“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 30 de março de 2013

O Sono e a Chuva


Hoje acordei e levantei-me cedo. Iria dar minha caminhada habitual. Levantei-me da cama e arrumei a mesma, como faço todos os dias após levantar. Fui à cozinha, dei comida à Lucy (gata de estimação); tomei banho e aprontei-me. Entretanto, sentia-me meio preguiçosa... não tinha dormido o suficiente à noite anterior e  por isso mesmo estava com o corpo meio cansado.

Fui à janela frontal da casa, abri só um pouquinho a fresta; o horizonte com o rosto bastante cinza. O dia estava tão desesperado para não levantar. Às vezes o dia também quer amanhecer dormindo, e hoje foi assim. Carregava consigo a “chuva do Marajó” – como meu avô explicou-me uma vez, que é aquela chuva que vem das Ilhas e rodeia toda a cidade, para em seguida cair encurralando todos os bairros, e fica assim respingando por várias horas um resfriadinho de água – a “chuva de moça”, expressão do interior, como minha tia fala.

Fechei a janela e sentei-me ao sofá; fiquei pensando... na esperança de a chuvinha desabar pra eu poder caminhar assim que o dia parasse de chorar lá fora. Caíram as primeiras lágrimas do céu. Eram ainda tímidas... após uns dez minutos, cessaram. O intervalo foi apenas para tomar folego. Lá fora, os céus expressavam-se aos prantos. Logo veio o toró característico do clima nortista. O tempo fechara-se. E eu na preguiça e derrota pela Natureza, retirei a roupa de caminhada, substituindo-a pelo pijama quentinho. Retornei às cobertas...

Fui sonhar com um dia ensolarado para poder caminhar por entre as nuvens. Lembrei-me de quando eu era criança... fiquei quietinha ouvindo a música que o pranto do céu cantava nos telhados da vizinhança. Dormi serenamente, e certa de que hoje pela manhã não era para eu sair de casa. Acho que mais tarde substituirei as horas destinadas à minha caminhada, pela aventura de assar um bolo!



Katiuscia de Sá
30 de março de 2013, às 07:39h.

quarta-feira, 27 de março de 2013

COMUNICADO



Após mais de dois anos de árdua luta em favor da implementação da Lei Municipal que contemplasse a classe artística de Belém, através da atuação continua do Fórum Livre Permanente de Teatro do Pará, entre outras frentes culturais da cidade de Belém, HOJE: 27 de março de 2013, (Dia Mundial do Teatro, do Circo e do Artista Circense), acontecerá a PROMULGAÇÃO DOS DECRETOS-LEIS REGULAMENTANDO A LEI "VALMIR BISPO SANTOS" E O SISTEMA MUNICIPAL DE CULTURA, que será ASSINADO PELO PREFEITO DE BELÉM. A solenidade acontecerá s 17:30h no Museu de Artes de Belém (MAB), sito no Palácio Antônio Lemos. Convoca-se todos os ativistas, produtores, agentes culturais e demais interessados a participar desta solenidade, que será realizada logo após a Plenária do Fórum Municipal de Cultura (FMC Belém), marcada para às 15 hs, nesta mesma quarta, no auditório do MinC Norte, na Av. José Malcher, esquina com tv. Benjamin Constant. Trata-se de um processo importante de implantação de uma efetiva Política Cultural, e de uma Lei que foi construída e conquistada pelos movimentos culturais de Belém, que culminou com um Projeto de Lei de iniciativa popular, que colheu mais de 30 mil assinaturas, e foi aprovada por unanimidade pela Câmara Municipal de Belém em 24/07/2012, com o nome de Lei Valmir Bispo Santos, proposta pelo FMC Belém, e apresentada pelo então vereador Marquinho (do PT), naquela época presidente da Comissão de Cultura da Câmara Municipal de Belém. É o momento de celebrarmos uma conquista histórica para os movimentos culturais de Belém. Compareçam representantes e simpatizantes da cultura de nossa Belém!!!! Evoé!!!!!

Dia Mundial do Teatro


*Foto: Marcel Marceau - um dos maiores atores mímicos do século XX, juntamente com Étienne Decroux e Jean-Louis Barrault.

♥ Hoje, 27 de Março é o Dia Mundial do Teatro, do Circo e do Artista Circense. Parabéns a todos que emprestam qualquer pedacinho de chão para transforma-lo nesse solo sagrado que faz arder e queimar o artista num ato heroico de se doar e tocar o publico através de sua Arte, esta que ora é visceral, ora ternura, ora paz, ora loucura... O Teatro foi o primeiro portal mágico que o Homem inventou para superar sua dura realidade efêmera, transcendendo a si mesmo através de gestos, falas, improvisos e fuga na tentativa de achar-se em algum lugar dentro e fora de si mesmo. Parabéns a nós todos que (apesar de tudo) ainda crê e continuará crendo nessa Arte que nasceu antes mesmo da descoberta do fogo, que é mais antiga do que a invenção da roda... que nasceu quando o primeiro Homo Sapiens resolveu inventar que dominava sua imaginação e a fazia saltar para fora, transpondo-a nesse delírio genial – momento esse que o artista tomava para si as rédeas de seu coração vibrando pela vontade de partilhar o ‘fogo do palco’, momento que se fez consciente dessa energia que nos revitaliza sempre que pisamos nesse solo sagrado das Artes Cênicas!!! Parabéns a todos os remanescentes... parabéns aos que virão, parabéns aos que lutam e fazem do Teatro seu carinho, seu caminho, seu ganha-pão, seu canal de contestação social, sua voz, sua transmutação... Parabéns a nós atores (atrizes) e todos os profissionais e amadores (no sentido de amar), que acreditam e fazem a magia funcionar! Parabéns aos loucos mambembes que largam famílias, casa e tudo mais para seguirem nessa jornada deliciosa e inexplicável, como diria o poeta romântico: ‘esse inferno de amar’... essa jornada que não tem fim, pois enquanto houver um ator, em qualquer lugar do mundo, num palco improvisado, e um espectador qualquer acreditando na magia, o Teatro existirá! Evoé!!!!!!! Evoé!!!!!!! ♥

segunda-feira, 25 de março de 2013

SAUDADE




É uma dor tão profunda...
essa saudade,
que meus olhos já agem por si:
choram sem eu saber,
Rebelam-se!
Choram a bel vontade...
Preciso ver-te, amor.
Preciso nascer florzinha amarela
Conversar sobre sentimentos.
Preciso ver-te, amor...
Unir-me ao mar.
Evaporar aos céus.
Um poeta invisível brinca com meu coração por entre os dedos,
mastiga-me o fígado;
faz salada com meus pensamentos.
Um prato de comida que não alimenta ninguém, a saudade.
Preciso ver-te e tocar sua pele colorida;
ouvir sua voz de trovão,
ou um sussurro de tão suave.
Preciso ver-te,
Augusto amor!
Perder-me em seus olhos,
Saborear tua boca
senão...
morrerei...
morrerei...
de tanta saudade.

Katiuscia e Sá
25 de março de 2013, às 23:40h

CONVERSAS DE MULHERES #1: o homem dos sonhos (crônica)



Estavam as duas acomodadas desacomodadamente remexendo as pernas, os troncos, jogando os cabelos de um lado a outro, nervosamente chupando os canudinhos de suas bebidas, retumbando os braços em posições frenéticas sem perderem a compostura; faziam uns malabarismos corporais, equilibrando-se em cima de uma cadeira alta de assento minúsculo na beira do bar. Ambiente muito sofisticado, com iluminação rotunda e fresca, paredes pretas e outras espelhadas e prateadas, ambiente refrigerado, drinks coloridos e transparentes, música incidente e provocativa, poltronas zebradas bem mais ao fundo (no escurinho), luz néon, abajus cor de carne... Pessoas educadamente gesticulando como se nadassem a dez metros abaixo d’água. Tudo muito organizado e nas rédeas do bom comportamento social aceitável. Nos olhos de ambas as moças, entretanto, o fogo inquieto da indignação!

– Mas Cacilda, eu não acredito nisso... o cara nunca aparece em publico com a mulher!

– Será que ela deve ter galhos tão grandes que nem tem forças para erguer a cabeça para ter o equilíbrio mínimo, e caminhar fora de casa com o marido?...

– Hahaha! Não tem graça, amiga! Eu aqui me descabelando por causa daquele sem-vergonha, que me canta a morrer, e no entanto fica esfregando na minha cara aquela aliança como se fosse um escudo ou camisa de força para ele mesmo se dar um motivo plausível para não ser devasso!

– ‘Devasso’  para ele é pouco! Acredito que com aquela carinha de santo dele, já comeu a maioria da mulherada da sua repartição!

– Pois é, imagina! E agora ele está todo ‘fofinho’ para cima de mim, que só pedi para levar à sala do chefe umas papeladas...

– Amiga, convenhamos, até que ele dá pra passar uma chuva... né querida? Diz que não!

Mariana dava umas piscadelas e uns tapinhas no ombro da outra, para atiçar mais ainda a amiga.

– Ei garçom, por favor... traga-nos dois drinques nº54 do cardápio... com bastante gelo.

– Pra mim, sem gelo, por favor...

E o garçom indiferente à conversa de ambas recolhe o cardápio de bebidas. Por detrás dele, sem maiores esforços, avistava-se o outro lado do balcão que dava uma graciosa curva de trinta graus à esquerda, indo parar na parte mais escura do pub.

– Mas sim Mariana, eu não lhe disse que a mesa do dito-cujo fica na quina da minha, então toda vez que ele passa em direção à máquina de Xerox ele esbarra na minha mesa e faz cair algo de proposito, só pra puxar assunto?

– Aproveita, amiga! Deixa de ser boba... se tá brotando um girassol com cara de flor de jerimum-de-rato, pelo menos a flor do mato é bonita... ahahaha.

– Credo Mariana! Você tem uns ditados estranhos que eu nunca ouvi!

– Minha avó que dizia isso, Cacilda! Ela morava no interior da Capital... bem pra lá da fronteira com Mato Grosso do Norte.

Ambas já afogadas em seus drinques, com os olhares esfumaçados e languidos passeando pelo ambiente.

– Sabe Mariana, eu só não arrisco nada com esse cara, porque além dele ser casado... ele não leva às festas da repartição, a esposa. E se começamos algum romance, como vai ser sem saber como é minha futura ex-possivel adversária? Vai que eu me apaixone pelo cara? Com que armas eu vou competir com a esposa-fantasma dele, se ela nunca está nos eventos?

– É... aí a coisa complica... Talvez, de repente ele nem tenha esposa. Aquela aliança é só um disfarce pra ele galinhar mais e não se prender a mulher alguma. Que safado... Mas você não precisa se apaixonar pelo cara pra poder dar umas mordidinhas no churros dele, besta!

– Aí, Mariana! Que coisa vulgar...

– Vulgar, nada! Todo mundo sabe que homem-paquerador só pensa nisso mesmo! Eles nos chegam com aquela educação toda, e tal... e com aquela conversa mole e macia, nos deixam enfeitiçadas com aquelas coisinhas que a maioria dos homens de hoje não fazem mais...

– O quê os homens não fazem mais?

– Ora: puxar a cadeira pra gente sentar no restaurante; abrir a porta do carro; mandar mensagem pro celular dizendo que estavam pensando na gente... coisas desse tipo, amiga! Só pensando no momento em que eles vão lambuzar o churros deles no nosso doce de leite!!!!

– Mariana, você me assusta. Você é tão...

– Prática, querida! Prática e realista! No fundo a gente sabe que relação na cabeça masculina se resume a uma única palavra: sexo!

– Ah! Eu quero mais... eu desejo romance.

– Romance? Cai na real Cacilda... ‘romance’ na cabeça dos homens é poder transar ouvindo um clássico brega dos Scorpions.

Enquanto as mulheres faziam suas conjecturas, na quina do balcão – lá no escurinho – dois homens jogavam olhares em sua direção, sem saberem exatamente, entretanto, se estavam sendo correspondidos pelas mulheres já meio altas.

– Ah, Mariana eu queria tanto encontrar o homem dos meus sonhos. Será pedir muito?

– Querida, eu aprendi que o ‘homem dos sonhos’ de uma mulher é como o papel higiênico.

– Papel higiênico?

– Sim: frágil e sem consistência; que não dá pra manter nas mãos por muito tempo porque esfarela por qualquer coisinha, e que nunca tem o tamanho especificado na embalagem.

– Depois dessa pérola Mariana, eu acho que tá na hora de ir pra casa. Ó garçom... traga a conta, meu filho... por hoje já deu.

Mariana e Cacilda atravessavam em passos trançados, sincronizados com o jogar de cabelos de um lado a outro. Uma ajeitando o sutiã que teimava gritar decote fora da camiseta; a outra verificando se o batom estava realmente dentro da bolsa. Passaram pelos homens no lado escurinho do balcão sem ao menos notarem seu interesse. Um deles tinha nas mãos um bilhetinho endereçado à Cacilda, escrito num rasguinho de papel higiênico.


Katiuscia de Sá
25 de março de 2013, às 20:38h.
*ouvindo ‘Sadeness’ – Enigma


sábado, 23 de março de 2013

O Amor precisa coragem para renascer a todo instante.



Espero que neste período simbólico que é a Páscoa Cristã, eu possa solidificar minha sanidade de continuar mantendo-me inebriada diante da beleza de uma flor, diante do singelo canto dos passarinhos, diante do sorriso de uma criança; que eu possa ter a coragem de ser gentil e dar o que tenho àqueles que necessitam, mesmo que seja uma simples palavra amiga; que eu tenha humildade de aceitar que nem toda gente tem sensibilidade suficiente para desarmar a Alma e fazer o mesmo por mim em momentos difíceis que eu, por ventura, esteja passando.

Eu tenho comigo que 'Páscoa' e 'Natal' são todos os dias; é um Amor pela vida demonstrada através dos pequenos gestos cotidianos e superações em prol de uma humanidade realmente mais humanizada. Quero amanhecer feito o sol de todos os dias: renovada e com o olhar curioso e sedento para viver os dias que me restam com a leveza no coração capaz de descongelar o mais severo obstáculo da indiferença, em busca da felicidade, que é obra única e individual e mesmo assim interligada ao coletivo. Por isso mesmo, desejo que nesta 'Páscoa' os corações humanos possam interagir carinhosamente, para que em todo lugar do mundo algo de bom aconteça e continue acontecendo..., pois o amor do Criador está em todos os cantos, basta saber querer enxergar e sorrir de volta. Isso mesmo, sorrir de volta ao sorriso (às vezes escondido) no rosto do outro.

Que o Amor vença as imperfeiçoes do mundo, porque o Amor também é admitir que somos imperfeitos e a perfeição se dará a partir do momento que a maioria desejar o bem comum, é um passo a cada dia... passos que duram há muitos séculos. Acho que o ápice de minha Páscoa iniciou em 2012, e se completou semana passada, quando encarei uma situação que há muito tempo não compreendia, então se fechou um ciclo. E atualmente carrego uma face mais branda, com os olhos mais meigos, uma fala mais mansa, uma solidez nos passos antes dominados pela rapidez... agora contemplo. Tudo isso se deve tão especialmente à pessoa que me mostrou um caminho tortuoso e o mais difícil de se trilhar: o do Amor, o Amor que transforma... o Amor que transborda... o Amor que é uma manada de cavalos selvagens em busca da Liberdade, quando a liberdade consiste em deixar essa força fluir sem que sejamos dominados por ela. O controle descontrolado e ao mesmo tempo sabedor do momento de alavancar em busca do novo sempre e sempre, dentro de cada um de nós próprios.

Superei muitos medos... e mesmo em anos anteriores sofrendo [aparentemente], meu coração segue adiante num breu, porque compreendi que amar verdadeiramente alguém (e a própria Vida) é um estágio de não temer o por vir, é um entregar-se e aceitar o que nos chega – é o tempero que dá gosto e vontade de continuar vivendo e ser feliz. Essa é minha Páscoa que me trás serenidade ao Espirito, que me faz querer compartilhar com os outros a leveza das pequenas conquistas. E todas essas palavras são meu carinho para alguém especial que em meu “Estado de Delírio” revelou-se sob o codinome de “Amado-Eu”, um certo alguém que me proporcionou essa viagem pelo meu próprio Eu, uma viagem que já vai completar sete anos... tudo porque o reconheci através de mim mesma desde a primeira vez que o percebi. Não tem sido fácil, entretanto, hoje em dia já nos deixamos interferir um pelo outro sem maiores estranhamentos, já brotam sorrisos no olhar de ambos quando nos deparamos frente a frente como num espelho. Carrego no peito uma felicidade sobressaltada... em estado de alerta, e por isso mesmo me sinto mais viva do que nunca, e também porque você está de volta...


Katiuscia de Sá
23 de março de 2013
Às 01:13h

Vigília...



Então lá estava Lucien, tão absorto e desqualificado quanto um pinto jogado numa poça de lama... e o pior de tudo: sozinho! Havia dias que vagava pelas ruas (sempre às madrugadas, pois tinha receios de encontrar os outros garotos mais velhos e sofrer represálias à toa...). Foi numa dessas madrugadas que percorrendo uma das ruas da praça central, encontrou uma janela aberta e convidativa. Talvez o dono a esquecera sem o trinco e o braço do vento incumbiu-se de abri-la para Lucien vasculhar com suas vistas o que havia de comer por ali ao alcance das mãos. Era o descuidado Destino brincando mais uma vez de salva-vidas ao garoto.

A noite estava fria e densa, com muita neve sendo espalhada pela ventania. Mal se podia ver a silhueta das coisas, mas a baixa luz que vinha de dentro do aposento trazia esperança a um coração precocemente danificado pelas injustiças da vida. A rua era o único amigo de Lucien naquelas alturas. E o que viesse era lucro...

Com os pés congelando de frio, já nem os sentia direito. Foi quase instintivo que o garoto se libertara do manto sujo e cheio de neve bem de baixo da janela; quando num piscar de olhos já estava dentro do aposento. Havia um cheiro de bolo. A urgência da fome fez com que o menino descuidasse de escutar se havia alguém acordado, ou por perto. Foi certeiro rumo à cozinha.

O ambiente silencioso e rústico era dominado por um enorme fogão a lenha. Ao lado deste um estoque de madeiras cruas cortadinhas e amontoadas, aguardando sua vez de morrerem para alucinarem o fogo que cozinhava os alimentos daquela casa repleta de espaços vazios. Uns copos de metal  sem coloração dependurados numa bancadinha acima do lavatório, davam certa frigidez ao ambiente, somando-se ao clima austero da organização.

Lucien buscava de onde vinha o cheiro de bolo... acima da mesa, feita de uma só peça de tábua crua, dormitavam alguns talheres e outros objetos usuais de cozinha. Com a lareira apagada, o ambiente era tão frio quanto o lado de fora, tendo apenas como diferença, a trégua da neve sobre os ombros e cabelos, enfeitiçando os pensamentos do menino.

Seus olhos famintos de calor vagueavam em busca de algo semelhante ao cheiro gostoso que pairava naquele ar friento, percorriam o ambiente sem muita atenção nas paredes sólidas de pedra lixada; Lucien nem percebia que o chão também era feito de pedra e que diferente da sala ao lado, não havia nenhum tapete de lã deitado ao soalho. Nem percebia a contagem das cadeiras rodeando a mesa... pelas contas dos assentos, talvez ali morasse uma família de muitas pessoas.

Assim que o imediatismo dos olhos de Lucien fincou-se num embrulhinho sobre um cantinho tão austero daquela mesa sem tecido cobrindo os afagos do tempo sobre sua superfície, as mãos cheias de calos e atormentadas do menino lançaram-se em direção do que achara que fosse a tão esperada refeição em três dias. Assim que Lucien alcançou o embrulho e o desbaratou, seus olhos choraram de alegria através do estomago.

Quando estava a mais ou menos um quarto do bolo degustado, o garoto pousava relaxadamente os olhos pela superfície da mesa. Descobriam-se varias marcas do tempo: uns cantinhos solapados pela fúria da escavação de uma faca... outras partes havia uns rabiscos a carvão... e suas mãozinhas cheias de calos acariciavam aquela superfície dura e tão calejada. Tanto tempo sem carinho que aquele gesto na superfície áspera lhe conferia uma lembrança de algo bom...

Ao satisfazer a fome urgente, Lucien embrulhou o que ainda havia para degustar, e se foi pelo mesmo caminho que adentrara. Entretanto, num cantinho da outra sala ouviu finalmente um pequeno gemido... um soluço... um choro de criança. Era uma criança menor do que ele com os olhos inchados e doloridos de tanto lamentar às escondidas. Uma menina tão abandonada feito ele, com a diferença que ela estava encurralada sob um teto onde as pessoas abertamente faziam-na o que Lucien sofria nas ruas.

Ambos se reconheceram através do olhar: um tão selvagem e livre, o outro perdido e assustado... Daí Lucien percebeu onde estava... era o abrigo onde o abade da aldeia tomava conta dos órfãos! Quando o garoto chegou mais perto viu no braço da menina, marcas do castigo... (talvez durante o dia a mesma criança também quisesse um pedaço do bolo em horário impróprio, e por desobediência, sofrera as palmatórias).

Ficaram ali parados, inertes no lago profundo dos olhos um do outro. Lucien desembrulhou o que havia ainda da guloseima, partiu um bom pedaço e ofereceu à menininha, esta num gesto quase autômato segurou-o entre as mãos. Seus olhos sorriram, e Lucien estendeu-lhe a mão; e se foram, indo ambos encarar o silencio e solidão das ruas, que embora fria e escura, a Vida lá fora oferecia algo mais convidativo que nunca haveria para eles naquele abrigo: a liberdade.


Katiuscia de Sá
22 de março de 2013
Às 23:45h 

segunda-feira, 18 de março de 2013

MEDO




Meu único medo não é saber que um dia meus olhos não poderão mais ver o céu de minha Pátria, nem que um dia não poderei mais correr livremente por entre as árvores de meu bosque secreto...

Meu medo é morrer antes de beijar-te, ou antes de eu ser tua completamente... o sol nasce a cada dia, e a sombra que me cai n’alma é apenas uma: medo de não viver contigo o que os Astros reservaram para o nosso Caminho.

Meu medo é ter que esperar essa Espera que me consome o peito em sofreguidão, que minha respiração fica tão fraquinha a ponto de não ter nem folego de chamar-te o nome...

Meu medo é sumir a luz de meus olhos antes que eu veja seu sorriso, por devotar-lhe todo amor para uma vida...

Venha assim mesmo – com os intervalos da fala, ou com seu coração cheio de duvidas... as coisas acontecem como um grande circulo vermelho pintado numa parede de Parque de Diversões... um carrossel cheio de altos e baixos. Entretanto, se ambos estivermos juntos, nem o Tempo nos dirá para pararmos pelo Caminho.

Vem, meu único e verdadeiro Amor. É a sua voz que eu espero com toda decisão possível e impossível... a decisão de viver o Agora.


Katiuscia de Sá
18/ 03/ 2013