“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

quarta-feira, 9 de junho de 2010

ILUMINÁRIOS - Livro Dois

Imagem: René Magritte
(Para Vicente Franz Cecim)

Mesmo ele tendo segurado a pequena entre suas mãos, ela desvencilhou-se dos galhos. Seu gosto pela morte estava envenenando alguns caldos de rios. Iara Dourada mal podia suspender a calda de tanto lodo, já não podia sobreviver naquelas águas turvas. A face do Outro Menino havia ganhado o Todo e a pequena tapuia conhecia os dois agora. Quando em transe, o Outro abria os olhos na nuca e caminhava para trás. Assustadoramente perverso, colhia as flores da floresta para fazer porções encantadas embebedando as pessoas comuns.

Controlador e abjeto. Detestava contrariedades. Essa era a Outra Face da Tempestade que assolava a floresta. Suas criaturas estavam amedrontadas. Agora era Terra-de-Ninguém. Ninguém ali estava e emprestava seus braços para ceder garagem a seus patrícios: Cincinato, Cecigarre e Regina – a vitória régia.

Cincinato era um sapo azul-metálico, cavaleiro medieval lendário. Pintado meticulosamente pela Natureza. Suas cores venenosas ao menor toque na pele iluminada era morte fulminante! Cecigarre, tão delicada, pairava no ar; ignorava sua condição mortuária. Queria ter amigos, mas estes derretiam ao escutar seu cântico. Solitária, acatou o convento. Tornou-se soturna e calada. Ninguém sabia de seu mundo nem de seus segredos, nem de sua voz! Ali estava apenas por força dos iguais em vibração. Vibravam víboras. Regina era uma delas – serpente verdinha. Escorria para qualquer lugar sem intermediários. Era o crepúsculo. A pequena não esperava tal cenário em execução. A corrida agora seria contrária. Tudo estava negro e úmido – um final de incêndio molhado era a floresta. E aquele Ninguém com olhos abertos na nuca dobrou os lábios por contrariedade – gritava aborrecido com todos. Dentro de seu peito um balão de gás inflava esmagando o coração para o lado. Isso o incomodou tanto, que ele levantou seu indicador-galho indo em direção à garganta da terra. Trouxe de lá seu coração. Seus olhos na nuca verteram hiatos. Seu coração esmagado carregava a face de sua amada... não podia mais olhar para aquilo sem vibrar pavor. E esse pavor transformava as coisas do lado de fora. Cecigarre não conseguia manter-se parada no ar, aquele desespero atmosférico a inquietava e suas asinhas de seda eram impotentes demais àquela tempestade sentimental! Evaporou!

Regina – a vitória-régia escondeu-se nas profundezas, esperaria mil anos para então levantar-se e relatar a história de seu povo para uma civilização de sal e ferro, e mesmo assim, pensariam que ela fosse uma lenda. Os Verbos e os Tempos Indicativos não importariam daqui a alguns anos. Regina adormeceu sob a terra e algum dia amanheceria novamente. Participado o passado no particípio presente, cessasse o que houve sobre a Terra, Regina ali estivesse para sempre.

A tapuia espiava tudo, rés ao chão a pequena sentia a tempestade do Outro Menino. Ele a queria manter consigo a todo custo, mas não imaginava que a pequena também conhecia o Pensamento. Ela mantinha dormindo a Outra Menina. Esta crescia com as pernas enroladas sobre si. Em posição fetal, adolescia num lugar secreto. Crescia e respirava o mundo pelo avesso. As raízes enrolavam-se sobre a cabeça, cabelos de musgo. Vazavam luzes de horas, e a pequena tinha de sair dali agora.

Estava na floresta e todos apavorados com aquele Ninguém que tomara conta de tudo. Só não estava fazendo mais estrago com sua língua fina porque seus olhos na nuca choravam seu coraçãozinho arrancado pelo seu próprio galho-indicador. Esperava o cozimento.

A pequena via aquele desespero...
Ninguém olhava pra aquilo e resolveu escondê-lo para que não sofresse mais com a visão de seu próprio coração. Entretanto, coração, seja lá de quem quer que seja, não se pode arredomar... todos os corações são do mundo, não importando que mundo qualquer fosse este, corações soam uníssono como sinos.

Ninguém com seu coraçãozinho espetado no dedo-galho, resolveu entregá-lo às formigas – operárias da selva. Estas, muito atarantadas... não quiseram. Ninguém vibrava descontentamento mediante àquela situação! Olhou em volta contorcendo seus olhos na nuca... todos estavam imobilizados por força de seu espírito tão dominador que nenhum ser da floresta se mexia. Quem era vivo e quem era paisagem? Não dava pra saber.

Ninguém olhou para o chão e viu a pequena tapuia de bruços sob seus lençóis, abraçou-a com força depositando seu pólen (e seu coração) naquela menina amedrontada. Consumou-se a primeira cópula. O coração de Ninguém – a Outra Face do Menino, batia no peito da pequena... momento foi seu ritual para a fase adulta, e como ela estivesse desgarrada de sua tribo, a própria circunstancia incumbiu-se de pintar-lhe o corpo. Agora era mulher, não mais menina. Quando o pólen da madrugada verte seu ultimo suspiro, é chegada a hora – o derradeiro vôo. A curiosa evaporação do tempo que engole grãos e liberta árvores aladas. Cada uma a seu tempo, cada uma em sua estrada. Sementes flutuantes de árvores aladas.
Um silêncio misterioso engolia as coisas, enferrujando os afazeres ordinários e também a atmosfera da floresta – agora esquecida, o menino branco de olhos de Sol voltara de seu transe habitual. Um círculo vicioso de sessenta e quatro pontas brancas desenhadas num chão de pedra com uma cor de Pemba, as linhas.

Tudo parado e morto. Muitos olhos arregalados de arrepios! Ninguém abriu a boca sem dentes, um hálito de nojo e falsidade avassalou para frente. Ninguém brincava de deus... E os olhos de Sol fizeram-se noturnos novamente. Seria mais fácil abandonar possíveis mudanças alegando já ter vivido muito... ele não queria mudar, mudar significaria evoluir; evoluir seriam novas responsabilidades. Achava-se velho e encurvado, um antigo carvalho centenário perdido no tempo. Não queria passarinhos em seus galhos já não abertos para a vida. Menina tapuia como d'antes, estivera com a garganta apertada naquelas mãos cheias de galhos...

A pequena nada podia fazer a não ser, fazer Nada. Começou a tecer Nada, caprichosamente Nada incrível entrelaçado, sabiamente composto de virtudes, Nada cravejado de inúmeros movimentos, Nada uma escrita vermelha cobrindo outra cinza. Nada era o sangue da tinta. O pentagrama mais objetos e um morto depenado, tudo numa vasilha sem pistas. O verde silencioso da floresta segredava o ritual de abertura. Faces ocultas mostravam e entoavam a música-mosaico

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Enegrecia o céu e os olhos de Ninguém, o menino branco de nome cantado pelas cigarras preferiu virar-se inseto! Era mais fácil do que mudar os hábitos. Águas influenciáveis pelas fases da lua. A pequena perdeu-se naquelas matas, mais do que pôde... era forte de mente e seu espírito nunca parava em seu corpo. Trazia no peito o coração de Ninguém. Todas as lágrimas de sua pequenina pessoa evaporaram. Decidiu despir-se daquele mato. Ficou nua de Andara, igual como d’antes quando o menino branco a conheceu. Tapuia não tinha mais um lar depois que se perdeu naquela mitológica história, não era mais de sua tribo (nem de lugar nenhum), sua -pátria verteu-se em Liberdade. Ela nunca mais olharia para trás novamente.

Com o ritual completado, um dia retornaria àquele lugar, se assim quisesse...
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~FIM~
Katiuscia de Sá
Em: 17/ 06/2010 (dia do meu aniversário)

ILUMINÁRIOS – Livro Três:
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ILUMINÁRIOS – Livro Último:

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