“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Para meu Amor


A viagem que faço em ti, percorro meus incontáveis desejos de subir em teu selo cardíaco, e da carta lacrada retirar todas as paginas encobertas de neve, para dar-te enfim, o botão-de-rosa encravado no meu jardinzinho montanhoso... eram as neves pardas de inverno da China que vertiam lágrimas por estares tão longe de mim. Óh, meu amor cardíaco... de tanto apanhar o sereno da noite às madrugadas, transformava-me em sonhos que povoam teu peito debruçado ao travesseiro...

Era eu a lhe sussurrar carinhos quando dormias esquecido de ti. Era eu, a lamber-lhe a pele quando tomavas o banho noturno no quintal à mercê da lua que nos vinha vigiar para não escaparmos de nós mesmos – esse amor tão longínquo, e tão encarnado n’alma... era eu a iluminar-te os olhos de tanto carinho guardado e escondido de ti...
Era eu...
Sempre fui eu a observar-te os sorrisos e a fronte encruzilhada diante de tanta solidão em dias de chuva. Eu lhe via pela vidraça das lojas, e lhe via enfeitado de jasmins, como aquela flor que fugira do vaso, que queria ir morar no jardim do lado de fora da casa...

E ainda sou eu que choro lá do céu para molhar-te tuas raízes benditas... eu te amo desde que a Terra nascera do vapor do espaço. Eu te busco com tanta frequência e sordidez feito a planta carnívora que engana o inseto... o perfume da morte vai beijar-te os seios que carregas em tuas mãos – são os meus que agora são teus...

Sinto tua saudade aqui no meu peito, ela vem nas letras que te escrevo, óh amor de meus dias... cada lágrima e desespero pela força que me vens em devaneios, tiram-me de mim... vou derramar-me perante teu gozo solitário e nu das madrugadas escorridas pelo tempo-espaço aqui bem dentro do meu peito – vertiginoso corpo que te prende no meu – um cilindro obsceno cravado no meio do meu jardim sigiloso, aquele que te morde os beiços... aquele que te molha a boca.

Vieste-me agora, neste instante de lembrança e amor, a tua presença me anima e me agasta de tanta dor no peito, que escapo tão de repente no meio da noite e vejo-te, com teus olhos marejados de lágrimas...
Eu te espero...
Eu te quero...
Eu...

Como uma lua alaranjada desgovernada no céu da noite, hoje me invadiste com teu sopro de presença em pensamento... meu peito tremula uma folha de frio do orvalho noturno... vens me sugar os líquidos de meu corpo para saciar tua sede de nós dois... toma-me feito leite marinho.

Eu te devolvo a vida como um sol que brilha num espelho. Olho-te e vejo-me tão serena e menina... nosso amor é uma virgula a separar o passado. Nosso amor é um anel, a figura perfeita do Universo: sem começo nem fim...

E de tanta letra no céu da boca, nenhuma é capaz de dizer-te ao máximo o quanto eu te amo... meu homem, meu carinho...


Katiuscia de Sá
31 de outubro de 2012.
00:16h

terça-feira, 30 de outubro de 2012

E agora?



"Faço votos que o novo prefeito de Belém consiga encerrar o processo de tombamento do cinema Olympia. Só assim ele caminhará saudável para os 101 anos. Ou mais. A sala nos orgulha pela longevidade e história social que guarda como poucos espaços de nossa terra". 

[Pedro Veriano]
*Jornal O Liberal, 29 de Outubro de 2012.




*O Cinema Olympia é o cinema mais antigo do Brasil em funcionamento, ele completou em 24 de abril  de 2012, 100 anos de atividades. Atualmente o primeiro curso de Cinema da região Norte, pela Universidade Federal do Pará, quer utilizar salas ociosas desse espaço, justamente agregar maior valor e compromisso com a memória cultural do estado, ajudando a preservar este prédio já tombado por Lei.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

OLHOS VERDES


*com imensas saudades, para meu avô Benedito Benício de Sá, in memoriam.

Meu avô tinha olhos verdes; uns verdes que mudavam de cor. Eu adorava contemplá-los quando criança. Às vezes estavam verde-translucido tipo as águas do oceano confortáveis em algum laguinho refletindo o musgo pregado às pedras marinhas. Outros momentos ficavam verde-rubi tão determinados e fortes, umas folhas selvagens dos tajás amazônicos. Outros momentos beiravam um azul tão fraquinho que pareciam morrer na vastidão  do céu ao meio-dia bem próximo ao sol... adorava entrar nos olhos de meu avô. Suas cores me fascinavam; se de pertinho, eu conseguia perceber ainda ao redor da íris uns pontinhos luminosos de castanhos pingados em círculos como risquinhos finos e tênues da cor doce e malcriada de rapa-dura.

Aprendi a decifrar os sentimentos de meu avô apenas observando-lhe a cor dos olhos. Secretamente eu brincava na minha imaginação de criança que meu avô era um camaleão disfarçado de gente, e que suas emoções estavam nos olhos, e não em outros lugares ou falas. Portanto, eu só acreditava nele quando o olhava bem fundo e raptava seus olhos para mim.

Quando estava feliz, meu avô carregava no rosto seus dois pedacinhos de céu junto ao sol do meio dia. Quanto mais feliz... mais azul a sumir nos brancos; o mesmo acontecia na outra extremidade do sentimento. A raiva de meu avô também era azul enamorado do sol do meio dia. O que diferenciava do azul-feliz, eram-lhe as feições e a mimese corporal. Quando com raiva seus gestos eram mais contidos e ríspidos, precisos no espaço, então ele ficava tenso e alerta. Frequentemente quando estava assim, ele não nos dirigia a palavra a mim e ao meu irmão... com o passar do tempo percebi que era para não despejar raiva em pessoas que não tinham nada haver com aquilo. Aprendi com ele.

Meu avô era tão amado por mim e meu irmão; se estávamos soltos de nossos afazeres infantis, corríamos para sua companhia. Às vezes passávamos horas sem falar, apenas sentindo a presença uns dos outros e nisso emaranhávamos nossas almas nos instantes que hoje trago dentro de mim feito saudade e também força para seguir adiante colocando em prática tudo que aprendi com o velho Bené.

Vôzinho era do tipo contemplativo. Quando fechado em seus pensamentos, seus olhos eram verde-tajá, tão selvagens e arredios quanto animal perseguido. Ficavam assim na tristeza e saudade de sua terra-natal nos confins do sertão nordestino onde o chão rachava em pequeninos canyons. Igualmente seco e árido ele se mostrava ao exterior. Sentia-lhe o pesar também de vê-lo andando a penumbra pelos cantos da casa, tentando fugir de si mesmo... e hoje (mais do que nunca) partilho esse sentimento de desterro.

Há períodos mais que outros em que bate uma saudade dos dois, meus avós...  mas acho que vivi tão intensamente com eles, fiz tantas travessuras, tantos dengos e choros... que nada ficou dito pelo não dito. Eles sempre foram muito francos e transparentes como águas cristalinas do sereno silencioso e solitário. Aprecio gente assim, e assim eu cresci e enfrento o mundo. Um eterno outono nos olhos.


Katiuscia de Sá
Entre: 12 a 16 de outubro de 2012