Ele andava sempre com uma porta de janela pendurada sobre os ombros. Ninguém perguntava nada... Era comum todos por ali andarem com objetos nas mãos, ou pendurado sobre partes do corpo. Eu estranhava, porém, aceitava. Cada um é como uma árvore num imenso pomar, cada qual se “carregava” do que quisesse.
Andavam uns sobre os outros às vezes, mas não se machucavam, flutuavam. Era lindo, porque cada roupa era de uma cor perolada diferente. Então, meu amigo virou-se para mim e disse: “essa é tia Amarela. Ela nos guiará desse trecho em diante”. Os aviadores pararam de conversar nesse instante. Olharam-se e depois para mim e para Sohtero. Não adiantaria qualquer coisa que nos dissessem. Iríamos de qualquer jeito sob a escolta de tia Amarela.
Já nos juncos, corríamos os olhos sobre o mar distante. Havia um navio, o mesmo que deveríamos entrar para eu sair da ilha. Tia Amarela havia cumprido o trato, trouxera-nos a salvos até o cais. Dali por diante seria por nossa conta.
Sohtero propôs que andássemos sobre as águas até a nau. Eu não quis, iria cansar muito. Daí, avistei um botão atirado ao chão. Reconhecemos. O colete de tia Amarela ficara desabotoado na altura do pescoço. Eis o botão caído!
Atravessamos a baía deitados sobre o botão, ele era suficientemente grande para sobreviver conosco sobre as águas, ou éramos pequeninos o necessário para não afundarmos todos em cima daquele botão de roupa.
Ao chegarmos, a moça dourada cantarolava sua música. Era tão magnífica, suave como uma partícula de neve. Sua voz delicada enchia-nos o peito. Pena que ninguém pode ver a moça dourada. Munique ficou tímida desde que se apaixonara uma vez por um cantor lírico do século XVII.
Ela foi morar dentro do coração do moço e ele se transformara numa pessoa narcisista e prepotente. Partiu o coração generoso de Munique, ela o tinha ensinado a cantar e ajudado a desenvolver seu talento de cantor, e deu naquilo... Depois da decepção, a moça dourada decidiu nunca mais se mostrar a ninguém! Apenas as crianças, até certa idade, podem vê-la, e alguns adultos sentirem-na, quando escutam na alma, a música que brota deles próprios...
Prosseguimos. Seria difícil encontrar o Capitão, pois ele sempre tomava as formas dos móveis e objetos do navio, e como chegarmos àquele estado das coisas? Tínhamos que tentar, ao menos! Os outros temiam o Capitão. Nós não. Nossa intuição dizia-nos que bem lá no fundo, o Capitão era generoso.
Examinamos lentamente cada objeto do convés; do camarote; olhamos as velas, e nada... Decidimos tomar a frente do navio. Aos poucos Sohtero e eu absorvíamos a rotina marítima. Até que compreendemos a mágica.
De tanto realizarmos as práticas do navio, tornamo-nos o próprio Capitão. Conseguíamos vê-lo em cada pedacinho que compunha o “Derradeiro Atirador de Flores”. E o conduzimos até a beira do horizonte. Lá estaria a porta pela qual eu deveria atravessar.
Sohtero não poderia atravessá-la comigo porque seu tempo era outro. Aliás, onde estávamos o tempo havia parado. Meu amigo estimado ensinou-me que quando o tempo pára, seja em qualquer lugar, as horas tornam-se Eternidade. E era lá que habitávamos, mas eu estava de viagem marcada. Tinha de atravessar a porta. Era a minha vez de conhecer o tempo.
É estranho porque ainda não me acostumei com o “tal” do tempo. Para mim ele continua não existindo. Toda vez que isso acontece lembro-me da risada gostosa de Sohtero, advertindo-me de que seria difícil para mim... Seus dentes de estrelas iluminam-me os pensamentos até hoje.
Tenho pena dos pobres aviadores, pois de tanto temerem ir além do trivial, nunca conseguirão subir aos espaços, enquanto que Sohtero e eu, que apenas temos pernas, já percorremos todo o sideral oceano. A gente consegue ver o mar tranqüilamente quando de madrugada, todas as luzes das cidades estão apagadas. Navegarmos à vontade...
Katiuscia de Sá
31 de dezembro de 2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário