“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Para Edgar Allan Poe - V (conto)


Os lençóis cheirando a mofo agonizavam um colchão cujas espumas abrigavam toda espécie de ácaro e percevejos, e estes às vezes abrigavam-se na pele de Fialho deitado sobre um universo de microrganismo indiferente à sua pessoa. Como o homem, estes pequenos invisíveis apenas sobreviviam...

Todas as manhãs a rotina dos enfermeiros era despejar no pobre sujeito, pelo menos cinco coquetéis de remédios tarjas-preta.  Às vezes os comprimidos pareciam mexer-se dentro dos copinhos de vidro, ou eram apenas os olhos do enfermo dançando nas órbitas, desfigurando ainda mais o rosto do homem.

Já ninguém lembrava porque Fialho fora internado naquele sanatório. Sabiam apenas, que foi antes de 1813, devido à entrega de leitos novos na sessão de pacientes perigosos, pois Fialho fora imediatamente transferido para esta ala do hospital.

Passados mais de quarenta anos, quem poderia imaginar que sua internação se deu por conta de uma decepção! Sua finada esposa havia se deitado com um dos jardineiros da propriedade, onde ambos costumavam passar os verões longe da cidade.

Já era rotina a mulher arranjar-se com o jardineiro   um homem rustico que só sabia mesmo trabalhar com as mãos na terra, nem sequer escrevia o próprio nome. Com seu corpo robusto e bem talhado, fazia dona Patrícia pensar ser também ela, uma mulher do povo, sem berço e letras, já que sua real vocação era sucumbir horizontalmente à vida.

Sempre se ressentia por ter casado com o homem errado – um diplomata, filosofo e amante das Artes... Pobre Fialho. Seu defeito maior era sua sensibilidade e delicadeza para com dona Patrícia. Amava-a do jeito como um deus Apolo ama tudo que era belo: tão à distancia. Mas a mulher queria mesmo era o exercício grosseiro, tal como os pães sofrem nas mãos dos confeiteiros antes de assados e servidos à mesa. Dona Patrícia gostava de ser bem servida. Seu espirito indócil arruinou a personalidade sensível do marido, escandalizando os moradores das redondezas.

Foi numa noite sem lua e frienta que Fialho atravessara o jardim para tomar ar, quando pegou em flagrante os desatinos da esposa com o jardineiro num canto defronte da casa, ambos deitados na terra disputando espaço com os cravos e papoulas. O esposo traído ficou parado sem nada fazer na hora... dizem que não se deve brincar com gente de temperamento intelectual, pois ao se mostrarem frustrados, são pessoas de real desatino calculado.

Depois dessa noite, Fialho em nada mudara com a esposa. Contudo, arrumou um mimo inesquecível para dona Patrícia em comemoração aos dez anos de casados. Numa bela caixa cheia de laços de fita, cuidadosamente ornamentada, entregara seu presente à esposa.

Ao abri-la, a mulher revirou os olhos tão assustada que nem um grito de horror pôde ser escutado, não deu tempo da voz passar pela garganta; seu marido imediatamente a cortara com a foice de podar as plantas.

Na manhã seguinte o pavoroso escândalo, que surpreendera os vizinhos e até mesmo os policiais. Ninguém conseguia ver o jardim da casa sem embrulhar o estomago: separados em cada canto junto às papoulas e os cravos: as cabeças, as mãos e os braços dos amantes, como se enfeitando o leito onde estiveram noite passada jogando-se um para o outro.

Depois disso, Fialho sem o brilho nos olhos, deixou-se levar para o sanatório. Desde então nunca mais pronunciou nenhuma palavra...



Katiuscia de Sá
17 de junho de 2013
13:37h
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