“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

domingo, 23 de outubro de 2011

Para Edgar Allan Poe – III (conto)



Eva estava em silencio. Tomou a decisão sozinha mediante tantas idas e vindas das águas roladas de baixo da ponte. Resolvera livrar-se de uma vez daquele sofrimento, daquela espera atroz e sem significado. Fez os cálculos devidos. Observou o tempo que gastaria e também se os planetas e os astros estariam alinhados para a grande metamorfose.

Seria difícil deixar tudo e todos para trás, mas os sinais indicavam-lhe esse caminho. Eva não hesitou. Pegou os objetos, embrulhou-os. Aguardara a hora certa para executar tudo. Foi dar uma ultima volta pelos lugares onde costumava ir; foi olhar o pôr-do-sol; sentir a ultima brisa vinda do mar; foi ver pessoas queridas.

Reservara esse dia para carregar na lembrança todas as sensações boas que pudesse obter. Fora um dia inteiro de diversões secretas e particulares. Andou de bicicleta sentindo aquele ar de liberdade; correu na praça espantando os pombos da calçada... virou criança. Tomou sorvete e rolou pela grama. Correu livremente na chuva deixando os pingos escorrerem no rosto e confundirem-se com suas próprias lágrimas.

Seu coração estava leve. Tão leve e feliz. Era esse o momento! Foi direto para casa, pegou sua mochila já com tudo arrumado. Escolhera previamente o cemitério que mais lhe agradava. Gostava daquelas lápides ornamentadas e estátuas belíssimas de anjos sepulcros. Era quase meia-noite.

De joelhos diante de uma sepultura escolhida ao acaso, cavou um buraco bem fundo no chão defronte ao morto, retirou da mochila o pequeno punhal e a caixinha vermelha com um cadeadinho. Desabotoou sua blusa. E com muito cuidado e delicadeza perfurou seu peito. O sangue jorrava nervoso, indo acalmar-se na terra negra que o absorvia ferozmente.

Eva, com suas mãos delicadinhas, retirou seu coração recortando as veias e os vasos que ainda queriam prendê-lo em seu corpo. Secou as artérias acomodando o órgão dentro da caixinha. E com uma agulha enfiada de linha preta e triste, costurou seu peito. Com o mesmo punhal, vazou seus olhos. Substituindo o lume pela luz da noite.

Enxergaria de agora em diante somente a maldade do mundo. Sem esperanças e com o semblante bastante sereno, Eva olhou pela ultima vez seu coração feliz. Acariciou aquele órgão raro e rubro. Ainda soltou uma ligeira lágrima por ele, mas estava em paz em deixá-lo a salvo. Olhou para a lua e para as corujas no cepo das árvores, e completou: “esse é o meu coração. Jamais ele se apaixonará por alguém novamente...”. Isolou-o dentro da caixinha, deu todas as voltas na fechadura. Enterrou-o para todo sempre.

Eva levantou-se um pouco cambaleante, mas conseguiu dar os primeiros passos. Seu peito estava leve e vazio. Seu corpo reto deixava sua mente vagar. Com a pequena chave ainda na mão, saiu do cemitério com a mochila nas costas. Na primeira encruzilhada gritou sua dor. Gritou até o último pássaro fugir das copas das árvores... Gritou até vir os primeiros raios da manhã preencherem de vazio os seus dias... Gritou até sua voz desaparecer... Gritou até quando não mais podia... a chave, Eva largou-a deixando aos Exús. Foi para casa sem nenhuma sensação adicional. Caminhou sem olhar para trás porque apenas sabia seguir em frente... Entretanto, Eva não tinha mais coração.


Katiuscia de Sá
21 de outubro de 2011
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