“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Para Edgar Allan Poe – II (conto)


Mércia estava ensopada. Saíra do trem em meio a um temporal. Percebeu que somente ela tinha parada naquela estação... olhou para trás e viu o rosto apreensivo dos passageiros em sua direção. Alguns até se entreolhavam.

Já passava das vinte uma. A estação era tão modesta que não tinha onde ficar com a bagagem, tratava-se apenas de um caminho com tábuas indicando que ali servia de embarque e desembarque quando o trem passava, e nada mais. Seus colegas da cidade grande já tinham alertado a respeito da precariedade daquela cidadezinha de interior. Entretanto, Mércia não imaginava que era tão desamparada.

Enquanto corria para fugir da chuva, ajeitava sua mochila abarrotada de coisas. Avistou um estabelecimento aberto. Na taberna o dono indicara a única estalagem nas redondezas. Sem mais alternativas, após estiar um pouco o temporal a moça dirigiu-se para o local indicado. Chegara completamente molhada. Fora recepcionada por uma velhinha. Esta pediu para Mércia adiantar o pagamento pela noite, pois sairia bem cedo no dia seguinte e não queria incomodar sua única hospede daquele final de semana.

Faltara luz devido a forte chuva. Na escada, ambas estavam amparadas por um toquinho de vela. Mércia assustou-se quando um relâmpago revelou uma cicatriz hedionda percorrendo toda panturrilha esquerda daquela senhora que a conduzia para dentro da residência. Mal pôde se recompor do susto quando outro relâmpago iluminou o rosto da dona da casa. Um semblante mórbido e um sorriso torto entregaram-lhe as chaves do quarto e da porta da rua. Quando Mércia baixou os olhos para pegá-las, deparou-se com uma mão bastante cadavérica.

Nem deu tempo de mastigar um “obrigado”; a velha desaparecera no breu. Mércia apenas jogou sua mochila a um canto, procurou um banheiro ao final do corredor e recolheu-se aos aposentos com cheiro de abandono. Pela vidraça das janelas o festival de relâmpagos incentivava um frenesi junto ao céu.

O sono a enganava, e vez por outra Mércia despertava. Num desses lances, conseguiu ouvir um gemido escorrendo pela casa. Levantou-se vagarosamente e seguiu em direção ao lamento. Descia as escadas passo-a-passo. A umidade da madrugada fazia Mércia espirrar, inutilmente tentava abafar as explosões, e isso a denunciava pelos aposentos, deixando margem para quem percorria a casa, escapar.

Através da penumbra, havia uma silhueta magra arrastando-se pelos cantos... Mércia a seguia com cautela. Checou o banheiro e no vaso algo como uma pele avermelhada boiava. Algo parecido com uma placenta, talvez... o gemido continuava vazando pelos aposentos. Na porta dos fundos, a porta estava semiaberta. No quintal as pegadas davam num pequeno buraco recentemente escavado. Com um pequeno galho, Mércia escavacava o chão. E novamente deparava-se com uma pelanca molhe avermelhada, lembrando uma placenta de animal...

A essa altura a moça já estava bastante assombrada e com medo daquele lugar... despertou de seu próprio pavor, quando uma respiração ofegante materializava-se atrás de si, imediatamente Mércia olhou para trás! Nada havia. Já bastante confusa, preferiu voltar ao quarto, arrumar suas coisas e passar a noite ao relento, seria mais seguro aparentemente.

Ao entrar em seu dormitório, ficou face-a-face com aquela penumbra que ainda pouco seguia pela residência. Era a própria dona da casa com o rosto repleto de carnes em sangue. Mércia estava paralisada, e mais uma vez um relâmpago distraído revelou o ventre da senhora totalmente dilacerado. Com a irradiação de outro relâmpago imagético, Mércia percebera que sua própria barriga estava em sangue. Na sua mão direita ela segurava um punhal. Olhou a sua volta, o cadáver da senhora deitado no chão do quarto. Mércia ainda mantinha um pedaço de carne da velha na mão esquerda, quando alguns vizinhos a seguraram pelo braço...


Katiuscia de Sá
18 de setembro de 2011.
Às 06:22 PM.

--------------------------

*Leia Também:
Para Edgar Allan Poe – I
Para Edgar Allan Poe –III
Para Edgar Alan Poe - IV

Nenhum comentário:

Postar um comentário