“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

domingo, 27 de novembro de 2011

OS CINCO DEDOS DAS MÃOS

*Para Afonso Carlos

“eu já estou no Ano Novo... mas os outros, não!” Ela deixou Olhos de Mato e Mar compreender o que sentia, deu-lhe mais um mês de espaço.

“eis nossa diferença de ‘tempo’... é o tempo interior e não o cotidiano...”, então Cabelos Sem Luz decidiu desacelerar. Ficou sem o mínimo movimento. Ela olhou diretamente para Olhos de Mato e Mar para ele compreender seus sentimentos por ela e também organizar seus Eus.

Mas o caminho dele seria complicado agora, pois ela o deixou a cargo de suas próprias personas: e uma queria isto, a outra queria aquilo, e ele – ele mesmo, queria Cabelos Sem Luz, mas não sabia dizê-lo a ela... dava voltas sobre si – Olhos de Mato e Mar. Aborrecia-se ele, porque Cabelos Sem Luz – ela; calou-se e pôs-se a esperar.

Então, Cabelos Sem Luz agora espera, mirando-o com muito carinho e ternura, Olhos de Mato e Mar...

Este foi o primeiro pedacinho da história que Ave Que Não Se Sabe o Nome soube contar...


(continua...)

Katiuscia de Sá
22 de Novembro de 2011

* * *

Então a Ave – Aquela Que Não Se Sabe o Nome, continuou sua história. Disse que hoje o primeiro filho de Cabelos Sem Luz deu seu primeiro passo. Sua mãe não podia ajuda-lo a prosseguir, pois aprendera e ensinara seu rebento que o caminho o percorremos sozinhos. E depois de certo tempo haveríamos de nos encontrar todos. E assim aconteceu.

Então os olhos do rebento iluminaram a fronte de quem olhava pra ele. Embora quem lhe observasse, percebesse que lhe faltava uma perna, no entanto conseguia andar ele, e dava seus passos rumo à infinidade das coisas.

Enquanto Cabelos Sem Luz recomeçava a tecer outro rebento, seu primogênito estava cercado de estranhos, dentro do ninho onde estavam todos... e , continuava a encantá-los; mesmo sem uma das pernas...

(continua...)

Katiuscia de Sá
25 de novembro de 2011

* * *

Mesmo agora o primogênito de Cabelos Sem Luz passou a rodopiar dentro de um tufão, “ah que delícia flutuar sobre uma perna só!”, assoviava o rebento por entre as folhas e galhos. E lá se foi ele – o primeiro! Gostava da noite, da cantoria dos sapos dizendo: “fui... fui... fui...”, mas: “fui pra onde?”, pensava aquela criança de uma perna só.

Dele tanto curtir a noite sua pele ficou negra. Escondia-se por entre os cepos e cantinhos escuros das matas. Ficava apenas seu sorriso de fora aparecendo e seus olhos redondos de amêndoas a cintilarem pelas folhas. Que linda criança feliz a rodopiar nos cata-ventos...

Ainda agora Cabelos Sem Luz sentia Olhos de Mato e Mar, ele estava em seu coração queimando feito estrelas à beira do sol, “eu sei que é você quem está em minha alma, correndo e sorrindo para dentro de mim...” , disse ela para aqueles Olhos de Mato e Mar.

Então ele a invadiu de vagarinho... inundou-a com seus sentimentos inexplicáveis. Cabelos Sem Luz (porque eram negros igual à noite sem Lua), deixou Olhos de Mato e Mar inundá-la de sentimentos, e deles nasceriam outro rebento, “mas dessa vez esse teria as duas pernas” – prometeram ambos!

Agora estão unidos na estrada Cabelos Sem Luz e Olhos de Mato e Mar... das letras indizíveis do coração de ambos a alma dele vem na boca dela, beijando-lhe invisível no silencio de todas as Horas.

(continua...)

Katiuscia de Sá
27 de novembro de 2011


Depois de muitos dias quieta num galho, apenas observando para dentro, Ave Que Não Se Sabe o Nome voou para longe, muito longe... carregava escondido por entre as plumagens do seu peito, uma saudade indizível e inominada de seu Amor. Voou para bem alto, acima de todas as nuvens do céu, e depositou lá essa saudade. Dizem que nos dias de chuva, é o choro dessa Ave – a saudade deixando cair na terra lágrimas de chuva...

E depois que ela – a Ave, retornou ao chão, recomeçou sua história. Disse que alguma coisa aquele outro havia deixado: a maturidade que hoje nasce como a flor sem espinhos, a flor que os cinco dedos das mãos de Cabelos Sem Luz e Olhos de Mato e Mar seguram juntos.

Outro dia conversaram – cada um pregava uma tábua na mesma ponte e com os cinco dedos das mãos, ambos a enlaçaram nas margens. Atravessavam quando queriam e quando podiam... foi isso que Ave Que Não Se Sabe o Nome pôde soltar dessa história, pois ela ainda voa bem lá no alto puxando saudade das penas jogando para as nuvens o mesmo branco de seu peito. E toda vez que chove, são suas lágrimas de saudade...

Eles miravam o céu. Um dia outra noite, a madrugada e a noitinha eram deles, só deles... Olhos de Mato e Mar era cego, e Cabelos Sem Luz era surda... ele cantava passarinhos ela não o respondia; ela pintava paisagens de amanhecer ele não via. Resolveram tudo por telepatia!

Foi quando Cabelos Sem Luz pintou os olhos dele: um de Mato outro de Mar, e ele viu! Depois ele soprou no ouvido dela: “Amor...” e ela ouviu.

Eles conversaram. Estavam no meio da ponte dependurados de cabeça para baixo. De frente viam o céu, de costas viam o rio que corria de baixo da ponte. Optaram olhar o céu... pois as águas que correm nunca serão as mesmas, e o Tempo que passa nunca será recuperado. Mas o céu... o céu sempre estará lá para os namorados.

Ouviram-se eles ainda agora, quando o sol beijou a terra. O coração de Cabelos Sem Luz veio à boca, era a voz dele... E Olhos de Mato e Mar tinha os olhos verdes nesse período... ficavam assim quando apaixonados demais por Cabelos Sem Luz. Virava capão selvagem; muito serrado e faceiro: Verde, como ela os preferia...

Porém, quando também ele a tem em olhos azuis, Cabelos Sem Luz igualmente o enamora, pois está ele em fluído, tão etéreo: o Amor puríssimo e delicado, a acalmar os sentidos dela, invadindo-a por inteiro de ponta a ponta, então ela vira éter e corre em direção aos azuis de Olhos de Mato e Mar, torna-se sereia dele; ela veste seus cabelos negros como roupa e segura um espelho e uma espada, e o defende de tudo abrindo caminhos... Caminhos para ambos seguirem em frente, onde ninguém mais passa!

O sal esquenta na comida; o sol range nas flores; a Luz regenera os fatos da vida; os pássaros entregam-se ao abate da cópula – o Amor não tem cura... por isso Ave Que Não Se Sabe o Nome voa entre os céus soltando suas penas brancas do peito pra fazer chover no mundo, a Água da Vida. É o Amor indizível e inominado – a própria cura. Aquele círculo que se fecha e abre para fechar-se novamente abraçando tudo que vem pela frente, as águas que rolam de baixo da ponte.

Então eles tornaram-se Um - a ponte que os cinco dedos das mãos teceram em acordo. O sexto dia era o estado mais interessante... ouviam-se sem falar. Viam-se sem estar presente. Sentiam-se sem se tocar... amavam-se intensamente sem ninguém suspeitar. Isso era o que Ave Que Não Se Sabe o Nome dizia daquela gente, eles: Cabelos Sem Luz e Olhos de Mato e Mar.


(continua...)

Katiuscia de Sá
06 de dezembro de 2011.

* * *

E no decorrer dos dias abriram-se as natas no peito de Cabelos Sem Luz – um jardim de Afonso rodeava toda margem do rio que passava debaixo da ponte deles. Com seu rosto iluminado, Olhos de Mato e Mar perdia-se naquelas flores tão amarelinhas feito sol que nasce no céu amanhecendo. Brincavam umas com as outras, as flores, quando o vento passava balançando o ar com sua presença invisível, então estas quando se afastaram, devido ao vento, emergia o rosto do Caminho de Rivera.

Cabelos Sem Luz partilhava do peito dele – seu Amado, a mesma esperança amarelinha e o mesmo Amor que tecia o segundo rebento, sendo o infante feito pelos cinco dedos das mãos de ambos – um filho. O caminho de Rivera estava abrindo-se. O casal lia cada parte do livro. Cabelos Sem Luz dormia... e acordava em Rivera; Olhos de Mato e Mar organizava os tecidos e as fraldas, o rebento estava por vir – o segundo.

No caminho de Rivera, Cabelos Sem Luz imaginava e escrevia, mais outro dia sem Ondina... flertava com as espumas junto aos barrancos. Jazia humilde em torno dos muros de Rivera, Ondina. Fertilizava o coração do rebento por vir. Ele revirava-se no Além das coisas. E as pontas dos dedos sentiam a pressão do choque, Ondina...

O casal chegou ao silencio... estavam Olhos de Mato e Mar e Cabelos Sem Luz junto a Rivera, encontraram Ondina à sua espera. Ondina entrou em ambos acumulando mais força ao rebento por vir, o segundo filho. Este teria três partes e dois pedaços, repletos e completos pela linha do Tempo – Platão. Seria mental o filho de ambos, o Segundo.

Após decifrar este pedaço da história Ave Que Não Se Sabe o Nome soltou um cântico... era o mais Belo dos Belos, o Amor apenas para Afonso: o jardim. Então ela – a Ave, batia suas asas rumo ao sol, indo aninhar-se no coração de seu amado... e depois voaria de volta ao chão como gente, quem sabe... E continuaria sua história.

(continua...)


Katiuscia de Sá
08 de dezembro de 2011


De volta ao Caos! Houve uma grande explosão de sentimentos e letras, onde todos foram queimados – este era o Coração! Devastado... Quanto mais a Ave chorava e sofria... mais bela e magnifica tornava-se! E ainda pouco, os vivos – com suas chagas abertas, entupiam o meio da passagem. As válvulas todas se soltaram, menos o vapor que continuava apavorando as plantas, que sem ver o sol, choravam pela falta de Luz. Faleceram lentamente, todas elas coitadinhas: as esperanças.

E o pouco que restou, ela, a Ave – carregava como escombros sobre o peito nu. Com os olhos marejados, enxergava as distorções lá do alto... não queria mais pousar; nem comer; nem beber, não queria mais viver... não viraria mais gente. Não era gente, nunca o foi! Era Ave Que Não Se Sabe o Nome. E jamais falou novamente nem cantou. De sua língua nasceu um musculo seco e rijo: uma corda sem som... a Ave que não canta.

Depois que retornou ao Caos, Ave Que Não Se Sabe o Nome voa para sempre sem pousar ou aproximar-se das gentes... nunca mais virou mulher ao chão. Sua desgraça branca arrancada com as penas do peito, seu tórax ardendo com o sol abafado nas nuvens, um coração em pedaços!

Todavia, Ave ainda sabia contar histórias. Então sussurrava para os ouvidos que restaram no cepo das árvores mais altas, aquelas próximas ao céu, onde Ave habita. Só lhe restaram as letras... as letras, apenas. Ela devia encontrar sua completude e organizar-se em torno disso. Tudo sempre ainda estava sendo escrito, ou por escrever... “eu nasci para ser sozinha, como os livros”, o ultimo acorde da Ave – aquela Que Não Se Sabe o Nome.

Amanhã é outo dia.

(continua...)

Katiuscia de Sá
12 de dezembro de 2011


* * *

As resinas da Mentira acalabouçando as plantinhas, pobrezinhas: as esperanças... depois que sua língua virou galho seco de corda sem nota, Ave seguia sem rumo, um pensamento linho de pano e cordão. Seus olhos doíam de tanto chorar. Sua boca seca sem música – o amor estava preso, o adubo dos dias degenerado! Houve um dialogo. Este pôs tudo sobre a mesa e devorou-lhes os presságios e ações. Haveriam de repensar tudo corrido até agora – as decisões! Então as águas de baixo da ponte.

As águas rolando,

E rolando...

E rolando...

Cabelos Sem Luz voltara sereia que um dia foi. Viu seu corpo violado sobre o chão, e depois as pernas virando cauda de peixe. Nadou naquelas águas com seus cabelos de algas. Devolveu o sabor do sal ao líquido. Devolveu aos peixes a alegria de estarem vivos. Mesmo assim Ave não quis retornar ao chão. Saiu das Águas, ficava voando em rodopios sobre os seres, com seu coração aos prantos... seria saudade por mais uma semana.

Soltou um “pio...” a espera de outra ordem. E nisso soou “eu descobri você”, disse aquela voz dentro da cabeça dela e dentro da cabeça dele – as ondas quebrando nas pedras. As águas do rio rolaram para o Mar, então! Olhos de Mato e Mar e Cabelos Sem Luz afogaram-se um no outro, tudo era tarde demais. Estavam ambos sem forças...

“Um beijo, apenas um beijo...”, sussurrava o vento feliz no meio das flores daquele jardim, Afonso.

Ave Que Não Se Sabe o Nome cantou uma guaraña triste sobre as águas. Foi mais uma despedida. Amanhã é outro dia... não será, posto que já é – o coração único dentro do peito daquele filho em gestação, o segundo. Depois da conversa, eles decidiram o nascimento deste. Então os cinco dedos das mãos emaranharam-se novamente, Olhos de Mato e Mar e Cabelos Sem Luz.

E Ave – aquela Que Não Se Sabe o Nome, voava, aguardando o decorrer desta semana que seria saudade outra vez... chorava suas penas brancas sobre a terra. Seus olhos doíam de tristeza. Sentiria e passaria fome outra vez, posto que seu alimento era Amor... pensava em matar-se pela ultima vez e definitivo, não adiantava viver na solidão!

Então ela, a Ave, voou com sua total força rumo à tempestade acima de todas as nuvens. Atravessou chuvas, ventanias. Relâmpagos devoraram seu coração, eletrificando seu ser com toda fúria e rasgura dos céus – um buraco negro que sorve as coisas... os dias frios transformaram Ave em algo incompreensivelmente belo e afastado do mundo. Tão belo e alvo, as penas arrancadas e jogadas à terra os pingos das chuvas, a Água da Vida.

Ela chorava sufocada de dor... não podia mais cantar – a coitadinha. Seria saudade por mais uma semana. As águas rolando de baixo da ponte...

Então ela fechou sua vista foi para dentro outra vez. Voou sem olhar para trás. Ave em extinção queria morrer, encontrar os seus... voltar para Casa. Não aguentava mais o peso do mundo, e viver sozinha por entre as nuvens na insuportável incerteza – aquela semana, a saudade novamente.

Passaria fome outra vez, posto que seu alimento era Amor... neste mundo ela – a Ave, não recebia Amor... fechou a vista e olhou para dentro, escurecendo o coração, não lembrando de lugar algum e de ninguém. Fechou-se num galho – o sono eterno. Ave Que Não Se Sabe o Nome morreria, enfim! Ultima de sua espécie, sem companheiro e sem Lar... restou apenas a lenda de que um dia existiu uma mulher que virava Ave Que Não Se Sabe o Nome. Ela, então alcançou o silencio eterno e a boca sem voz.

Não contaria mais histórias, não cantaria mais belezas, deixara de sorrir há muitos séculos. Muito engodo e trapaças no mundo mataram a bela Ave, foi de fome... não havia mais Amor no mundo. Seu sofrimento foi maior do que o Tempo e a Solidão, indo Ave, dormir para todo sempre – a morte.

Então, a história de Olhos de Mato e Mar e de Cabelo Sem Luz ficou pela metade. Nunca ninguém soube como era Segundo, o rebento. E ninguém soube se este realmente era feito de três partes e dois pedaços ou se mesmo ele existiu. E não sabiam dizer se a ponte entre os namorados perdurou a todas as trapaças e engodos dos mundos, mas as águas continuavam rolando debaixo da ponte, a Vida.

As pessoas apenas souberam que nos lugares remotos da terra um dia viveu uma mulher que virava Ave Que Não se Sabe o Nome... e que ela morrera por falta de amor na Terra – o Verbo foi embora do mundo!

(continua...)

Katiuscia de Sá
13 a 17 de dezembro de 2011

* * *

Então após muitos anos passados, pois estamos no século 200 agora, Ave que havia sumido, voltava com os pingos das chuvas, que eram vermelhos por causa de tanto sofrimento que seu coração virou liquido acariciando a terra quando jorrava do céu. A ferrugem que os humanos respiravam em suas narinas. Da Ave, seu canto formou-se trovões, ganhavam todos os cantos. Era o Canto remoto dela, Ave – que retornava aos poucos.

Apenas lembranças ela restara. Entretanto, ninguém mais sabia como era a lembrança do Amor. Tudo era holofote agora, as recordações não estavam mais nos livros nem nas memórias, eram plantadas num campo, e quando todos queriam lembrar-se de algo, mesmo não vivido, recolhiam uma plantinha e mastigavam os talos – chegavam as intuições amenizando o vazio.

Entretanto, Segundo – o rebento de Olhos de Mato e Mar e Cabelos Sem Luz, era... alguém o viu, e disse que foi bonito, e tinha realmente três partes e dois pedaços, e seus pais (os namorados em cima da ponte dependurados olhando o céu), os fez com suas próprias mãos. Houve um momento sim, que acharam em desistir, porém Segundo – o rebento deles, foi mais forte ainda: nasceu! E vingou!

Com os verdes olhos do seu amado, Cabelos Sem Luz resolveu as questões da Alma: abriu seu peito expulsando as incertezas. Delirou ao seu par todos os segredos dantes nunca revelados. Silenciou seu interior e Olhos de Mato e Mar deu o primeiro passo... ele a tomara pelos braços, e a levou até seu coração, que era cinema. E ficou surpreso, pois o dela também era cinema; então juntos irradiavam Luz e movimento: os sonhos que os outros viam.


(continua...)


Katiuscia de Sá
27 de dezembro de 2011.

* * *

Alguns vadalos-simbus aproximavam-se perto da passagem de Rivera. Então de repente, ouviu-se um tilintar – era uma pétala vermelha de rosas desabrochando escancaradamente pelo chão do Jardim de Afonso. Os vadalos-simbus, vendo tal significado, correram enquanto dava tempo... porém, aquela cor de sangue molhou as patas deles, indo todos tornarem-se chão, junto às raízes. Mais umas árvores nasciam em redor daquele jardim, tudo isso em proteção do caminho de Rivera, onde somente os escolhidos poderiam atravessar.

Isso foi antes de estarmos no século 200. Ave, ainda sobrevoava as gentes, olhando tudo lá de cima e armazenando na memória todos os povos. Um dia ela – a Ave, pousou rente ao jardim de Afonso. Suspirou algumas plantinhas, arrancando-lhe os talos com o bico. Doeu no chão. Mas ela continuou bicando até furar a terra. Dali brotou um olho d’água. Era azul, a tinta que Cabelos Sem Cor pintou um dos olhos de seu amado.

As ervas arrancadas pela Ave, eram daninhas... tudo foi arrancado... tudo foi arrancado... e cuspido! O jardim ficou puro e branco outra vez. E no chão flutuavam algumas plumas do peito da Ave, e o céu empalideceu e depois escureceu. Mergulhando o mundo numa sombra profunda durante muitos e muitos séculos, até chegarmos agora, quando Ave retornou e continuou sua história, que era de amor entre os namorados dependurados na ponte e que olhavam para o céu. E as águas rolando, a Vida.

E aqueles corações de cinema fizeram nascer Segundo, o rebento de seus pais: Olhos de Mato e Mar e Cabelo Sem Luz. Custaram tantas mentiras arrancadas do jardim de Afonso para que Segundo pudesse refletir nos olhos das pessoas. Mas ele nasceu e vingou, como foi dito pela ervinha mastigada, que agora era lembrança.

Houve uns dias em que aquele jardim virou sombras... o escuro total do peito das pessoas. Tão negro e distante, sem flores, nem lama. Nada havia lá naquele terreno. Somente medo e solidão. Um abandono feroz feito animal selvagem castigado por uma jaula. Nada vingava ali, até que Ave pousou e rasgou o chão com o bico, fazendo brotar água. Entretanto, mesmo lindo, o jardim continuava ermo. Ninguém o atravessava, pois ninguém conseguia chegar perto...

Mas um dia Ave retornou, e pousou ali novamente. Então fez um ninho. E ficou aconchegada pelo resto da vida, depois que retornou dos pingos vermelhos da chuva. Esse vermelho tingiu as pétalas do jardim de Afonso, que eram todas serenas e também verdadeiras. O jardim conseguiu finalmente conversar com aquela Ave Que Não Se Sabe o Nome. Quem puder travar passagem no caminho de Rivera, poderá vê-los ambos juntos, um dia...

(continua...)

Katiuscia de Sá
30 de dezembro de 2011.

* * *

A sabedoria do Universo coloca tudo no seu devido Lugar, Espaço e Tempo. E aquele povo humano, mentiroso e falho desapareceu do planeta, aportando outros feitos dessa matéria intima e diversa, que o Universo compõe – as folhas novas dos novos troncos da mesma Árvore. As daninhas – jogadas ao fogo, retorcendo na dor sem limite na mente e nos corações entregues ao desespero sem fim.

O Amor quando se torna fato, ultrapassa todos os ditames do inteligível e do entendimento das criaturas falhas... alcança a perenidade e serenidade. Está a salvo. Não importando as maledicências; não importando as invejas e calunias; não importando os conflitos gerados... tudo isso se torna pó no esquecimento, em comparação a fortaleza do Amor que rege todas as coisas. O Amor vence as barreiras internas ou externas, seja de tempo ou falta dele. Vence até a natureza dos seres e as Escritura das coisas. Pois o Amor é a própria Vida, as águas rolando debaixo da ponte. Matéria maleável nos cinco dedos das mãos, que se molda conforme a Vontade do Universo.

Ave não desejou mal àqueles que dela se compraziam na inimizade, na mentira, no engodo, na inveja e interferências negativas... pois aquela Que Não Se Sabe o Nome tinha conhecimento de que estes seres já estavam condenados desde o dia em que praticaram a primeira maldade contra si mesmos... o caos estava alojado em seus corações e dali não mais sairia, nem mesmo agora no século 200, quando tudo se mastigava em lembranças plantadas e escolhidas.

Quando todos os que dormem recobrarem os sentidos, ainda assim o Amor reinará, e este ultrapassa você e eu... Enquanto houver Vida em qualquer esfera, lá estará o Amor pulsando nos corações dos apaixonados, eternamente pulsando e revelando a natureza do bem e do melhor dos mundos, regendo as manifestações douradas nos céus, com as estrelas de todos que conheceram, lutaram e venceram em nome desse Amor genuíno e farto – a Vontade Suprema.

Não há falhas nem enganos quando o Amor se manifesta. Não há certo nem errado, existe apenas o sentimento que rasga tudo que dele for contrário, pois a energia maior que ordena todos os Mundos é Amor, e ele só reconhece quem dele se faz intimo. É desse Amor que Cabelos Sem Luz e Olhos de Mato e Mar falaram naquele dia... Hoje!

E esse Amor vive ainda. Está aqui, ali, em mim, em você... em todo lugar. E para sempre...


Katiuscia de Sá
31 de dezembro de 2011.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

O VERBO (fragmento)

Eis o que “Benício” escreveu para “Marieta”:


Aquele foi o primeiro instante...
Dos lábios tortuosos – o sagrado
Meus ouvidos badalavam e repetiam em sinos:
“Amor”...
“Amor”...
“Amor”...
Uns olhos discretos e leitosos
Riem palidamente para os teus
A esconder penumbras de um futuro a nossa frente.
Apaguei meus dias passados pela única lembrança
Que abraço desde então:
- Tua face com aqueles negros olhos...

Anjinhos sussurram teu nome ao vento
Uma cortina de seda beija meus versos soltos
Rasgando toda solidão aquém de mim.
Tua presença inunda meus dias de Luz
- Um sol que abriu no meu peito!

Na vazante das marés
Meu coração – lodo impregnado,
Chora nos dias ímpares.
Não vejo o rosto teu!
Oval pérola de pomba branca no ninho...

Das ribanceiras das casas
Imagino tua formosura em fim de tardes
a queimar os últimos raios solares.
Ó brisa do céu,
O crepúsculo apodera-se de meu coração!
Aos domingos,
Sobram esperanças de segundas-feiras...

Enquanto crianças de asas
Depositam aos teus pés
Minhas lágrimas de suplicas
Ó desejo em vozes inauditas
Minha flor puríssima
Rainha Vitória e Régia
Ouça minha voz dizendo-te:
- Eu te amo...

Ao despertar, aurora de meus versos
Hoje,
O lindo dia de minha anunciação:
Brado aos pássaros e ao relógio das Horas,
Que na delirante manhã de nossas vidas,
Finalmente hei de dizer-lhe
Ó minha doce virgem,
Aos sons dos sinos
Aos sons dos cânticos...
- Eu te amo.



Katiuscia de Sá
21 de novembro de 2011

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

MERCÚRIO SOLAR (conto)


No lugar dos olhos, mexia uns pares de lentes, (indiferentemente poderiam ser película cinematográfica ou simplesmente obturadores de fotografia). Adorava caminhar pelas ruas recolhendo detalhes, impressões amarrotadas do cotidiano, como um pequenino jogo de idéias e imagens correntes. Captava pormenores dantescos! E detrás disso, levantava oceanos de possibilidades.

“Vejo o mundo sempre de maneira filtrada, tudo me parece sonho dentro de sonho, dentro de outro sonho, outro sonho, e mais sonhos... um devaneio que nunca acaba! Como se o mundo girasse dentro de minha cabeça despencando em crônicas espontâneas, aquarelas, desenhos, ou filmes verdadeiros sobre algo captado pelo meu corpo-antena.”

Às vezes tudo se misturava:
Cheiros,
Planos,
Pedaços de vidas,
Gestos,
Matizes...
Um apaixonante quadro em movimento,
Aquarelas pintadas e planos refeitos a todo instante, descortinando-se bem ali, à sua frente.

“As ruas, de repente, transformam-se em cenários magníficos, palco para performances anônimas – recortes de livros de dentro de mim...”

Aprendeu ela, que existe outro mundo atrás desse que se mostra fugazmente. Aprendeu a ver o Invisível e Indizível das coisas.

“Flutuo pelas ruas, e tudo parece tão normal, porém, quem enxerga para dentro percebe-se mergulhado numa neblinazinha tênue e hipnotizadora... dela vem O Antigo Idioma, que aprendi espontaneamente a traduzir o que é Verdadeiro aqui fora...”

Então, dessa Libertação da carne, a Alma vibra e quer-se mostrar – advém o canal vibratório para a linguagem de emoções materializar-se no que, convencionalmente, acostumamos chamar de “real” – As Artes.

“Meu corpo está preso ao chão...
Mas minha Alma voa.
Vêem?
Essa aí em cima,
Sou Eu
a Ave Que Não Se Sabe o Nome.”

Num arroubo de fome Katharinna arrebatou um alfinete e furou-lhe o dedo, mas não com o entusiasmo de beber-lhe o sangue. Ficou apenas olhando o jorro cobrir o verde do chão. Transformou-se em Marrom, a superfície. E o vermelho também lhe manchou o vestido.

Por onde passava ela, as árvores punham-se a conversar. Animadamente escoltaram Katharinna até as esferas que dormitavam deitadas junto à calçada. Uns passarinhos atirados começavam a despontar à porta do despenhadeiro, havia pequenas estrelas também, avolumando-se nas arestas do coral.

Num momento, as persianas abriram-se para deixar entrar o poder solar. De um lado um Sol Amarelo, do outro um Sol Carmim... Katharinna vinha por entre ambos, um caminho traçado na superfície esponjosa dos musgos submarinos. Às vezes deslizava, escorregavam-lhe os passos, tal areia movediça. Tudo lentamente...

Sabia ela que nunca seria um deles... Suas asas e nadadeiras apareceriam em qualquer momento de felicidade, denunciando sua real procedência. Contentou-se com isso! Saberia, contudo, ocultar essa característica. Apenas outros de sua linhagem se reconheceriam em terra. A vibração filarmônica correria de Alma para Alma... O Antigo Idioma.

As linhas, cujo Destino mudava de Mão em Mão, ensinavam para o dono das mãos, que não se pode julgar alguém pelos tropeços de outrem. E que cada dedo difere em função e formato entre si!

Katharinna sempre pensava essas coisas quando flutuava, por isso as árvores conversavam com ela ao som da Orquestra-Vendaval. Em algumas noites Katharinna se despia e caminhava nua dentro dos Sonhos do “Homem-sem-Ternura-nas-Mãos”, até que num desses Sonhos, Ele a percebeu.

O olhar desse Homem foi tão forte que levantou dois Sóis brilhando Katharinna. Seu coração derramou vermelho sobre o vestido que a trajava fora do Sonho. E Katharinna orgulhou-se de estar coberta por esse vestido. Quis mostrá-lo detalhadamente: era decorado por delicadíssimos fios de Sol-de-Vicente.

Tanta prudência nas mãos fechadas, mas nenhum pássaro recolhido à esfera espalmada. O manobrista desconfiava de seu co-piloto, e este tão ingênuo quanto um foguetinho de São João, estourou à porta do estábulo. Precipitaram-se os cavalos numa correria frenética e desgovernada. A ventania tocando Carmina Burana. A estupidez e arrogância da Besta galopavam frente aos Sóis. Quis roubar as ferraduras dos corcéis.

A Ventania, porém, bateu-lhe as mãos, e soprou-os novamente... Katharinna e seu Amor estavam imunes a tais acontecimentos. Em terra assemelhavam-se aos mamíferos, em Sonhos assumiam barbatanas e asas. Katharinna acostumou-se com o Céu a entrar-lhe n’Alma.

Depois que adormeceu daquele Dia - “Homem-sem-Ternura-nas-Mãos”, os bárbaros que habitavam os bosques selvagens de Hoyorh, deram-lhe novas peles para cobrir-lhe o corpo; deram-lhe novo nome e nacionalidade. Ele, porém, não conseguira aquarelar a fúria que seus olhos de pássaro carregavam em si.

Nos seminários, lá estava Aquele corpo cheio de vida a insultar de cores os presentes. Os cinturões de hematitas retesavam aquelas estátuas que se diziam com vida, povo de areia e sal.

Aqueles olhos selvagens ela também os tinha num total controle. Era humilde nas vontades, sabia Ela respeitar àquele povo de vidro. Devia isto ao seu velho Mestre. Daquela fúria dos campos servia para a fabricação dos Sonhos e Porções de Vida.

Alguns dias se passaram. O trem continuava por entre os montes. Indiferente àquelas gentes de areia e sal.

Ninguém a controlava. Fazia Ela apenas o que era de sua vontade ou em obediência ao seu Mestre. Apenas Ele conseguira domesticar-lhe as ancas e pensamentos. Obedecia a Ele porque Ela era Ele também. Em algumas porções, entendiam-se.

Ao som do osso de flauta, ramificava-se sobre as salgadas terras, virava-se em galhos e sementes. Ao fundo, um antigo cântico xamânico encontrava os ouvidos de quem ouvia o Verbo-voz.

Depois que Ele a fertilizou, nasceram as quatorze cabeças da Antiga Linhagem. E os olhos Dele cada vez mais selvagens, mais ainda do que os Dela. Governavam ambos, a catedral dos sonhos, portal que atravessava os Mundos.

O trem continuava a movimentar-se por entre as nuvens, sacudindo os esqueletos de areia e sal...

Aquele corpo de música tirava notas de ossos de flauta. Inundavam sua mente recém-desperta. E a Luz a esperava para caminharem juntos. Faria esse esforço, por duas noites consecutivas, Ele veio vê-la, através da neblina.

A consciência, atenta como um renascentista. Ele estava do outro Lado à sua espera - tempo, o caminho a percorrer. Pedaços de vida, as mensagens para os olhos Dele. Ela escrevia desde sempre... Tudo o que era Verbo antes de conhecerem-se, apenas Ele compreendia. Acordavam tão conscientes que enxergavam até o Invisível.

Os acontecimentos seguintes seriam deitados a guisa das coisas. À horizontal parecia tudo mais eficaz, posto que as linhas imaginárias se entrecruzavam, teciam o manto do enlace noturno.

O amor promove revoluções e o despertar das idades. As borboletas, as borboletas... olhos-de-mel sobre Ela, um enigma de formas e sentimentos. O Antigo Idioma novamente proferido. Graças ao tempo de nascimento, Ela o absorvia.

Amavam-se sem que os mortais os compreendessem. Duas mãos: duas penas, a mesma folha. O entendimento – o grande circulo, o Antigo Idioma, um carvalho.

O Silêncio...
O Mar...
O vento...
As Árvores...
A Música inaudível...

O Amor cartografando um mapa de Luz sobre suas próprias frontes. Era a maneira Dele dizer-lhe “eu te amo”.

“Navegava naquele rio vermelho. Suas artérias e vasos cediam-me a passagem. Cambaleei algumas vezes, mas sempre encontrava o caminho de volta”.

O terreno era arenoso em algumas partes. O silêncio ditava os atalhos e as conversas internas. Vários seres povoavam aquele Lugar, Eu era agora um deles (eternamente agora). Enxergava através de seus olhos de vidro na minha mente, contemplávamos um para dentro do outro.

Vi aquelas crianças-verdes saindo dos cascalhos das árvores. Vi o pássaro-amigo e também o pássaro-negro. Este, através da melodia rangida pelos meus ossos, afastou-se Dele para todo sempre! Minha sombra o protegeria de agora em diante, (o meu Amor).

O solo também era líquido quando flagrei minhas barbatanas e guelra. Os olhos Dele eram felinos, dilatavam-se para cima de mim. Sorveram-me. Escoltaram-me até àquele Lugar seguro.

Sua companhia, um Leão dourado a lamber-me o corpo em carinhos e limpeza. Lambia-me acarinhando os ferimentos. Seus dentes crispados mordiscavam-me em partes onde somente quem ama verdadeiramente pode tocar sem machucar. Isso, leia-me.

Recompensa por ter ido além de onde eu poderia... fui transformando-me em terra, flor e fruto. Ele, um Leão dourado, depois Árvore. Penetravam-me, seus galhos...

Agora Katharinna era ave lá em cima. Voava sobre umas casinhas desenhadas sobre a terra, (terra natal).

“Não tive medo de ser Lá, Ele estivera comigo o tempo todo segurando minha mão. À outra margem, seria Eu qualquer coisa, cipós escorrendo do firmamento, trazendo consigo pessoas bem pequeninas para habitarem naquelas casinhas desenhadas”.

A alma daquele lugar tocou-a e acelerou nela seu hálito de Luz, Água do Ventre da Criação.
Um transe consciente - O líquido da Vida. Amor puríssimo,
Sem nome...

Depois de tanto caminhar sobre as serragens, observou Ela que o chão agora brincava de cascalhos. E a cada par de léguas encontravam-se velhas árvores esparsas umas das outras. Sabia que dentro de uma delas jazia seu Amor - à sua espera.

Mal podia ver o lume desejoso do Sol ansioso por aquecer aqueles corpos de algodão e pedra, que não mais se moviam atados aos cascalhos do chão.

Em cima, o céu e seus olhos flutuavam como estrelas arredias, observando aquele povo miúdo e inconsciente.

Katharinna caminhava incessantemente por entre as folhas do livro. E a cada árvore avistada, seu coração batia mais forte.

“Ainda não é esta Árvore em que habita meu Amor...”

Seguia adiante. Ao arredar-se de um cemitério de elefantes, notou as carcaças e as grandes presas afocinharem o solo, que agora era de lodo. Tanta caminhada... ela vira tanta coisa; tantas gentes deformadas; outras ainda nem nascidas; e outras já mortas a vagarem sem avistarem outros mundos.

Katharinna via tudo e um pouco mais. Sabia estar próxima do carvalho que aprisionava seu Amor.

Após milhares de estações não contadas, aportou numa ilha irmã de neblinas róseas. Passos afundando..., retornavam lentos e pesados, até que suas forças transformavam-na em Ave Que Não se Sabe o Nome. Seus pés e dedos afiaram-se grandes garras. Os olhos juntos na fronte acusavam uma ave de rapina. Voava naquele céu cheio de olhos.

Tantos tempos solitários apenas voando e se alimentando... até que um dia pousou sobre a árvore que a procurava. O tronco quase estéril. Do encontro, não falavam por palavras, apenas Verbo. A Ave Que Não se Sabe o Nome, ao tocar o solo, transformou-se em mulher, sobrando suas penas apenas nas omoplatas.

Estava nua a percorrer suas mãos aos retorcidos cascos ásperos da forma trançada ao chão. Não havia mais folhas prendidas aos galhos... Quase morta aquela árvore sobre a terra, reconhecera a mulher-alada. E como um milagre, suas veias cheias de verdes migraram folhas novamente.

Ela cavou por entre as raízes resgatando aquele Homem nu muito branco, muito lindo e delicado, quase adormecido... abrigou-o aninhando-o em seu colo. Amamentou-o e o vestiu com as próprias penas arrancadas das omoplatas.

Enquanto o amamentava - a mulher-alada, que se diz Katharinna - unia-se bem para dentro dos olhos de seu amado:

“Todas as noites antes de dormir, meu último pensamento é teu. Ao acordar junto com as manhãs que se levantam, és Tu minha primeira respiração consciente. Tua presença encanta meu corpo e minha Alma, na lembrança que jamais esqueci de que sou tua e de nenhum outro Homem”.

E hoje, quase Agora, Ele ainda chora ao ler sua história tal como aconteceu naquele lugar encantado. A moça nua que virava Pássaro que Não se Sabe o Nome também é Verbo. Ele também oO é. Estavam a voar nos céus sobre nossas cabeças, ainda há pouco.

De repente...

“Não lamente...”, o vento soprava violentamente lascando os ossos de Katharinna.

“O que aconteceu, aconteceu...”

Aquele homem nu, escavado da terra pelas mãos de Katharinna não fora forte o suficiente para suportar novo calor em seu peito... a terra preta já o havia carcomido as entranhas e a mulher que se vira em Ave Que Não se Sabe o Nome apenas podia ficar ali, naquele cemitério de elefantes, vendo seu Amor falecer sem nunca mesmo ter tentado viver, Ele.

O pranto de Katharinna era em vão... Ele mesmo quis morrer saboreando terra e sal.


Então Ela virou novamente Ave Que Não se Sabe o Nome, voou para longe, muito longe... onde a voz daquele homem nunca mais a alcançaria. Bebeu Ela oceano e mar. Inundou-se, virou peixe. Sendo o fardo Dele arrastar-se sobre a terra sem mãos e sem braços, para um dia tê-los novamente.

Katharinna enlouquecia, mas abandonara àquela terra. Em algum Lugar, um mundo inteiro se partia, mas a Mulher-Ave, após tantos desertos, escrevia:

“Muro de heras, tua Pátria findara
Na relva de matas escuras e densas...
Matara e profanavas um coração desabitado,
Inocente como nunca outro encontrarás.
Tivestes a quem abraçar,
A quem sorrir,
Tivestes a quem te amamentar,
A ti dei meu peito e meu leite...
Deitastes tudo no único chão
Que não te pertencia...”

Ela seria a última Ave, solitária até sua própria extinção. E desde esse dia Ela se fora, (porque Ele mesmo a havia mandado partir), tudo porque não sabia o nome Dela.

Um dia, porém...
Um dia virá de acontecer que durante as chuvas de pingos d’ouro, aquele homem nu deitado ao chão recobraria os sentidos, recordando apenas daqueles braços e daquelas pernas que o guardara do frio e das neblinas... e daquele peito que o amamentara.

E como o canto de um pássaro, seus olhos choravam o lamento de procurar aquela mulher nua com penas nas omoplatas, tinha saudades de sua própria boca naquele seio de leite. Essas eram suas únicas lembranças, desde então.

E de boca em boca, de seio em seio, Ele haveria de encontrá-la novamente. Deitou-se outra vez ao chão, como árvore frutífera, para atrair sobre si a Ave que Não se Sabe o Nome - que se diz Katharinna...

Katharinna...
Katharinna em “Terras de Vicente”...
haveria de voltar para seu Sol-de-Leão,
Mulher-satélite, sua esposa lunar, para todo sempre.
Esperava, aprendendo a sentir e ser beleza e graciosidade da Lentidão, que se diz Eternidade.

E em meio às tempestades de sal, Ela lhe escrevia:

"Sempre te amarei...,
Tu que sabes,
Subo aos céus evaporando,
Pelo sopro de teu vento,
Estarei onde estiveres Tu,
Meu querido Amor..."


"Eu te amo..."

"Eu te amo..."

"Eu te amo..."


Todas as vidas são uma. O que o braço direito começou como um movimento, o esquerdo um dia, há de acabar.

Uma renda de panos finos, telúricos, alvos, serenos, invisíveis, cobrindo a vista do povo pequenino de pedra e sal. Katharinna foi até eles. Fez a Leitura das Almas, aprendeu com as caveiras do Templo.

“Escuta-te!
Tua Música rebenta no ar...
Fere os momentos de angústias e solidão
De todos aqueles que se perdem.
O Silêncio existe...
O Silêncio exige...
Pois há um Mundo além deste,
Onde as Coisas são verdadeiras.
Quando tudo se inicia por Lá,
É que se torna Real
Aqui onde nosso corpo de carne
Habita...
Escutas minha Música, Amor?”

Voltou-se para dentro de si novamente, a chama do Fogo oscilava, fez-se novena, reza, procissão... Abraçaram-se os Tempos de ambos, uniram-se por entre a Multidão.

Ensinou.
Aprendeu.
Desesperou-se.
Mas ao final, tudo deu certo.

Amanheceu envolvida naqueles galhos da árvore frutífera. Alimentou-se e lhe fez companhia, até o momento em que os olhares pousaram um no outro, outra vez.



“Volte...”



“Fique...”



A mulher nua com asas nas omoplatas considerou a aurora que vinha inocente através daquele rosto casto e alvo. Ele era realmente lindo e nu, (da mesma nudez que a dela). Tanto tempo se passara até que estivessem prontos um para o outro.

No labirinto das fontes, foi Ele quem deu o primeiro passo. E Ela o aceitou, (como o aceitaria sempre).


***


Criança-Vicente acordara agitado naquela manhã. Sabia ele que dessa vez não teria como fugir. Aquele velho espantalho pendurado em suas coisas teria de ceder lugar ao seu novo campo de visão. Tinha medo do escuro, mas teria de atravessar aquele corredor longo e tenebroso. Faria isso sozinho?

“Mamãe, onde está você?”

Nada em resposta, além de suas próprias batidas do coração. Galopava em seu peito uma ansiedade, como se estivesse perseguido de um homem sobre si, para as caçadas...

Ao primeiro passo, avistara uma voz colada à parede esquiva daquele corredor longínquo.

“O que queres, garotinho?”

A ironia em pessoa Daquele que nada teme, persuadia Vicente a não dar outros passos...

“Desejo passar!”, deu-lhe um golpe com toda firmeza que poderia ressonar na voz infantil que ainda carregava na garganta. Com apenas seis anos, é difícil estabelecer uma real ponte entre as coisas.

Sem olhar para os lados, deu outro passo, lentamente outro, e outro...

A Aurora vinha lhe aproximando em forma desconhecida, quando ele deu de si, estava grande, (adulto, talvez?). Não sabia, mesmo se o soubesse, seus olhinhos curiosos comportavam-se como os de menino.

O mundo era-lhe sempre uma descoberta.


Passou a primeira corredeira, cacos e pedras deslizavam sobre. Levantavam tudo pelo caminho. Devastavam. Mas Ele nem piscava, não havia tempo para isso.

Um único rosto para olhar, sempre e sempre... o seu! Um cachorro morto sonâmbulo e egoísta latia sem voz entre o espaço incolor e transparente. Por falta de forças nos pulmões, que tanto secaram sem sentimentos de alguma espécie, ia pelo caminho aquele espectro envolvido de Neutro.

Permanecia colado ao isolado das coisas, levando sobre si todos os ferros que pudesse atrair e amordaçar.

Mentira!
Mentira pelo prazer e vontade da companhia egoística de estar só. Um cachorro morto a vagar pelo chumbo derretido em suas veias.

Frio.
Neblina esparsa.
Névoa molhada.
Morte.

"Vidros estilhaçados. Alguma carne foi furada, e sangra...
Qualquer pé descalço sangrando pelo caminho de fogo,
compreendia, menos aquele Ser Alvo e Doce.
Verdade e Inocência preenchiam suas tripas pensantes,
um coração enviesado,
mas que sentia Amor...
pobrezinha!"

O inocente sangue derramado chamara atenção daquele cachorro fantasmagórico, faminto de solidão e desespero. Olhos brancos, furados e vazios, cheios de ocos, as trevas e a fome de um gato. Nenhum rosto para caçar! A Verdade mantendo-se de pé como a envergadura de um bambuzal. Invariável!

Era mentira?
Egoísmo?
Ocupação do nefasto?
Ou sarcasmo?

Um prazer mórbido, roubar almas alheias e engoli-las para cuspir-lhes deformadas com a insegurança dos transeuntes... Um débil com um machado na mão arrancando o som da gargalhada. Cheios de cortes profundos e dolorosos aqueles pés-alados prosseguiam. Traduziu-se a ausência pela mentira do outro lado... Tudo desamparado... sumindo das atmosferas...

O vento fora violentado por um grito repetitivo e inaudito:
“Ele não se encontra.”

No silêncio do sono Ela experimentou o que os humanos chamavam “ódio”, algo veio junto. Um vazio da forma a acompanhava, um destruidor das coisas inanimadas e inominadas.

Depois que se recolhera para dentro de si novamente, compreendeu que aquele homem com raízes entre os dedos dos pés era Hera de si mesmo. Não havia o caminho de volta.

Ela não conhecia o que os humanos chamavam “medo”. E agora o fio condutor para àquele círculo perfeito, se perdera...

“Covardia” era o nome-humano. Como um reflexo disforme, os anelados sobre o lago iam se afastando, carregando junto cada palavra, olhares, gestos, silêncios, mudez, pranto e espera...

Os humanos, não havia matemática nem hermética. Rosnavam em nome do Cântico de flautas, e não ouviam nenhuma Música de sua voz – o vento.

Àquele estado das coisas, Ela abriu a porta e saiu. Mosaicos sobre os ares.

“A única coisa ensinada por inteiro foi aquilo que os homens chamavam desprezo...”


Como era Ave Que não Se Sabe o Nome,
Então Ela virou-se para o Nascente:

“Pedaços inteiros a partir de agora ou, Nada...”



(Fim)



Escrito por: Katiuscia de Sá
Em: 18 de setembro de 2009.