“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 24 de abril de 2010

A CASA

(Escrito e dedicado a Vicente Franz Cecim)


"Sorrisos-Olhos" e "Menino-de-Asas"
Desenhos/ Criação: Katiuscia de Sá


Observou que as janelas estavam fechadas, também a porta da frente. Não atentou quantos anos se passaram; não havia mais risos, faltavam correrias nas serragens. As cortinas já estavam bastante desgastadas. O tempo deixara-se descansar...

As letras não estavam mortas. Apenas esquecidas a um canto da sala-de-estar, tão acomodadas quanto um recém-nascido envolto em cueiros de lavandas. As letras, antigas pela condição do esquecimento. Nunca usadas. A ventania uivava pelos aposentos, varando as salas numa brincadeira de cata-ventos – um choro silencioso de criança. Só lembranças adormecidas, e no final das contas até os carpetes rendiam-se suportando a preguiça instalada à simetria deles. As poeiras não mais se remexiam, nem em cima nem embaixo dos panos; nem o uivo do vento passando pelos cômodos sacudia o pozinho das coisas. Parecia morte. Mas até a morte se movimenta nos caixões... da matéria gelatinosa e sanguínea, músculos ressequidos; estes em vermes; destes, o pó... e no interior da Casa, tudo parado.

Entretanto, numa tarde dessas comuns, sem graça, uns grandes olhos flutuavam pelos aposentos – letras amontoadas num livro sem capa, sem páginas... a curiosidade foi maior do que o medo, então pôs-se a perguntar: “Do quê se trata?”
“Filosofia”, disseram as mãos sobre o livro sem capa-previa. “Ah! Eu gosto de Filosofia”, a curiosidade ávida de informações. Nesses termos o medo ficou em segundo plano. Foi quem primeiro adormeceu o corpo para que pudessem conversar melhor. Quase um milagre retumbante. As poeiras puseram-se em movimento, sem que ninguém pedisse. Primeiro um grãozinho espreguiçou-se e atormentou seu companheirinho aconchegado. “Ei, acorda... vambora...”, o outro nem aí. Demorou mais uma semana para que resolvesse se mexer do lugar e juntar-se ao que já acordara. Mas aconteceu.

As folhas dos pulmões foram desabotoando. Uma imensa copa flutuante. Muito bonito esse processo de curiosidade. Pôs-se em contato com a Paciência. Esta era bastante estranha... Não perguntava, mas também não escapava nada, toda observação absorvia. Apenas esperava... o quê, não se sabia. Então a Curiosidade resolveu avançar aposentos do Casarão adentro, a exemplo da Paciência... em silêncio, porém com a velocidade característica à sua juventude.
As paredes brancas, de uma paz consoladora. Tristes e solitárias. Atrás daquela pintura serenamente branca, havia lembranças. Uns risos pelos corredores, salas e aposentos. Na cozinha um aroma antigo de chá de mato. Lágrimas e soluços no quarto da menina... O vento carregava tudo de um cômodo a outro. Um vendaval por dentro, calmaria por fora. O Casarão.

Duas luminárias lambendo a parede exterior. Nunca adormeciam. O tempo das horas não importava muito, posto que o que está esquecido não necessita da precisão dos relógios. E quem escreve, também adormece em cima do que escreve.

Silêncio mordaz. Os carpetes gastos lembravam-se com muito esforço das festas, das valsas, dos risos. Tudo sepultado abaixo das areias. As duas poeirinhas puseram-se a rastejar com ajuda do vento que circulava vez por outra. Foram compreendendo o que era ali. ”É um Casarão...”, deduziu a primeira criança, mas uma Casa não se movimenta de um ponto para o outro. Essa Casa se movimentava tanto fora, quanto dentro. E o vento invadindo os quartos de janelas abertas. “Estavam realmente abertas?”. Na verdade a certeza não era bem-vinda.

Tudo estava por detrás das coisas. Tão detrás quanto um sonho que rebenta de repente num mundo de origens outras, luminosas, velozes e barulhentas. Uma cachoeira de cristais bem ao meio na sala. O garotinho ilhado num remoto pedacinho de terra firme. Não chorava, arquitetava logicamente como libertar-se de sua pequenina prisão – brincadeira sem graça da força das marés!

O lago foi engolido em volta da pequena ilha. O menino bebeu atmosfera, caminhou afundando, lançava sua cabeça para fora. Compreendeu o mecanismo da vida: respira-se com a fronte sobre as águas enquanto o corpo flutua pesadamente no cotidiano... o importante é salvaguardar a mente. “É, a mente...”

As mãos continuavam sobre o livro sem capa. Diziam elas que havia uma correnteza maior que movimentava tudo sobre os moinhos nos campos selvagens, a mesma força que movimentava as folhas mortas nas calçadas. “o interessante é saber por que se está indo, não necessariamente onde se está indo...”, dizia. Como as horas não contavam muito naquele lugar, não sabia exatamente quem eram os interlocutores. “Isso é o de menos, concentre-se no que está por detrás das coisas”, acrescentou novamente sobre o livro.


(...)


Após o que se reconhece como sendo umas três semanas, as duas poeirinhas estavam à divisória entre a sala-de-estar e o salão. O vento interrompido abruptamente por bem-te-vis. Chegavam violentamente, arremessando-se pelas vidraças do Casarão, momento em que os dois torrõesinhos de areia atentaram que ainda corria água na encanação da Casa, “era desse modo que o Casarão ainda se mantinha vivo...”, recordava-se um pozinho. Essa informação seria de grande valia.

Vaivém de passarinhos estilhaçando-se contra as vidraças. Certa vez um deles partiu a transparência. Entrou a voar desgovernadamente no Casarão. Agitava suas asas, até que pousou naquele Lugar. Passou dias preso ali, sem lembrar a saída – a mesma fenda arremessada que o trouxera para dentro. “Esse é o mal de quem sai às carreiras sem atentar ao caminho que se percorre. Tudo parece ter o mesmo gosto – gosto de nada!”


O bem-te-vi permaneceu isolado. Sem comida e sem água. Morreu. Transformou-se em poeira. Os dois grãozinhos que ali estavam, beberam a cena: da matéria viva ao pó da destruição. “Se ele virou pó como nós, então um dia nós também fomos outra coisa...”, disse a segunda poeirinha.
”Como poderemos nos lembrar o quê fomos antes?”
“Não sei. Perguntemos a Curiosidade, ela sempre encontra repostas para tudo...”.


As paredes do cômodo empurraram-se umas contra as outras na tentativa de encurtar a conversa entre o Tempo, o Espaço e a Precisão das Horas. Tudo muito inútil. O máximo que se processou foi o nascimento de uma rachadura do solo até o cume do Casaril. A parede – agora sangrada – deixava-se atravessar largamente pela luz externa e longitudinal. Não se sabia se era dia ou noite. Há tanto tempo na penumbra, que qualquer luz padece de mesma intensidade fosse dentro, fosse fora.

(...)

No alto o sol levantava-se para logo em seguida largar-se vertiginosamente ao chão. A ginástica das Horas. A rigidez dos dias. A mesmice momentânea. Nuvens apostavam corrida. Quem chegaria a molhar o chão manchando de sal os que lá embaixo viviam? Pirraça de um S. Pedro! Os aposentos continuavam imóveis. A lembrança do menino disse às paredes, que segredaram aos tapetes, que confessaram ao corrimão, que ele soltou-se das nadadeiras e aprendera a voar. “Saíram de suas omoplatas umas coisas que o sustentavam no ar”, observou a rachadura que se formara na parede.
“Mas eu desejo ver o que há lá fora...”, insistia o pozinho curioso e irrequieto, indiferente ao menino-alado que estava feliz ao descobrir que seus pés flanavam.

(...)


O coração ofegava do lado de fora da Casa, pulsava desesperado no céu junto ao sol acelerado, erguendo-se e se pondo, erguendo-se e se pondo, erguendo-se e se pondo... o vento que atravessava os aposentos arregalando as montanhinhas de poeira de um lado a outro, era a velocidade do coração que rangia do lado de fora. “Ele chorava por alguém...”
“Eu me lembrei de algo...”, cochichou um pozinho ao outro. Lembrou-se de uns olhos solitários carregados de Amor e Esperança. Vagavam acordados e sombrios durante as madrugadas, esperando por Ela. “Quem era ela?”, quis saber a outra poeirinha. Disso não recordavam, mas queriam uma revolução dentro daquela Casa.
(...)


A parede danificada partiu-se mais ainda, dançava um balé aritmético em direção ao telhado. O perigo era a construção ruir-se caso a rachadura chegasse à cumeeira: esteio-sustentáculo de todos os cômodos.


O menino-alado esticava-se cada vez mais. E o lago formado acima do tapete da sala-de-estar evaporava-se. Era um processo doloroso porque impunha necessariamente o desapego e desligamento com todo o resto... ficaria mais leve. Desse modo poderia ocupar ou desocupar qualquer lugar de agora em diante, virara força-motora a assoviar desenfreadamente cômodos afora.

“Mas se o quê foi, tornou-se passado, continua sendo... portanto, ainda É; não Foi. Permanece...”, confundiam-se as poeirinhas paradas numa das esquinas-aposentos.
“Não se pode fazer nada, mantendo-se imóvel...”
“Mas o pensamento, pode...”, observou seu coleguinha poeira. Queriam passar de um cômodo a outro. Quando outro rastro de vento percorreria o interior da Casa, emprestando mobilidade e encantamento às coisas? Ninguém saberia dizer.
Mais pássaros rasgavam o céu do lado de fora. Gritavam o nome Dela. “Ela está aqui dentro...”, espantou-se a poeirinha esperta!

“Mas o menino-réptil que agora é alado?”
“Ele é Menino-de-Asas, não Sorrisos-Olhos...”, protestou a outra poeira. E agora o infante não queria mais nadar. Queria voar...
E uma lembrança latente querendo despertar na atmosfera esquecida em um dos quartos. Porém, para que algo seja lembrado necessário se faz a presença de alguém para que essa lembrança venha à tona.
Esse “alguém” és tu.
Sim.
Tu.
Tu mesmo!
Tu que me olhas...

(...)


Uma das telhas ruiu. Partiu-se desabando para dentro. Chegou com violência junto ao soalho. O impacto causou impulso inesperado. As duas poeirinhas voaram uma para cada lado.

“Onde está você?”, ecoou pelo espaço, a pergunta.
“Estou aqui... cheguei ao quarto da Madame...”, gritou uma poeira à outra.
O Destino estava cada vez mais indócil às vontades individuais. A força da coletividade sempre fora maior, porém nunca domesticada...


O sobrado estava hermeticamente fechado – violado, contudo, pela rachadura lateral-oval por conta das brigas entre as paredes-irmãs.
A briga interior.
“Sempre essa briga...”. Ela é capaz de promover catástrofes, ou “revoluções...”, como observou o pozinho rebelde.
O mais sensacional era que o quarto da Madame continuava ileso.
Tudo novinho.
Intacto.
O mesmo brilho.
A mesma ausência.
O soalho nu.
As paredes róseas-escarlates.
A caixinha de música exalando aquele som pesadamente sincronizado, indolente a hipnotizar tudo pelo espaço. As janelas sem cortinas acusavam dia lá fora. Aliás, meio-dia para ser exato.
Existia outra casa do lado de fora da Casa. Era quase loucura ou sonho dentro do Sonho. A mobilidade externa atravessava as fendas herméticas, interferindo diretamente nas coisas interiores.

“Ontem a noite ele confiou em mim. Abriu seu coração ao meu. Serei fidelíssima até perder os cabelos de meu juízo...”, confessava a página escrita do Diário sobre a penteadeira. Ali era o Coração-Interno da Casa.
Sereno.
Intacto ao encantamento do tempo.
O Amor é imune a isso, e a tudo. Permanece porque é puro. Alastra-se, infiltra-se, reage, transforma... promove revoluções.
Outro Coração galopava fora. Era a revolução sendo tecida, ganhava lentamente cômodo após cômodo, em todo Casaril. O mais trabalhoso seria abrir-se, retirar o couro e emborcá-lo para fora. O couro era duríssimo! Necessário seria uma força extraordinária... apenas o Amor seria capaz.

“A porta estivera por longo tempo aberta”.
“Mas existe um filtro, o guardião que hoje a ti serve”.
“Este é Amor que te dou...”
A semente-cardíaca ramificara-se. As veias estouraram, inundando tudo de sangue e Paz. Raiz e planta ergueram-se precipitando a porta – um sopro repentino das asas do ex-menino-réptil. Seus olhos de peixe dilataram-se como os de um felino no escuro. Ele sentia a presença Dela dentro de si.
No interior da Casa, Menino-de-Asas; por fora as faces recobertas de pelos vaidosos, prateados. Ainda conservava a beleza e o frescor. Encantadoramente maravilhoso! Seu corpo esguio – como o de um rei. Reinava sobre si mesmo. Reinava dentro Dela.
Menino-alado esperava ansioso pela presença Dela novamente. Um terço de século estivera à espera.
“Ela veio. Eu me lembro...”, ouvia-se um gritinho entusiasmado.
“Onde estás?”, bradava abafado, outro gritinho.
“Estou aqui...”, rangeu o outro.
“O que aconteceu?”
“Ela veio. Chegou a conhecê-lo...”, explicava aos berros.
“Então eles foram felizes?”
“Isso eu não me lembro...”, ressonou o pozinho à distância, morrendo o assunto.

(...)
O ar era cigarro. Baganas gastas ao chão. As horas passavam sobre si, não lhe despertavam. Vivia em vigílias, em apnéias, em transes domesticados. Despertava disso vez por outra impregnado da presença Dela. O Menino-de-Asas crescera em tamanho, contudo, continuava menino.

Nascera Ela, seria criança por toda vida. Encontraria Menino-de-Asas num olhar peregrino. “Ah! Então foi isso que aconteceu!”, concluiu sozinho uma das poeirinhas. Porém, não deu nem tempo de partilhar a recordação, porque o véu do dia foi se queimando. As atrocidades matavam-se ao fio do horizonte. Tudo estivera escarlate... era o horror da guerra galopando rapidamente em tempestades voláteis, expurgando os resíduos que ali residiam. O compromisso firmado num pacto sem acordos prévios, sem palavras, sem cuidados... apenas de alma para alma. O dentro para fora; e este naquele, agora.


Violinos ulularam animalescamente felizes, ontem. A ventania precipitava-se pelos cômodos. Brincavam como as duas crianças de outrora!
“Mais uma página sendo escrita...”
“E de quê se trata?”.
“De mim e de ti.”
“Ah!”
“Compreendes agora, o quê é um compromisso?”
Disse que “sim”, às mãos sobre o livro sem capa-prévia. E os olhos dele foram cada vez mais fundo... mais fundo... “A ausência é que te traz a mim...”, disse Paciência à Curiosidade. E a lembrança vindo à tona. Pedaços de histórias sendo recontadas. Lá fora era azul, aqui dentro era cinza. Depois da primeira revolução do acordo firmado de alma para alma, lá fora ficou verde e dentro ficou salmão.


(...)


Amanhecia... e as poeirinhas no mesmo lugar. Do lado de fora, a Casa dera um passo importante, largo, profundo. Um ciclone tamanho médio rodopiou tudo bem para o centro de si. Dessa vez cortinas soltaram-se de algumas janelas. A luz de fora ganhava os aposentos. Escorria um mormaço róseo. Pequenas fagulhas flutuando lentamente sob a luz nublada. Um mundo áurico, submarino e vegetal. Havia lodo na horizontal do quarto. Cogumelos dançavam butoh para o alto. Sentiam-se vitoriosos pela quebra do protocolo. Estavam entre as madeiras da janela e da portinha que dava acesso a um saguão misterioso e inútil. Nunca ninguém soubera exatamente para que servia aquilo. As crianças brincavam de esconde-esconde, nada mais!
Pequenas orelhas-de-pau atentas a conversa paralela dos grãozinhos.

“Estamos nos mexendo...”, observou um.
“Aonde vamos parar dessa vez?”, protestou a poeirinha preguiçosa.
“Quero voltar par Casa...”, desesperou-se.
“Estamos em Casa!”
“Não...”, duvidou este ao outro pozinho.
À medida que avançavam pelos cômodos, ficavam mais alvos e leves, sendo qualquer brisa capaz de movê-los de lugar.
“Estamos flutuando”, admirou-se a poeirinha preguiçosa. Isso era bom. Chegava a autonomia parcial dos movimentos. Mas ainda faltava muito para que pudessem adivinhar o quê tinham sido antes, ou o quê foram, ou o quê estavam sendo.
(...)


“Agora compreendi o que significa compromisso”, disse ela, e em resposta ela ouviu: “O meu compromisso é conosco”, concluiu ele. Sua voz era firme e repleta de ternura. Sorrisos-Olhos comoveu-se com o que havia compreendido, e eles dormiram.
“Eu falo através de tua boca e tu, através da minha”. Então as bocas se uniram num beijo. Sorrisos-Olhos sem querer ergueu-se das órbitas, deparou-se com Menino-de-Asas a zombar-lhe das lágrimas gastas em rios sem peixes.

“Se quiseres, trago-te peixinhos para nadarem nesse rio...”, comemorou sua voz, bem distante do chão. Sorrisos-Olhos não reagiu porque estava ocupada em represar o que lhe escorria. Sem resposta, Menino-de-Asas atravessou o véu que gelatinava a única vidraça movediça da Casa. Suas asas promoviam novo combustível às duas poeirinhas já bastante distantes uma da outra.
A história recomeçara!
“Gosto de ouvi-la de sua boca!”
“Também gosto de dizer a tua Palavra!”. Ambos uniram suas bocas novamente. Não mais num beijo. Agora em Força e Vida. O sol nasceu após ambos retornarem! Mas nasceu dentro... crescia. Ele sorriu e zombou dela novamente, “preste atenção para fora... não olhe apenas para dentro. Não descuide de fora”. Ela compreendeu muito depois porque falava através da boca dele.
“Então, o que eu digo é para ti?”
“Não!”, concluiu o interlocutor.
Dos que espreitavam na penumbra, teriam de se conhecer, pressuposto existir apenas um Verbo. “O mesmo que sai da minha boca e da tua”, lembrou.
“Gosto dessa história”, pensava. “Começo a compreendê-la”.
“Escrevo-te com a esfera que achei na rua.” As tintas desaparecem quando entranham no papel. Mas uma esfera não tem lados, nem começo, nem fim.


(...)

“Onde estás?”, ecoava a pergunta. Sem respostas, adentrou ao aposento do Senhor da Casa. Um grossolivro de capa azul sobre uns papéis avulsos-amarelados. As horas passavam tão rápido.
“Tudo se manifesta em mim, mas é através da tua boca que me fala”, gotejou a última lágrima de Sorrrisos-Olhos para Menino-de-Asas, que ia agora distante.
“Mas e o quarto da Madame...?”
“Madame...”
“Madame...”
Repetia-se o eco. Até chegar ao outro lado, à poeirinha. Desistira de prosseguir com a conversa, já que estavam agora flutuando a esmo dentro da Casa – a lentidão.

Um girassol sobre a escrivaninha acomodava-se tímido ao lado do grossolivro de capa azul sobre uns papéis avulsos-amarelados. A alma desse aposento cheirava a tintas e revistas por todos os lados. Paredes cáquis mostravam-se umas às outras, os dentes. Um riso de espantar mosquitos. O zumbido do silêncio, essa sinfonia! Sorrisos-Olhos estremecia de tanto jorrar água para o rio sem peixes.

“Ainda posso trazer-te peixinhos para tu brincares no teu rio...”, prontificava-se ele para ela. Contudo, sua oferta permanecia sem respostas. E em silêncio Sorrisos-Olhos fechara-se.
As bocas unidas...

“Tudo vem a mim. Tudo passa por mim. Tudo se manifesta através de mim...”, uivavam os ventos aos aposentos. Lá se vão novamente os dois pozinhos, mais distantes um do outro.
“Já disse... falas através da minha boca e eu, da tua...”
“Dá-me um beijo?”

E outro beijo foi dado. Ambos falaram pela boca um do outro, então, uma das penas soltas das asas dele veio às mãos. “Era a esfera...”, compreendia o pozinho-revolucionário.
“É com ela que te escrevo agora...”, voava uma das folhas do diário da Madame, indo junto aos alfarrábios aprisionados pelo grossolivro de capa azul. “A solidão do esquecimento é a mesma solidão criativa”, e como uma voz-extensiva a escrita reapareceu sobre as páginas do livro. [O mesmo livro que as mãos pousavam inicialmente].
“Do que se trata?”
“Já disse... Filosofia!”
Eram os anos de festas! Sorrisos-Olhos mocinha.
Casamento.
Enxovais...
Tudo registrado em seu diário.
Uma casa dentro da Casa. Uma história dentro da outra. Um livro dentro de um Livro. E os olhos dela, ali. E os olhos dela, ali... Suas mãos de cigana brincavam os anéis nos dedos avulsos sobre si. Na cama, debruçava-se. As rendas que lhe cobriam gracejavam sobre os joelhos tímidos, e a perna direita dele repousou sobre as pernas dela. O amor chegando para domá-la.

E foi assim a primeira metade de noite de ambos. Ela beijou-lhe os olhos. Cheirou sua pele. Permitiu-se... então, num coito feroz às costas dela, ambos galoparam! A voz dela retorcida pelo quarto, não de dor. De prazer. Entregava-se a ele, agora (e para sempre) seu esposo. “Foi a primeira vez que um homem a amou daquele jeito” – explicava-se o Diário aos alfarrábios retrucados debaixo do grossolivro de capa azul, e este, emocionado largou-se numa queda! A ventania fez as folhas soltas do Diário da Madame em núpcias junto aos alfarrábios desgovernados do Senhor da Casa. Menino-de-Asas divertia-se movimentando ventanias por onde flanasse. Sorrisos-Olhos parara de chorar. Seu rio já era suficiente para ambos abrigarem.
“Acho que aqui se preparam almoços...”, arriscou poeirinha revolucionária. O fogão inexpressivo não fazia esforço algum para acender as chamas, sequer assar bolos. A neblina-ocre reinava em absoluto. Seus súditos – as teias e as aranhas – tramavam algo contra os pernilongos dia e noite. Uma lentidão nostálgica acomodava as panelas largadas umas às outras. Não dormiam. Não acordavam. Estavam eternas. Um animal doméstico acusava-se pela existência de uma passagem ao rodapé da porta. Talvez fosse um gato, um cão...


“Não era nenhum desses...”, vociferou poeirinha preguiçosa.
“O que era, então?”
“Uma grande coruja branca-prateada”, emendou logo, poeirinha corajosa.
“Ah!”
“Foi ela quem ensinou Menino-de-Asas subir aos céus...”, recordou o pozinho valente. E o dito menino encontrava-se na cozinha. Meteu-se a remexer todos os cantos a procura de peixinhos.
“Lembro, havia peixinhos aqui...”, poeirinha disse à outra. Escondidas de todos, as crianças rabiscaram naquela cozinha. Menino-de-Asas viu. E num toque de seus dedos longos e brancos, o desenho ganhou vida. Soltaram-se a pular no chão, os peixinhos.
“Servem apenas dois?”, perguntou ele a ela. Sorrisos-Olhos fez que sim. Eles nadavam agora. E Sorrisos-Olhos deixou-se pela primeira vez sentar-se ao lado de Menino-de-Asas.


Uma árvore ergueu-se em forma de “S”, crescia apenas a noite. De dia abria seus olhos – as folhas. A menina depositou seu rio ao pé dessa árvore, “Assim ela poderá alimentar-se...”, festejava delicadamente Sorrisos-Olhos. Os azulejos da cozinha cederam espaço para uma geladinha terra preta deitar sua presença de agora em diante. A árvore-S queria companhia, entretanto.
“Onde estavam as demais letras?”, ávida a poeirinha rebelde.
“Eu não me lembro...”, disse a outra. Mal sabiam que a Casa inteira era constituída de letras – O Verbo.

(...)


Pousadas à cumeeira estavam as crianças, viram a chegada do Senhor da Casa – distraído, nem notou a presença de uma árvore que enxergava, de um rio que seguia o curso que desejasse, nem viu também os peixinhos saltitantes.

“Meus peixinhos!”, mergulhou num pulo a menina para dentro d’água. “Para fazer companhia à árvore-S” – estendeu as mãos molhadas com cinco sementes para Menino-de-Asas distribuí-las aos aposentos. Cada uma crescia a cada hora do dia. Abririam seus olhos – as folhas.

Rebentou a primeira parede. Árvore-S foi responsável por isso. Os ramos trovejavam em proporção, abraçaram a divisória setentrional da Casa e não teve jeito... ganharam as ruas.
“Era agora o lado de fora?”, não saberiam dizer as poeirinhas pioneiras. Tudo se misturava. Cogumelos cresciam. Caracóis arrastavam-se, a Natureza brotava. O Senhor da Casa sentia-se estranho... suas barbas, agora verde-mata, arregalavam arbustos por todos os lados. Ele enxergara Madame passeando no bosque. Como era linda... estendeu-lhe o braço. Passearam juntos até o cair dos dias.


“Venha até aqui”, Sorrisos-Olhos lamentava ao menino que voava.
“Não posso... apenas sei voar...”
“Quero voar contigo. Ensina-me...” – a voz, melodia aos ouvidos dele.
Mas ele fugiu e chorou. Sabia intimamente que para Sorrisos-Olhos voar, algo muito doloroso tinha de acontecer com ela, e isso viria das mãos dele...
“Por que, afinal?”, quis saber poeirinha.
“Medo...”
“Medo de quê?”, continuou a indagação.
“Medo de amar...”, finalizou poeirinha sorridente.
(...)

Muitos anos passaram. Menino cresceu. Nunca esquecera Sorrisos-Olhos. Ela permaneceu naquele lugar encantado – a lembrança dele. As árvores, bosques freqüentados pelo Senhor da Casa acompanhado de Madame. E a única coisa que restara da Casa era a porta de entrada, erguida naquele imenso jardim. Atrás dela, ainda morava Sorrisos-Olhos.

Como um dos Dias de mãos dadas com a chuva no céu, passarinhos teciam o raiar do sol, Menino-de-Asas retornara àquele bosque. Encontrou Sorrisos-Olhos, o mesmo rosto maroto de outrora. E na primeira hora daquela manhã, ele se desertara de uma de suas asas... dor insuportável! O adubo líquido que lhe escorria da fenda, fez nascer um enorme terreno movediço... eis o parto que ele fizera de si mesmo!


“Por amor?”, quis saber poeirinha romântica.
“Sim. Por amor...”, concluiu poeirinha curiosa.
“Aqui está uma de minhas asas...”, oferecia ele a Sorrisos-Olhos. “Mas tenho de machucá-la... perdoe-me a audácia!”, pedia.

“Está bem...”, inocente a voz dela dizia. Foi quando ele partiu uma de suas omoplatas. Ela gritou. Todo o bosque fez-se em silêncio! Sorrisos-Olhos esquartejada, imóvel ao chão. O amanhã respiraria tranqüilo. O Hoje tapara os ouvidos. O ontem fechava os olhos testemunhas. A dor da Vida em toda sua plenitude!

A asa!
Uma asa amputada.
Verdadeira Asa, porque fora compartilhada com Amor. E durante toda Vida (que era eterna), eles voaram um nos braços do outro... em cada mão, uma semente espalhada, e brotada ao chão, Sorrisos-Olhos e Menino-de-Asas.



(...)



“Ah! Já sei quem somos...”, festejava poeirinha a outra.
E num descuidado sopro, uma rajada de vento.
“Então, adeus. Boa sorte em teu caminho”.



~Fim~








Hellen Katiuscia de Sá
18 de junho de 2009.

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