“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 18 de outubro de 2014

SAL (conto)



A fúria do mar lambia as rochas. Deixava-lheS a cada segundo, seus beijos que vinham do outro lado do continente. E sob a areia caminhava o homem. Ignorava o lamento das gaivotas sobrevoando sua cabeça. Esta ia longe... pensava em sua amada deixada em um País longínquo...

Quieto, ele fixou novamente seus olhos no horizonte, e em seus ouvidos rompia apenas o grito das ondas beijando as pedras. A cada beijo dissolviam mais e mais suas esperanças de voltar a ver aqueles olhos que se encantavam a todos os encontros que mantinham às escondidas de suas famílias – ele e aquela moça de cabelos negros.

Novamente voltava a si. E novamente o barulho das ondas ensurdeciam seus pensamentos. Ele andava lentamente como se não quisesse sair do lugar. E as gaivotas lamentando-se em rodopios. Algumas delas atiravam-se ao leito do mar à procura de algum peixe. Às vezes sem muito sucesso. Outras vezes com o bico cheio.

Cansado de caminhar pelas vagas, o homem sentou-se à beira de uma rocha solitária. Ela estava longe dos beijos do mar, e por isso mesmo enxuta. Porém a praia inteira vazia, continuava assolada pelos lamentos das gaivotas que teimavam por alimento. E as lagrimas do homem eram tão azuis que se estendiam ao mar como pequenos cristais que espirravam para fora das águas violentas. Eram tão pequenas porém, nem a chuva que desbotava as cores do horizonte percebia serem elas suas pequenas filhas que se soltavam de vez em quando de dentro das pessoas porque recordavam de coisas que as fazia chorar.

O homem lembrava-se de seu amor, que agora estava longe... muito longe de qualquer tentativa de aproximação ou convivência. Ele só continuava vivo, porque sabia que em algum momento quando as águas da praia estivessem calmas, poderia ele ao menos ouvi-la cantar para filha deles adormecer. E nessas horas, aquele velho lobo do mar choraria, mas de alegria por ver as duas no reflexo do oceano – aquele marinheiro aposentado jamais as esqueceria, uma por quem se apaixonara, a outra por ser sua filha. Dizem que este homem caminhou naquela praia europeia até desaparecer em fins de 1801, quando ninguém mais o viu. Alguns marinheiros acreditam que ele não resistiu a tanta saudade e atirou-se nas águas. Foi morar com elas nas profundezas do mar.


Katiuscia de Sá
[18 de outubro de 2014, 01:04h a.m.]


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A CERIMONIA (conto)



E como naquele País ninguém podia tomar qualquer bebida que fosse, sozinho, ambos tiveram que aceitar a cortesia um do outro. Com toda precisão e cortesia abriu a garrafa um deles. Com uma das mãos no corpo e a outra apertando e enroscando a rolha, a boca ficou livre; e cuidadosamente o liquido foi derramado no copo do outro. Beberam a primeira dose em silencio. Não se olhavam. Retinham a respiração de angustia e tensão. Dois rivais de aldeias diferentes (e inimigas), ironicamente em um pequeno tratado de paz. Estavam ambos ali um de frente para o outro pelas circunstancias de viagem e também subordinados às leis e à tradição das cerimonias.

A cada copo curvavam-se, porque a ocasião pedia os modos. Mas por dentro, a vontade que tinham era a de sacar suas espadas ou seus ferros para liquidarem um ao outro. Não podiam, porém, devido ao tratado de Paz estabelecido naquele pequeno território fronteiriço. A partir do terceiro copo, ambos já cambaleavam um pouquinho. Estavam muito cansados também devido à longa viagem que cada um foi submetido. E o trajeto ficava mais árduo em toda aquela região por causa do Inverno. O vento cortava a pele de quem ousasse atravessar àquelas estradas, e a energia dos forasteiros ainda era sugada pela atenção dispensada aos animais selvagens à espreita em torno dos viajantes que vinham a pé, o que era o caso deles; por isso o cansaço os vencia, domesticava a raiva.

Além daquele pequeno acordo forçado de paz, devido às convenções, o que segurava suas armas nas bainhas e seus punhais nas sacolas era o próprio local. Um recinto religioso que abrigava sacerdotes, alguns idosos, mulheres e seus filhos órfãos. Em período de guerra, essas cabanas sempre servem de acolhida aos necessitados. Entretanto, nem aqueles olhos salgados pelas lágrimas fazia-lhes amolecer o coração. Uma vez forjados para serem soldados, os homens endurecem permanentemente a alma.

Mantinham-se firmes nas cortesias mutuas. Mas a delicadeza aos poucos era derrotada a cada segundo pela força nas mãos, que já não eram as mesmas de antes dos três primeiros copos de bebida. Agora ambos treinavam o autocontrole dentro de si. O guerreiro antes adormecido pelo cansaço, era atiçado pela falta de juízo que a bebida fazia faiscar nos olhos. E as mãos de ambos queriam sacar e apertar suas espadas, fazê-las bailar pelo ar.

E num comum acordo os homens, vencidos pela bebida, olharam-se longamente. Seus rostos eram um fio de fogo. Ardiam a mesma vontade de duelarem. Consentiram e abandonaram-se a essa ideia. Então iniciaram o ritual para trazer a virgindade de volta aos ferros de suas espadas. Decidiram se encontrar brevemente passados dois dias, quando finalizado o “ritual das armas”.

Afastados, cada homem procurou um local isolado naquela redondeza. E ao pôr-do-sol, cuidadosamente lavaram suas espadas com as águas de um pequeno riacho que teimosamente ainda se mantinha correndo; e cada um abriu uma cova perto de uma árvore. Deixaram descansar suas espadas ao peso e quentura profunda da terra. No segundo amanhecer depois disso, suas espadas estariam prontas novamente para a luta.

À tardinha do segundo dia, lá estavam ambos novamente a se encararem. Um deles trazia uma vela rotunda juntamente com uma caixa de fósforos. Escolheram o local mais afastado possível e sem vento. Foi difícil, pois naquele inverno severo, onde até mesmo as arvores sem folhas se mexem, achar um local tranquilo era de igual desafio.

Encontraram uma pequena gruta, que ainda se mantinha úmida. A neve ignorava o seu interior, igualmente o vento não se atrevia entrar. Então ali, o homem com a vela iniciou os preparativos para o duelo. Encontrou uma pequena plataforma de pedra e assentou a vela acesa. Um de cada vez teria apenas uma chance. E assim procederam. O primeiro errou a pontaria. O segundo, porém, foi certeiro! Apagara a chama num golpe sem cortar o pavio. O soldado que perdeu o duelo, não acreditando, precipitou-se em direção à vela e a segurou atentamente. Estava realmente sem nenhum corte. Então, o homem deixou escorrer o sal de seu corpo através dos olhos. Após conter seu choro pela vergonha da derrota, ajoelhou-se humildemente, consentiu ser até o fim de sua vida o servo do guerreiro que o vencera no milenar duelo da vela.



Katiuscia de Sá
[17 de outubro de 2014, 22:24h]


domingo, 7 de setembro de 2014

O ABAJUR E A ROSA MENINA (conto)



Era uma vez um vaso que foi colocado à soleira de uma janela. Era de uma casinha bem bonitinha. A dona da residência sentia falta de plantas, logo inaugurou uma das janelas com uma pequena muda de Rosa Menina. O vaso ficava bem na direção de um abajur comprido, de hastes imitando pétalas abertas, cuja lâmpada era o centro. Era uma luz antiga, daquelas amarelas. E ela testemunhou toda a metamorfose da pequena planta acomodada naquele gentil vaso.

Passado um mês mais ou menos, começaram a despontar os gomos das flores. Certa madrugada o abajur percebeu que o primeiro gomo estava se abrindo, e dela saindo vagarosamente, como se espreguiçando, a primeira Rosa Menina. Vendo aquele milagre orgânico da Vida, o abajur apaixonou-se pela florzinha. Ficou incandescente desde a manhãzinha com sua luz amarela a se alastrar pelo ambiente. E pouco antes de ser desligado, o abajur soube pela própria florzinha que na madrugada seguinte ela não mais estaria ali, pois ao longo do dia iria murchar e morrer. O abajur ficou tão triste... tão triste, que aquela emoção fez o filamento de sua lâmpada se romper.

Porem, a luminária sabia que sua luz seria trocada por outra, mas aquele abajur não poderia mais suportar a ausência de sua rosa menina. Então decidiu nunca mais passar energia pelos seus filamentos, e desse modo não teria mais serventia. Aconteceu assim de a dona da residência se desfazer do objeto, indo ele parar em um canto do quintal da casa, onde eram depositadas coisas que não tinham mais serventia.


Deitado no chão onde alguma grama o acalentava, por coincidência da Natureza, precipitou-se espontaneamente um pequeno canteiro de Rosas Meninas. Visto isso a dona da casa não teve outra opção, senão deixar a luminária onde estava, pois se o retirasse de lá, todo o canteiro iria ser arrancado junto. Assim, aquele abajur foi sepultado, sendo ele consolado diariamente pelo nascimento de várias Rosas Meninas, que lembravam a primeira que ele havia visto e se apaixonado.



[Katiuscia de Sá – 07/09/2014, às 11:10h]



terça-feira, 19 de agosto de 2014

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O Céu Escuro de Baal_ILUSTRAÇÕES

Em breve estará online meu novo livro "O Céu Escuro de Baal", é uma ficção em estilo realismo fantástico, totalmente em linguagem poética. Aguardem! Enquanto isso, apreciem as ilustrações que fiz para acompanhar o texto.




















sábado, 19 de abril de 2014

SÁBADO DE ALELUIA _curta de bolso

Fiz hoje, aproveitando a luz que estava tão bonita esta manhã... e quando se mora num casarão de mais de cem anos, tudo é inspirador. Este curta de bolso é mais um exercício do olhar, uma brincadeirinha séria.




sábado, 8 de março de 2014

QUANDO TUDO COMEÇOU


Desde a primeira vez que fiz, foi diferente. Mesmo sendo um pequeno exercício de campo. Sob o olhar de quem entendia. Já naquele momento ele soubera que algo grande estava em gestação, pois havia bem ali na frente do professor, uma semente rara em estado de potencia, que era eu... mas eu não sabia.

Depois que as luzes se acenderam dentro do quarto, a consciência dentro da cabeça caminhava em circunferência, levitaram meus cabelos e eu me arrepiei. Era o pensamento tomando conta de mim bem pela raiz. Abriram-se as janelas, cada uma com uma velocidade diferente para as dobradiças.

O sol pôs-se a passear lentamente pelo céu, como fazia todos os dias... já era costume sua luz invadir por aquela imperfeição bem no meio da porta. Não dava para consertar. E era justamente por causa dessa falha, que tudo se iluminava.

Eu sempre fui estranha para os outros. Gostava de coisas que ninguém entendia. Adorava a solidão junto à Natureza. Isolava-me passeando por entre as folhas e mato. Abraçava as arvores, e adorava os bichos. Não sabia conversar com as pessoas muito bem, faltava-me o idioma. E este eu descobri ao longo da vida, realizando e criando coisas inúteis.

Foi um dialogo difícil. Muito difícil... mas que no final, o esforço fora recompensado. Ao deitar todos os dias para dormir... ela não dormia. Ouvia o som da noite; as corujas piando ao rasgarem o céu em cima de si. Os grilos rangendo-se; os sapos festejando escondidinhos na umidade da lagoa. E se houvesse neblina, certamente a engoliria.

Gostava desses sons... como se ouvisse música. E ela criava enquanto todos a chamavam de imprestável. Ela inventava enquanto todos a faziam chorar e a assustavam... por isso gostava de ficar isolada no meio do mato... ali ela era igual a tudo, não incomodava ninguém, e nem havia gente para apontar-lhe o dedo.

Estava sempre de mãos dadas com o vazio. Às vezes chorava por não saber o que acontecia consigo. E em três momentos de desespero, quis tirar a vida – a sua própria. Só não conseguiu porque fora fraca o suficiente para acreditar em Deus. Isso a salvou de querer morrer de uma vez. Agora morre apenas aos pouquinhos... porque ainda consegue ver beleza e sorrir em curtos circuitos.

E mesmo assim, continua fazendo coisas imprestáveis. Continua sendo ela mesma... enfrentando todas as tempestades de frio. Certa vez, aquele raio de sol que invade através da imperfeição, a deixa feliz. Mas parece sonho. Coisa distante e que não dá para tocar. Então, vem o escuro... a sombra... e ela sempre criava seus filhos na penumbra. Talvez para evitar que sofressem como ela sofreu quando criança, que enxergava tudo, que via tudo... que sabia de tudo.

Mas com toda penumbra, eles escapavam... e conhecem a luz. E quando isso acontecia... não retornavam mais. E ela permanecia só como dantes, e como sempre fora. Permanecia enfeitada como uma ninfa rodeada de Natureza. Tão bela quanto a tristeza de todos os tempos. Imensamente jovem feito o desespero dos apaixonados que não podem ver seus próprios rostos. “Essa era eu... Ou essa sou eu” – assim estava escrito no conto.


Katiuscia de Sá
08 de março, às 17:02h


terça-feira, 4 de março de 2014

L. S. D. (conto)



Um sono nababesco abateu-se sobre ela. De repente suas pernas despencaram e seu tórax desejou o chão. Deitou-se com ele. Quase desmaiada, com a cabeça amortecida por um dos braços, apagou por completo; indo acordar em um lugar estranhamente decorado com peixes coloridos empalhados e espetados sobre alguns móveis nus.

Suas pernas então ganharam vida novamente. Contorceram-se em direção a uma porta entreaberta que enfeitava o lugar. Do lado de fora ela viu um céu escarlate, repleto de pedaços de leite flutuando como se fossem nuvens, porém liquidas e com sabor.

Não sabia tratar-se de realidade ou delírio. Sabia tratar-se de perdição, pois a partir do momento em que seus pés ganharam vida, eles a levaram para lugares nunca dantes imaginados. E este era um deles. Quando a garota se deu conta de si, já estava sobre uma ponte feita de madeira sobre um despenhadeiro profundo e inabitado. Apenas algumas aves com cara de chinelos habitavam os céus. Um deles voou bem perto do rosto dela, e até lhe soluçou um beijo.

Depois disso a garota acordou com alguns transeuntes a sua volta, estes a chamavam... mas, ela não reconhecia ninguém e nem que estava estirada na rua por conta de um baque (de carro, talvez). Sentia-se tonta e não associou aquele céu azul ao céu escarlate que dantes vira. Contudo, as aves com cara de chinelo ainda pairavam no ar.

E por conta de seus bicos emborrachados, eles dobravam-se para todos os lados. Um par de aves pousou perto, então a garota os calçou. Prontamente suas pernas ganharam movimento outra vez, levando-a para perto da praça que havia ali. Deixou suas roupas no lugar do seu corpo junto das pessoas que a socorriam.

E com as aves enfiadas nos seus pés, foi caminhando sem muito obedecer a sua própria vontade. Diante disso, um carneirinho dourado, de olhos bem negros com seu pelo bastante enroladinho, apareceu e pôs-se a berrar. Dizia o nome do caminho que as aves com cara de chinelos deveriam atravessar. Eles então deixaram a moça novamente estirada sob o chão.

E este chão já muito intimo dela, agarrou-a e envolveu-a com vários arranhados da queda. A garota ficou parecendo o céu escarlate que vira ainda pouco. Porém, sem as nuvens de leite a sobrevoar sobre si. Estava tão absorvida reconhecendo o gosto de sua própria pele, que mal escutava um transeunte que a recolhia do chão a lhe perguntar o nome...

Quando a moça pôde falar algo, balbuciou quase derretendo sua voz numa coalhada de gelos: “meu nome é Lavínia Silvana Doroteia”. E sua voz foi apagando-se com o passar dos ventos, indo dormir à beira de um jardinzinho que ali havia por perto.



Katiuscia de Sá
Escrito em: 27 de fevereiro e 04 de março/2014, às 20:57h.


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

PARA MEU ADORADO ANJO


Ele tinha os olhos tristes... gritava a ventania do lado de fora, agitando todas as folhagens e revelando as penas mais intimas dos passarinhos que já dormiam àquela hora parados a um canto dos galhos das árvores. Era noite. A mesma noite fria e escura que chorava dentro dos olhos dele. E ele sentara-se nu defronte à janela de seu quarto, e por isso mesmo a ventania o acariciava suavemente o corpo branco, tão alvo feito espumas de ressacas das praias mediterrâneas.

Então Ela o viu, mergulhou naqueles olhos tristes e ergueu lá dentro uma pequena cidade, que Ela chamou de “Lugar Encantado”. Noite e dia Ela trabalhava naquele lugar. Secava os prantos dele.  Mas não havia jeito... então, Ela teve a ideia de fazer um lago com aquelas lágrimas que a noite escapavam desesperadamente dos olhos dele. Vertiam mais e mais. Ela acolhia gota por gota em suas próprias mãos... foi um trabalho duro e intenso...

Como aquele lago fora feito sob a luz noturna, Ela o chamou de “O Lago Escuro das Lágrimas”. Mas não podia ficar sem nada. Eram águas tão puras que haveria de viver alguém lá dentro. Então Ela encostou seus lábios nos lábios dele, e da saliva de ambos nasceram pequenas criaturas aquáticas. Eram todas transparentes, como o coração dele... e todas aquelas criaturinhas brilhavam ao contato com o lago de lágrimas; e como cintilavam, o lago que fora criado escuro, agora era iluminado por causa do primeiro beijo que eles deram um no outro.

Às vezes Ela chorava também... porque a saudade era tamanha! Queria Ela tocar-lhe a pele branca de ressaca das praias mediterrâneas. Então, todas as noites frias e silenciosas, Ela transformava-se na ventania que acalmava o corpo nu dele. Ele sentia febres às vezes... não sabia ser o desejo aquecido dentro de si, por causa das lágrimas que tinham nome. O nome dEla...

Com o passar do tempo, Ela também ergueu uma cabana ao redor do lago. E durante o dia, Ela esquentava-se com uma fogueira que acendeu no lugar. E com aquele fogo aquecia o coração dele também. Mas a noite quando vinha, era fria... porque Ela não podia estar lá com ele. Houve um dia então, que verteram-se tantas lágrimas dos olhos dele, e o que antes era lago, virou um oceano. E as criaturas que nasceram do primeiro beijo deles multiplicaram-se fazendo uma imensa luz na água. Era tanta luz... que os olhos dele agora brilhavam por causa de tanto amor que Ela lhe tinha.

Então, os dias quentes eram mais suportáveis, e as noites tristes também. Ela sempre vinha-lhe refrescar o corpo nu deitado defronte à janela de seu quarto. E ele sempre dormira sem roupas para que a ventania pudesse deitar sobre si, e abraça-lo a noite inteira...



Katiuscia de Sá
18 de Fevereiro de 2014, às 10:07h.






quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Para Edgar Allan Poe – VII (conto)


Adorava passear perto das grades. Ficava horas observando as curvas e desenhos rebruscados. Conhecia todos os arranjos de cor de tanto que frequentava os arredores. Quando criança Guilherme preferia o caminho mais longo da escola à sua casa somente para ver aqueles portões enormes repletos de desenhos retorcidos em bronze. Eram tão altos que dava a impressão de irem tocar os céus.

Num inicio de tarde quando o garoto retornava a sua casa, resolveu aproximar-se mais para olhar dentro... e foi quando se apaixonou perdidamente. Aquelas paixões arrebatadoras da idade... era seu primeiro amor... e desde então tornou-se sagrado para ele passar por aqueles portões e parar um instantinho e olhar secretamente àquela face que tomara-lhe o coração.

Quando seu pai disse-lhe que seria mandado para o colégio interno no ano seguinte, Guilherme definhou... e como sempre o fizera desde tenra idade: chorou nos braços de sua querida mãe, como se suas lágrimas argumentassem para deixa-lo ficar. Na verdade Guilherme não suportava a ideia de que nunca mais veria aquele belo rosto angelical por qual se apaixonara.

Contudo, nessa decisão a mãe do rapazola não poderia interferir. Para que ele pudesse estar apto a futuramente ingressar no curso de Direito, haveria de passar pelo colégio interno. E era o sonho dourado do pai que seu único filho tornasse-se advogado! E em pleno 1898, era a moda afinal, nas rodas mais bem quistas da sociedade, que os varões das famílias abastadas, carregassem o título de bacharéis.

Mas os planos de Guilherme, na ingênua e sonhadora idade de treze anos, eram um só: passar horas encantado diante de sua figura amada. Ultrapassar aqueles portões e sentar-se ao lado da imagem perfeita do puro amor. E foi o que ele fez. Quando retornara da sua aula, escalou aqueles portões indo dormir nos brações de quem tanto contemplara.

Anoiteceu e nada de Guilherme. Seus pais preocupados chamaram a policia, que vasculhou os arredores. O corpo do rapaz só foi encontrado no final da noite seguinte. Guilherme sorria, entretanto... Como tivera a saúde sempre fraquinha, devido à friagem da madrugada, o rapazola não suportou a febre ao relento. Faleceu ali mesmo no cemitério, ao lado de uma estátua em tamanho família, que enfeitava a lápide de uma mocinha que falecera no inicio da década de 1800. “A moça virgem”, como chamavam a estátua que enfeitava o tumulo. Era a estátua da mocinha que morrera aos tenros treze anos, que nem Guilherme, bem ali à sua frente...


Katiuscia de Sá
05 de fevereiro de 2014, às 21:35h.

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domingo, 2 de fevereiro de 2014

Para Edgar Allan Poe – VI (conto)


Com seu olhar vítreo, seguia adiante os passos pelo quarto quase prisão. Não sabia o que mais lhe perturbava: se o som insistente do corvo que rodopiava sobre si, ou se as ondas do mar quebrando nas encostas que lhe vinham sorrir nos ouvidos. O fato era que aquele ar do dia sombrio e sem peles, o aborrecia profundamente. E mesmo tendo as energias arrefecidas de seu corpo, sentia muita vontade de permanecer acordado com medo que pudesse dormir para sempre.

Das janelas de seu quarto, no terceiro pavilhão do castelo, ele erguia para o alto aqueles olhos petrificados e cheios de morte... não teria coragem de jogar-se e ir morrer amparado junto às flores do jardim. Tinha pena de amassar aquelas preciosas e delicadas coisinhas amarelas que lhe sorriam todas as manhãs. Aliás, eram as poucas coisas que ainda lhe traziam alegria ao coração – aquelas flores amarelas.

Foi numa tarde cheia de ares modorrentos, que esse paciente escapou das vistas de todos os enfermeiros daquele pavilhão. Parecia até que a luz do Espírito Santo veio-lhe pessoalmente resgatar daquele sanatório, cuja medicina em pleno 1879 era comparável às piores ideias sobre o Inferno... os pacientes mais pareciam ter sido esquecidos à beira do tormento e do desespero de suas proporias vidas.

Alguns pacientes libertavam seus estados vitais através de vômitos de sangue... outros pelo simples sono profundo perdidos para sempre dentro de si... mas Marcel, não! Ele queria algo mais. Queria sair daquelas paredes com a sensação de preciosidade. Como se fosse uma joia a ser batizada pela luz de uma manhã de verão. Marcel não queria tirar a própria vida, e sim que a vida o convidasse a seguir junto com ela. Suportou todos os choques elétricos... todos as injeções de morfinas, todos os confinamentos.

Como um pássaro voando na chuva sem ter onde pousar, sua sanidade ia e vinha aos tropeços, feito passos de um bêbado. Quase como um estranho sol a despontar na quina do céu, aquele homem que antes tinha tudo na vida... agora tão abjeto que nem a si mesmo sabia ser quem fosse. Todos os dias eram vazios, como o vazio refletido em seus olhos vítreos.

Naquela tarde quando pela janela de seu quarto avistara aquelas flores amarelas a lhes sorrir, feito serpente d’água, um lampejo de lembrança brilhou em Marcel. Ele amara um dia... e amara sobretudo a si mesmo. Entretanto, por força da vida que ninguém entende o porquê de certas coisas, tropeçou e bateu com a cabeça na calçada. Ao acordar não sabia mais quem era nem seria mais o mesmo d’antes. Não tiveram os familiares de Marcel outra opção senão abandoná-lo ao Sanatório.

Esgueirando-se feito um réptil pelas pedras do castelo rente às sombras, Marcel ganhava o jardim... seus olhos quase cegos ao encontro da luz do dia, não suportaram... choraram ao abraçar tanta luz outrora esquecida. E cada passo bêbado dado indo em direção às flores amarelas, Marcel sentia que flutuava...

Nem deu tempo dos enfermeiros chamarem os médicos, Marcel já havia sido abraçado pelo jardim abaixo do seu quarto. As grades foram arrancadas num instante sobrenatural de fúria, e Marcel caminhou pelo espaço, tão maravilhado, não percebendo que seus pés e seu corpo foram arremessados. Ele, por fim... agora ele pôde fechar aqueles olhos petrificados. Dormia em paz, como nunca poderia em vida.


Katiuscia de Sá
Escrito em: 29 de janeiro e 02 de fevereiro de 2014.


*Leia também:

domingo, 26 de janeiro de 2014

Pietro e as Estrelas (conto fantástico infanto-juvenil)

*Para Pietro Milan





“Aqui ele ainda sorria...” – dizia uma.

“É melhor permanecer apenas com a ideia... se o conhecer de verdade haverá de perder o encanto...” – soprava outra delas.

“Nem assim... nem assim. Ele é diferente dos demais. Quando dorme não passam as Horas” –  cintilava a outra.

As estrelas sussurravam para os olhos fechados de Pietro. A todo o momento as decisões se completam ou são mudadas.
São as Horas que ditam o tempo. E mesmo assim o Tempo não resiste e todas as horas corridas não valem nada.

E no céu, as estrelas.

No coração de uma delas, uma luz fervilhava.
Era água e era fogo...
Era riso e era choro...

Quando estava em festa, as lágrimas se confundiam com o brilho das irmãs. Quando era saudade, cintilavam os pingos e respingos. Vinha uma ventania e transformava tudo em poeira do espaço. Ficava escuro feito terra. Ficava quente feito um abraço.

Um som de tambor outra vez ecoou no céu. Acordou o menino Pietro! Seus olhos que viam e piscavam para dentro de si, brilharam ao contemplar tantas luzinhas. Estas também lhe viam! Acendiam e apagavam com ansiedade de quem espera.

Ele quis tocá-las... estavam tão distantes. Entretanto, aquela que a ele sempre olhara, quis descer mais um pouquinho. E à noite quando rodavam os ponteiros e a Terra girava, dava para deslizar nos céus de vagarinho. E esta, que gostava de brincar com Pietro, resolveu amanhecer junto a ele.

Uma ventania rompeu-se de repente.
Era Juno...
Era Marte...
Ou Plutão
Em alguma parte!

“uuhhu... uuhhu... uuhhu...” – fez então pelas janelas. Quase arrancaram as cortinas novinhas, as ventanias! Mas o menino não teve medo. Correu para perto e quis vê-la. E lá estava ela: a sua pequena estrela! Que foi forte o suficiente para soltar-se do Firmamento. Rebelou-se contra a correria do tempo que ninguém nunca soube, que ninguém nunca via. Quando na Terra estava, a estrela disse a Pietro que viera ser sua amiga.

E do céu, correu um trovão!
Ralhou com a pequena estrela que descera ao chão!

E os meses não passavam.
Nem as horas se animavam.
Os ponteiros fizeram greve enquanto a estrelinha não retornasse ao Firmamento!

Mas Pietro estava feliz com sua nova amiguinha. Sorria e sonhava por toda madrugada, pois no seu coração uma poeira se levantou... cortava o chão e subia as escadas. O que era invisível corria por toda a casa... e quando Pietro acordou seus olhos, tanto tempo se passara.

E a estrela que descera do céu para conhecê-lo, agora a seus olhos se mostrava. E toda vez que  Pietro avistava o Firmamento, era a si mesmo a quem buscava, devido à esperança sua estrela adormeceu nos olhos de quem tanto amava...

Nunca mais Marte!
Nunca mais Plutão!
Nunca mais saudades naquele tenro coração!

De mãos dadas eles seguiam.
Atravessavam dias.
Atravessavam noites...

Naquela estrada longa e cilíndrica, haveria sempre umas luzes a piscarem.
– de tanto desejar, aquela estrela pôde vir ao chão...

Num lado do telescópio, era Pietro... Do outro nunca ninguém soubera, mas o céu estrelado que ele olhava todas as noites era o seu próprio coração abraçado ao dela.


Katiuscia de Sá
26/jan/2014, às 22:35h




sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

LEMBRANÇA (conto fantástico)

*inspirado na melodia “To My Mother”, do album ‘Saving Mr. Banks’ (2013), de Thomas Newman.






Quando aquele momento repleto de sentimentos estendeu sua força ao vento, disse-lhe em segredo, que as nuvens choravam, mas era de alegria... pois em algum lugar secreto nascia uma pequena árvore que brotava corações, e estes ao serem ingeridos como fruta madura causavam um pequeno espasmo nas criaturas. Foi então, quando um minúsculo pássaro pousou num dos galhos daquela misteriosa árvore de frutos avermelhados e docinhos, que um cotidiano e jubiloso milagre abriu os olhos. E ao acordar e enxergar aquele pássaro de vestes marrons que havia ingerido um pedacinho de coração, o mesmo milagre percebeu que a criaturinha não pôde engolir tudo, pois sendo o fruto ainda menor fez a ave que a ingeria, engasgar o bico. Isso foi o suficiente para que o pássaro cantarolasse libertando-lhe daquela angustia.

Seu canto afugentou a noite, e fez com que os ventos soprassem em direção à Maria-Celeste. Esta se enrolava numa haste de plástico, e estava bem segura pelas mãos de uma criança que a saboreava. Era um excelente algodão doce, esta Maria-Celeste. Entretanto, quando o vento tocou-lhe as peles rubras... ela não resistiu, derreteu-se de carinhos pelo vento que a fazia sentir calafrios e a destruía do mesmo modo como uma onda suicida-se nas rochas sem poder conter-se ou decidir não morrer abraçando as pedras à beira mar.

Aquele sentimento desperto foi em demasia para um corpo não habituado ao sereno do amor. E depois que se desfazia pelos carinhos do vento, Maria-Celeste consumia-se mais e mais antes de alimentar a boca da criança que a segurava nas mãos. Derretia-se e manchava de rubro aquelas mãos pequeninas e desajeitadas.

Mas os olhos do milagre tinha sono... não conseguiam permanecer abertos a tudo que acontecia. E aos poucos o peso das horas causou-lhes cansaço e certa preguiça; deixando-lhe cair as pálpebras. Então, por intermédio de alguém maior do que aquele milagre que acontecia, as mãozinhas deixaram Maria-Celeste ser escorrida pelo vento, indo ela parar num córrego confundindo-se com os mesmos líquidos que seguiam seu caminho. Foram todos parar ao pé da árvore que brotava corações. Umedeciam o chão.

E Maria-Celeste que antes sentia o carinho do vento que lhe desfazia as formas, agora era como liquido em suco. Estava tal sangue a bombear um dos corações, aguardando tornar-se alimento de pássaros ou quem sabe, retornar ao Princípio, morrer e nascer árvore para gerar mais corações... e com isso fazer com que mais milagres também abrissem os olhos.


Autoria: Katiuscia de Sá
Em: 17/01/2014, às 20:32h.