
Os “Justos” teriam de atravessá-las mais cedo ou mais tarde...
Na contemplativa Ponte dos Mortos, havia um grande barco à espera.
Todos ali já foram algo na vida. Menos o pequeno Gustav. Não saberia ele perceber-se alheio àquela atmosfera de baganas arremessadas imitando flechas iluminadas, abridoras de caminhos.
Sobre seus olhos uns céus rubros, envergonhados de saberem o que aconteceria dia após dia com àqueles que atravessavam a ponte (à nado), sem a paciência de esperarem pelo Barco com as cabeças de caveiras desenhando-lhe carrancas e mais carrancas a ornamentarem a pele de madeira que revestia a nau.
O carinho das marés depositava pequenas Algas que zombavam dos musgos apertadinhos por entre as frestas entupidas de maresia. Impunha-lhes um Silêncio doentio, com tamanha estupidez e arrogância, que fazia todo o mundo subterrâneo fechar-se de vez para o mundo daqueles que esperavam a carona da nau...
Gustav lera certa vez, que quando os humanos sonham, é porque deus deita-lhes pequenas salivas de Vida. E Gustav era uma dessas gotas. Nascera do entrosamento entre um orvalho amanhecido e uma folha amarrotada de carvalho. Era mudo e surdo desde que nascera, escapando-lhe a Visão, que por sorte abria-lhe outros Mundos.
E ontem o menino Viu.
Ouviu.
E falou com uma voz tão imponente que até mesmo os gatos do telhado do vizinho pararam com suas orgias madrugueiras, e puseram-se a olhá-lo com aqueles olhinhos de faróis na madrugada. Tiveram medo de vê-lo em dois. Correram a espalharem-se pelos telhados outros.
Gustav pronunciara pela primeira vez uma palavra, e ninguém estava presente para ouvi-la. Pronunciara o nome do barqueiro que levaria a todos de volta ao Mundo dos Mortos.
Menos ele, Gustav, conseguia ouvir a si próprio. Estava tão afogado pela estupidez e ignorância das algas e musgos esfolados da nau atravessando seus ouvidos tao puros de Som... que ficou ali:
Surdo,
Mudo,
E morto...
Katiuscia de Sá
19 de agosto de 2009.
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