A pequena já estava entranhada de Verde. E ele de Olhos de Sol. Chegado o terceiro dia, antes de o Astro cobrir-se de nuvens, ela encarou menino branco. Ambos tinham os mesmos Olhos de Sol e ambos ouviam tamanduá. A encantaria desposou o mundo objetivo. E foi nesse momento que a floresta parou de andar. Suspirou ventania, carregando galhos de árvores por toda floresta.

Como o menino estivera cativo por longos anos, não sabia o que fazer. Gritou sua voz várias vezes em direção da pequena, espantando-a também! Indo ela se esconder em caramujo na tocaia das beiras de encosta.

Ele não sabia conversar, nem dizer de si. Não sabia contar dele à pequena, apenas sabia sensações! Ele era impreciso e inseguro como rachadura na parede. Não sabia azul ser verde ou se vermelho fosse branco. Foi a primeira vez que tinha sorrido e não sabia simpatia de Mapinguari.

Olhou para a pequena, tomou-lhe o braço, a fez chorar. E das lágrimas poderosas de olhos de Sol inventaram-se todos os rios amazônicos. Como menino branco sabia falar apenas sensações, forçou-as dentro da cabeça da pequena tapuia. Jogara um oceano de sensações para dentro da bichinha... indo a coitada virar moita. Escondeu sobre si um monte de capivaras.

Mapinguari tudo viu, nada fez! Ambos tinham Olhos de Sol, era encantamento da mata. Ninguém poderia desfazer aquilo! (era Amor...) Eles se entenderiam custasse o que custasse. Não havia volta! Uma vez arrebatado, para sempre estaria na floresta que andara. Ambos continuariam.

Outro dia raiou.
Estava úmido.
As cigarras agora cantavam nome de menino branco, em bemol:

b
Ele quis noite. E assim ficou sendo. A pequena virou pedra e atirou-se ao fundo das águas. Sol debaixo d’água. Sol em cima do chão. Ambos ficaram para sempre encantados. Então pajé Domã-Naã afundou mãos na face das Terras Encantadas, espalhando grãos sobre as matas. Todas as garças cantaram:
Traaaaaaaaaaaaaaaaaac-toc-toc-toc-toc-toc-toc-toc...
Traaaaaaaaaaaaaaaaaac-toc-toc-toc-toc-toc-toc-toc... Fizeram todas pedrinhas do fundo das águas dos rios subirem à margem. Por isso as encostas banhadas de águas amazônicas são arenosas, desfalecendo após anos e anos. Pertenciam às águas e para lá retornariam.

Algum tempo passara. Menino branco e a pequena tapuia acostumaram-se um ao outro. Aos poucos ele confiou à pequena algumas palavras faladas. Mas das primeiras sensações dele, a pequena enlouquecera. Seus dias não tinham mais divisórias. A Lua encontrava-se com o Sol à mesma hora no mesmo céu. Luz solar noturna, era o céu encantado da floresta de Andara. Menino de nome cantado pelas cigarras e a pequena tapuia com olhos de Sol ficaram ambos eternos de mãos sobre mãos, juntos naquele mundo secreto.

Mas essa história não termina aqui. Ela apenas começou...



Katiuscia de Sá
08 de abril de 2010
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