“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sexta-feira, 16 de julho de 2010

ILUMINÁRIOS - Livro Três

Imagem: Rene Magritte
(Para Vicente Franz Cecim)


Fim?
Passados oito meses, aquele pequeno coração gestou um ninho de onde a pequena tapuia emergiu passarinho. Não era andorinha, nem sabiá-bandeira; pois já sabem que ela virava Ave Que Não Se Sabe o Nome... Então foi aqui que ela descobriu sua constituição. E aquele menino branco de nome cantado pelas cigarras deitou-se na relva de si mesmo - o que ele chamava de “Andara”, e dali soltou um lindo sorriso que virou flor; [a mesma flor que a Ave Sem Nome ia beijar todas as manhãs], e ao retornar ao ninho ela abria as pétalas de seus olhos de Sol e seus lábios sussurravam como as cigarras:
“cccccccceeeeee... ccccccccciiiiimmmm...
cccccccceeeeee... ccccccccciiiiimmmm...
cccccccceeeeee... ccccccccciiiiimmmm...”

Aprendeu ela a falar com os bichos e também com o Silêncio. Este não tinha voz, mas Verbo e pensamentos sem rostos dentro da cabeça dela: densa neblina que escondia às vezes as Coisas. Brumas ressacadas das águas. Doces aromatizantes. Verdes pálidos e de todos os tons.

Voava aquela Ave Sem Nome. Alimentava seu ninho-feto, aquele coraçãozinho espetado pelo indicador galho. Cada graveto continha um fio de história deles... As palavras queriam se dizer sozinhas e sem braços e também sem gomo: laranja inteira e azeda.

O menino branco estava chovido sobre a relva, ouvia a história, e a tapuia-Ave agitava-se tão longe às vezes para pegar gravetos que servissem ao ninho. Suas fortes asas atravessaram galões de tempestades, apelidava nuvens que lhe vinham falar.

Tapuia-menina também sabia chover e aparava essas águas para limpar os sonhos do menino branco dormindo sobre relva. Os Olhos de Sol dele estavam para dentro; nem na nuca, nem na fronte, mas para dentro... o dentro dele em Cinzas, misturas de cores. Tudo etéreo e sem forma, reinavam sensações tão intensas que geravam cor à fotossíntese, e seus cabelos aloirados de ouro atravessavam o chão irmão das raízes. E a cada sonho, o menino sorria com o rosto em direção ao céu, de onde tapuia-Ave o enxergava e pousava para beijá-lo.

Às vezes ele a chamava, mas aquela Ave Que Não Se Sabe o Nome tinha-lhe medo... devido sua voz (a dele) ser raivosa algumas vezes. E todos sabem que os bichos alados são tão sensíveis e sentimentais como a simetria de um ovo; qualquer toque muito intenso pode-se rachar a casca... até mesmo quebrar-se. E tapuia-Ave era assim com os sentimentos de Amor... tão frágil, tão entregue. Às vezes fugia dos sonhos do menino branco, mas estes a encontravam, igual ao sol às coisas da terra que geram sombras. Às vezes ele, o menino, acordava amarrotado, mas sempre recordava dos sonhos (com tapuia-menina) – igual como da primeira vez em que ela escutou o nome dele pela voz das cigarras! Então a menina pisou para dentro dele – Pátria de ambos agora... Saia ela de Lá para olhar para fora e constatar o que já sabia – ele a chamava, pois eram ambos:

oO


E era desse modo que se comunicavam.

Quando vinham as tempestades, os olhos do menino branco abriam-se empurrando para dentro as sensações. Língua sibilada atmosférica. Engolia e soltava pelas mãos mais sementes que se aproximavam das pedras, e sendo estas sem pontas, derramavam-se rios abaixo se deixando pelas correntezas, a Vida.

Ele dormia nela e ela acordava nele. Tão lindo verso de Amor sussurrado, canteiro onde o ninho está sendo construído pelo bico da Ave Sem Nome. As coisas sentidas não necessitam de Nomes, apenas a quem se destina senti-las entendem o que querem dizer. O sonho de um na cabeça da outra lá...

Um dia se conheceram, e foi no mesmo dia em que tapuia abriu seus olhos de Sol, visto não ter mais volta num Caminho de círculo perfeito, ambos de braços dados – os gravetinhos do mesmo ninho.

Os dias passaram. Crescia dentro de ambos umas papoulas. Enquanto exalavam pólen, umas lágrimas cresciam do chão originando um campo de cristal. Cada lágrima fazia brotar uma flor amarela-opaca-transparente-absoluta.

E quando a menina tapuia suspendeu o olhar avistou umas aves que carregavam ao bico uma gaiola. O menino ainda estava deitado à relva de si mesmo. Tapuia tinha-lhe Saudades, nome da floresta de cristais. Cada flor amarela-opaca-transparente-absoluta tinha o nome de Vicente.

Tapuia menina arregaçou sobre suas mãos várias flores-de-Vicente para enfeitar o cabelo já dourado do menino deitado à relva. E quando as aves se aproximavam para levar este menino preso à gaiola, Tapuia apenas espiava. Do chão as raízes erguiam o menino como braços. E assim o colocaram na gaiola que os pássaros levaram.

Tapuia ficou calada junto a um tronco. Ao primeiro raio de sol, partiu em direção ao menino que também tinha olhos de Sol. Ela atirou-se ao céu como Ave Que Não Se Sabe o Nome e amparou a gaiola com suas fortes garras, abrindo-a, fazendo o menino cair dormindo, num sono profundo.

Caiu ele no ninho dessa Ave Que Não Se Sabe o Nome. As árvores sorriam e conversavam entre si. O vento brincava com as folhas secas do chão, apostando corrida com elas. Submarino, os peixes nadavam apanhados num cardume único. E com tanto o que se contar, um olho fechado e outro acompanhando o escrito, já as linhas indo ao encontro dos três símbolos secretos. Os portais para a Luz, o Ninho.

Antes desse dia, a pequena estivera esgotada. Dormia, abandonava-se em “Andara”, interior do menino branco que caminhava e também dormia. Tinha ela em mãos muitas flores-de-Vicente. Hibernou a pequena até chorar e escrever tudo o que esmagava seu peito. Terminou muitas linhas até terminar o caderno em direção aquele Portal. A Sorte.

Cores do dia. Estavam elas para salvar a pequena da Saudade, o próprio Lugar viera acolhê-la nos braços, o Amor. Então um suflar de asas atravessou-lhe o teto, e consigo levou a alma da pequena. Estava livre aquele Sol e era o primeiro raio do olhar do menino de nome cantado pelas cigarras. Ele voava às garras da Ave Que Não Se Sabe o Nome. E ele por amor àquela Ave, alimentava-lhe o coração. Seus rostos iluminados num sorriso; um coração, os seus lábios e os dela.


Katiuscia de Sá
25 de junho e 11 de julho de 2010
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ILUMINÁRIOS – Livro Último:

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