“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 1 de junho de 2013

Contos do Reduto Três (conto)


Frederico havia-se mudado há poucos meses. Ainda não conhecia bem a vizinhança. Esta, à primeira vista, mostrava-se ainda em sua crisálida, tão sonsa e despercebida quanto um detetive particular aconchegadinho em seu escritório absorvido pela leitura do jornal matutino; era uma vizinhança profissional como um velho açougueiro que tem um olho cirúrgico na carne e outro na nota...

Frederico dispunha-se a sair todos os dias na mesma hora pela manhã, ia caminhando para o seu trabalho; seu escritório ficava bem no coração do Comércio. Foi um achado este emprego de contabilista em pleno dinamismo econômico da década de 1950. Onde a carestia fustigava quem ainda não estivesse bem colocado em um decente posto de trabalho.

Embora, morando na Quintino Bocaiúva – no afamado Reduto, Frederico desconhecia a reputação do bairro: sempre discreto, sempre comercial, sempre muito elegante, sempre bem localizado... com poucas casas residenciais, posto tratar-se quase exclusivamente de um bairro industrial, cujas construções eram relegadas ao comercio, estivas e pequenas fábricas sendo modernizadas por capricho daquela década bem sucedida, onde o País experimentava o slogan “50 anos em 5”. Ainda assim, havia muitos casarões remanescentes do ciclo da borracha, em estilo colonial. Frederico morava num deles. Passava a maior parte fora, devido seu trabalho.

No seu primeiro final de semana em casa, o rapaz foi tomado por um agradável cheiro de comida. Vinha provavelmente da casa vizinha. Mas era um cheiro tão saboroso, que Frederico lambia os beiços, imaginando o gosto daquele vapor delicioso que enchia de fome sua sala de estar. Foi encostar-se à janela para decifrar exatamente de onde vinha aquele tão saboroso odor. Nenhuma pista, porém! E no dia seguinte, à mesma hora o cheiro de cozimento invadia-lhe as narinas.

Era de enlouquecer de vontades para saborear aquele alimento de cheiro tão delicioso. Dessa vez Frederico arriscou-se a dar uns passinhos fora ao átrio da casa. Foi perdigando até seus olhos deduzirem que o cozimento estava sendo feito há duas casas depois da sua. Desde então, todas as vezes que se dirigia ao seu trabalho, passava em frente a tal residência para descobrir quem era a cozinheira.

Após um mês nessa discreta investigação, Frederico não evolui em nada. Nenhuma conclusão de quem fosse a moça de mãos de fada e colher de pau. E sempre aos finais de semana o rapaz ficava em reboliços, querendo experimentar o delicioso alimento que lhe atrapalhava os pensamentos através do nariz. Estava ficando sério o negocio. Frederico já nem dormia, e o pior, nem comia mais... queria apenas aquele alimento etéreo.

Até que numa tardinha de domingo ele aventurou-se a bater na casa da suposta cozinheira. Apresentou-se e disse à moça que muito lhe agradara o cheiro da comida que fazia. O melhor foi descobrir que a jovem que cozinhava era igualmente apetitosa, embora muito recatada. Esta lhe dissera que morava só, que os pais haviam falecido num terrível incêndio, e que apenas ela sobrevivera. “Era uma historia triste”, comentou o rapaz.

Conversaram tanto, que nem viram o tempo passar. Já era alta noite quando Frederico se dispôs a retornar à sua casa. Porém, desde aquele domingo ninguém mais havia visto o jovem contabilista. Alguns diziam que ele fora pego pelo fantasma de Celestina, a jovem que morrera com os pais num terrível incêndio em 1943, naquela mesma rua; os escombros do casarão ainda podiam ser vistos a duas casas de onde Frederico marava.

Katiuscia de Sá
Em: 01 de junho de 2013
Às 17:42h
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