“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

quinta-feira, 15 de abril de 2010

*PRESENTE – O Olho Direito de Hórus

Aos meus avós (in memoriam):
Benedito Benício de Sá Raimunda Ferreira de Sá





Arte: Katiuscia de Sá /2010


Entrei já na metade da chuva de papéis picados. A princípio a sala úmida de vento me era absorvida pelo lado de fora, até que um pedacinho me chamou para dentro. Fui. Infiltrei-me de Presente o máximo que eu pude através dos vidros de minha ampulheta.
Chegamos então ao milharal. Algumas espigas soltaram-se das bagens. Eu apenas observava. Não quis tocar fogo ainda. Decidi esperar até a próxima safra.
Vez por outra me transformava em passarinho para ir ver o Amado-Eu. Mergulhava nele e dançava minhas asas ao comando de suas mãos-de-neve... Mas a primavera era curta, tinha de retornar aos papéis picados.
Na paleta, as cores de um sol pálido, torto e frio. O céu do lado de fora era musgo-fundo-do-mar. Os passarinhos: demoninhos-pretumes, enfeitavam o musgo-fundo-do-mar em câmera lenta.
Como pedra de jardim, retornava a mim vez por outra num mergulho de lucidez. Tudo continuava do mesmo jeito à espera de minha respiração. Aí eu falei a ela:


- Respiração, espera até quinta-feira... eu te dou um novo sopro e tomarás novo lugar no mercado persa.


E no pavilhão 26, os dois Sóis reverberavam até se tocarem-néon, varando a madrugada. Sorriam-se, em pensamentos voltados um para o outro. Amavam-se! Sonhavam-se acordados...

Havia uma Fênix no céu sinalizando que hoje eu tocaria fogo. Porém, não estávamos mais no milharal. Estávamos agora no estomago de um castelo. Percorríamos suas costelas, sobressaltando as sensações do Todo.
Entretanto, meus olhos-represas abrigavam pequenos lagos que se afogavam para dentro de mim. Revoltei-me ao constatar a injustiça descoberta ao final do quebra-cabeça.




Chorei.




Chorei para dentro...




Chorei para muito dentro e decidi naquele momento nunca mais caminhar em solo alheio. Segui anjo.
Estanquei ao pé de uma laranjeira. No meio da confusão, um pedacinho me veio. Pediu-me socorro. Então, desenhei-lhe o mapa que enxergava em sua fronte. Pobrezinho! Não via porque ainda não aprendera a contemplar-se... dei-lhe um mapa inacabado e algum lápis de cor para que completasse a figura.


O pedacinho se foi, segurando esperanças nos olhos. E minha revolta-lágrima-para-dentro transformou-se em Luz a me guiar. Continuava anjo.


O musgo-fundo-do-mar estava menos musgo e o sol pálido-metade, entortava-se na quina do céu a nos observar. Ele me disse para ter calma e acreditar... acreditar no que eu sentia e não em que eu via. Foi quando soube que estava acordada, e era quase dia, Dia-Presente para os dois Sóis da madrugada.

Dessa vez nós construiríamos a História, e a História era o que conseguíamos sustentar em nossas mãos. Decidi carregar apenas a jóia mais rara que encontrara pelo caminho – a minha cegueira... e meu coração aqueceu-se novamente, na minha escuridão dilatei-me no ambiente e os papéis picados viraram algodão doce.

O mago soprou em meu corpo o pó do conhecimento e a serpente abocanhou seu próprio rabo. E o veneno matou meu oponente.

No dia, que iniciou ontem e continua hoje, comecei o processo vermelho. Não haveria juiz, apenas consciência, e esta nunca nos rouba... Ao encargo dela retornavam as idéias.


As folhas da laranjeira entristeciam ao perceber que ainda não havia igualdade entre os dois corações. Uma poeira-neblina turvava o chão.


Estendi-lhe as mãos e passo a passo, compreendia sua dança vagarosa. Acompanhava cada movimento.


Entregava-me.




Entreguei-me...




Estava entregue.


Acalmava-me ao pensamento do processo vermelho, imaginando os sininhos que meu corpo abrigaria a partir de agora.

- Amor... não tenhas medo quando eu não estiver em ti. Eu sempre retornarei, porque eu sou tu!
Expliquei-lhe que havia apenas uma chave, e ele próprio a tinha. O castelo, o milharal e tudo mais, apenas ele percorreria. E tudo delgava-se ao labor delicado de suas mãos-de-neve.

Nasciam de mim os primeiros sininhos. Era o sinal de que eu estava pronta para a viagem no trilho-de-velas. O timoneiro guiava-me. Era-me estranho estar sob a escolta de outrem. Não tinha escolha, afinal decidira como bagagem apenas minha cegueira...

O capitão sentou-me ao cabo de uma janela. Durante o percurso desgarrei-me de mim. Ouvia os sons, as vozes, mas adormecia consciente aos mesmos. O timoneiro insistia em me avisar aonde eu desceria.

À minha distração pariu-se uma voz feminina. Era uma mulher cujo rosto vinha emergindo das ferragens. Interessando-se pela minha cegueira, ofereceu-me como moeda, um olho de Hórus (o esquerdo), que estava enterrado em seu bolso-de-camisa. Aceitei a troca. Então, a mulher o colocou entre minhas sobrancelhas, e este foi desfazendo-se sob minha pele, até fazer-me enxergar. Ainda estava anjo.

“Desça aí... vire à esquerda e caminhe até o fim!”, disse-me o timoneiro. Mas onde era o fim? Fui indo, indo, indo... e nunca chegava ao fim. Na rua, distraia-me junto ao vaivém dos vaga-lumes. Das pessoas eu não sabia nada. Desliguei-me de fora, meu corpo doía devido à saudade engolida. Amado-Eu permanecia em mim, sem estar presente do lado de fora de mim. E isso me fazia doer...

Sabia que não havia mais volta. Passei para o além do Agora, e com isso meu Espírito não mais me pertencia.


Era dele!

Apenas dele!



Nele eu moraria, enfim!



Sofreria seu Inferno e festejaria seu Paraíso. Era nossa História apoderando-se de nós dois. A Infinitude nos possuía!


Ao final das nuvens enroladas, estava o Lugar. Pedacinhos assanhavam-se por todos os cantos. Cheguei a tempo! Tocamos fogo. Mas, fechei meu olho e acordei passarinho a contemplar Amado-Eu. Estava tímido, mas sutilmente feliz e mimoso.

Chorei ao ouvir sua Alma cantar para a minha. O Sol levantou-se aqui dentro e foi banhá-lo a vida em sedas. Meu corpo respirava ele... e ele, desapercebido de mim de tão emparelhados que estávamos, sussurrava-me inconsciente, “fique”.


Seria eu (para sempre) uma nau a navegá-lo. Amava-o profundamente, suas mãos-de-neve me mostravam o mundo que eu transformava e devolvia Presente. Dividi-me em cinco, para tocar-me fogo novamente. “Haveria agora os sons e eu...”, pensava.



Após me transformar em cinco, instantaneamente retornei a mim, Pedra-Angular, por acaso, morava no chão que eu pisava estando ali. Ela me desafiou. Disse-me que eu não era capaz de transformar-me em cinco novamente. Dei de ombros. Virei cinco, e desses cinco, cada um virou-se em três... só sei que ao final, estava quase cem.



Por desobediência minha, Pedra-Angular nos mandou aos Infernos. Estávamos estacas fincadas no chão. Ouviam-se gritos, fugídios-sons, contorções, e torções; e lamentos, conventos, cata-ventos e tormentos...

Não sentia pena, nem dor, nem nada. Não morava sentimento no meu corpo fincado no chão dos Infernos. Entretanto, assombrosamente, esculpia-se em mim, um leve sorriso. Foi quando as paredes daquele Lugar perceberam que eu não os alimentava, cuspiram-me de volta imune rente ao jardim. Pedra-Angular apenas subiu-me os olhos em silêncio, e eu parti.

Os pedacinhos fincados no chão dos Infernos continuaram suas lamentações. Como um relógio emperrado, repetiam-se, esquecendo-se de quebrarem os olhos em outra direção para que pudessem escapar àquele Lugar. Nem olhei para trás. Determinada estava em tecer o Presente.


Não quis carregar em mim Amado-Eu nessa hora do Dia, quis poupá-lo do horror de estar aos Infernos. Aconcheguei-lhe amorosamente na página delicada do Tempo-Futuro, e segui sozinha. Ainda estávamos num Único-Dia. Amanhecia e anoitecia apenas em mim...

Amado-Eu dormia criança, lindamente menino. Suas mãos-de-neve esqueciam-se ao navegar em sonhos-veneza. Beijei-lhe a fronte e segredei-lhe Amor. Velei-lhe os sonhos como uma Valkíria-Mãe. E às minhas asas, fortemente seguras e solares, Amado-Eu sonhava.



Amado-Eu acordara homem feito, encarou meu olho de Hórus em busca do “como?”.

Eu era labirinto. Amado-Eu ainda não compreendia que o dentro e o fora de mim era através dele. Ele era meu início, meio e fim. Através dele eu enxergava; transformava e devolvia Presente.

Num relâmpago, percebi o que lhe faltava; era o olho direito de Hórus. Cabia a mim, encontrá-lo e oferecê-lo a Amado-Eu.

O Amor dele transbordava aos poros e minha Alma era a neblina-rosa que nos envolvia. Ainda estávamos no mesmo Dia, e eu ainda era anjo.



O Amor me vinha...




Chegava-me,





Tomava-me para si.





Éramos néon,





neblina-rosa um para o outro.





Meu processo vermelho continuava sem os concretos. Mais sininhos brotariam do meu corpo num assombro sonoro; somente desse modo Siddartha me chegaria. Contei-lhe que caminhava com minha lanterna à Luz do dia. Ninguém notara... Então, pedi ao Camaleão para sombrear o Sol com as cores noturnas.

Caminhei com minha lanterna ao escuro da noite, em busca do outro olho de Hórus. Siddartha disse-me para ofertar o mimo para Amado-Eu poder enxergar o que eu enxergava. Desse modo ele saberia o “como?”.

Nesse trecho não havia pedacinhos. Dormitavam todos flutuando à cauda de um cometa que passava. Traziam de volta as cores do dia.
Segui em busca do olho que nos faltava. Como um cíclope, colhia os momentos que formariam nosso Presente.


- Amor atravesse-me amarelo-sol, queime a mim em teu inferno-de-amor. Sejamos Paz...


Eu disse “sim”... voava borboleta desajeitada e leve dentro do coração dele.


Eu era borboleta, ele, meu Jardim-Delicado.


De repente um sopro oriental me fez reparar que a parede soltara um longo fio grisalho, indo embolar-se à dobradiça da janela fechada. Pensei em atravessá-la. Mas iria sair da estrada... Talvez não fosse prudente...
Enraizei meus pés naquele jardim e cessei todos meus movimentos... comecei a pensar com o coração. Existia um coração dentro de mim. Tal fato emocionava-me... Já podia oferecê-lo ao Amado-Eu. Mesmo estando pequenino como um botão de rosa, meu coração já nascera para ser apenas de Amado-Eu.


Não sabia onde começar a procurar o mimo para Amado-Eu. Saí da estrada. Encontrei um anão japonês. Ele estava à sentinela. Olhava o horizonte ultrapassando as árvores da paisagem. Perguntei-lhe o que esperava, “minha donzela chegar...”, dizia.

Era-me intrigante sua postura, pois ele sequer se mexia! Reparei que atrás dele havia outro rosto e outro corpo... Era sua donzela mirando diferente horizonte. Perguntei-lhe o que esperava, “a chegada de meu amo e senhor...”, respondeu-me.


“Desse jeito nunca vão se encontrar...”, pensava. Presos um no outro fica difícil voltarem-se para si. Siddartha havia me falado que o Amor verdadeiro já está em nós mesmos, assim como Amado-eu e eu própria.


Apiedei-me... Segurei a mão direita e esquerda do anão japonês e entreguei uma à outra. Concluiu-se o encontro. Ambos horizontes formaram um círculo espelhado ao redor do anão. Ele e sua donzela puderam se entrever, enfim! Adentraram-se, e absorvidos, os horizontes expandiram-se, e nasceu outro Dia!


A essa luz projetou-se para mim uma janela occipital. O Passado estava lá dentro. Os pedacinhos treinavam a luta. Eu não reconhecia aquilo. Escondi-me do Generalzinho-de-Botas. Virei árvore na floresta, mas o General me reconheceu, não disse nada, porém não me deixou entrar no Passado.


Nesse novo Dia viajei muito até chegar ao pavilhão 26. Percorri Amado-Eu de ponta a ponta. Saí de sua rua durante uns minutos, que se seguiram séculos. Quando eu voltei, ele estava bailarina-homem. Muito bonito... ele estava muito bonito como bailarina-homem!


Devido ser um Novo-Dia-Passado, meu processo vermelho nem havia começado. Estava branca com meus sininhos ainda por nascer. Amado-Eu bailarina, e eu ainda anjo... Minhas asas impediam-me de abraçá-lo, lamentava tanto.


Em minha embriaguez atemporal, não lembrava de muita coisa, o Novo-dia-Passado me dificultava, não me dava pistas onde procurar o olho direito de Hórus.

Tudo estava cinza-amortecido. Os pedacinhos ensaiavam o que fariam futuramente, e eu alheia. Estava sempre fora do Tempo. Meu relógio não funcionava igual aos demais, por isso podia estar sempre com Amado-Eu.


Todavia, sem meus sininhos não poderia permanecer no Novo-Dia-Passado. Retornei ao Presente numa só respiração. Passei novamente pelo anão japonês, vi suas duas faces. Muito rapidamente, meus pés pisavam outra vez a estrada, e o dia voltou Presente consecutivo.


Amado-Eu deu-me dois lances de olhos, eu os agarrei com toda força e felicidade. Estão aqui para quem os lê. E eu pude dormir uma só noite, antes de tocar fogo novamente.


Na manhã seguinte-agora-ainda acordara do primeiro descanso. Estava quase morta. O ar faltava-me. O olho ardia-me. O fio da linha da minha vida estava prestes a rebentar. Achei que o botãozinho-de-rosa, que mal acabara de nascer-coração em mim, iria implodir-se.


Caminhei ao longo do dia, cansada... extremamente cansada. Minhas veias vazavam a perfeição das Horas, escoavam-se, jorrando não-pensar... era o primeiro esforço de meu coração recém nascido.


Permanecia cansada... extremamente cansada. O sono levara parte de mim ao intervalo. Fiquei parte lá, parte aqui. Daí a fadiga que me acompanharia desde então.


Encontrei os pedacinhos novamente. Aquecemos brasa. Ardemos chamas de constelações. Alastramo-nos pela sala na luz suprema de um Fogo Real. Generalzinho-de-Botas adicionou-me ao Livro.


Fomos novamente ao milharal. Viramos quatro, depois mais quatro e mais quatro... terminamos fogo! Três oponentes foram aos infernos, e lá ficaram.


Meu sopro cada vez pequeno... iniciava o outro lance da ampulheta! As Horas regressavam agora. Minhas energias alastravam-se para Amado-Eu. Submissa ficava, nascera para servi-lo... e eu estava feliz.

Durante a metade-magenta, forjava minha espada. Treinei bastante com ela, dancei cansaço. Fiquei sem pernas e com cem intervalos de mim. Dei mais da metade de minha vida ao Tempo para procurar o outro olho de Hórus fora da estrada, por isso enfraqueci para o exterior.


O Tempo ficou segurando para sempre o fio da linha da minha vida. Entretanto, estava eu serena e dócil, por servir Amado-Eu. Não me importava com o cansaço, nem com o morrer. Permanecia, permaneci, permanecerei...


E na madrugada-surda e solitariamente bordada ao invisível, soube onde estava o olho direito de Hórus, o qual tinha de oferecer para que Amado-Eu enxergasse o que eu enxergava...


Aproximava-se a travessia e comigo estavam apenas meus braços, minhas pernas e um único olho míope... eram-me suficiente. Em algum momento anelou-se diante de mim uma tribo de gafanhotos. Dialogamos ao tronco de uma árvore. Amado-Eu mais e mais enraizado em mim. Respirava-o dentro e fora dos verdes.


A essa hora do Dia-Presente estivera eu não-pensar. Havia sentimentos! Maravilhosamente sentimentos agitando-me mar-calmo encanto piano-diamante de ondas no ar. Os anelados iam e vinham Amado-Eu para mim.

Passiva e dócil estava o eu à sua vontade. Respirava gueixa ao toque de suas mãos-de-neve. Nossa conexão a ziguezaguear flores ao violino-coração de Amor. Éramos primavera solar em pleno verde-musgo-oceano.

Minha tarefa consistia em manejar a espada forjada e a lanterna que eu mesma fizera. Seriam elas minhas moedas de troca em favor do olho direito de Hórus quando esse momento me estivesse em mãos.


Voltei criança e a cada passeio do sol, Amado-Eu enxergava um pouquinho de mim, entretanto com a vista ainda turva. Seu penetrar nas coisas seria aclarado através de meu sacrifício futuro. Nossa raça era ciclope e dourada desde os remotos arenitos deste chão, mas Amado-Eu não se reconhecia por completo em mim, em vigília caminhava...


Brilhavam as fagulhas transformadoras do Presente, e através do tato ele se aproximava, somava-se timidamente e delicadamente Amor a nutrir o pequeno botão-de-rosa que crescia invisível e invulnerável ao meu lado de dentro.


A travessia iniciara-se! Minha submissão versou coragem ao corredor negro que amparava meus pés. Nada vi. Nada senti. Nada temi. Nada me parou. O impulso que me movia era apenas Amado-Eu a fortalecer-me. A felicidade ardia-me certeza-esperança, em breve Amado-Eu me enxergaria por inteira.


Das vezes que fui guerreiro, mago, raposa e mulher, a ventania veio aos ouvidos e me disse: “existirão seus filhos, resistirão seus filhos e haverá felicidade-marcial no mundo”, compreendi que o Dia-Futuro seria aquecido pelo Fogo-Coração de nossos antepassados.


Eu-Anjo e Amado-Eu: os versos não mais solitários.



Abotoaduras de um lado e múmias-etéreas-ferrugentas do outro. O espaço imensamente vazio preenchido por olhos compactos e viajantes em busca das letras.

Entrei na Mente. Era lindamente ferrugenta e neblinada. Todos os livros do mundo estavam lá iluminados e guardados pelas grandes lentes. Um facho quente-adormecido furava as vidraças emprestando vida ao que já foi.



Os pedacinhos que ali estavam moviam-se lentamente como se sonhassem. Senti-me Felicidade. Estava na Mente pisando descalça no solo do Saber. Era verso e Amado-Eu também.

Éramos juntos!


Éramos juntos!




Após o gélido vazio da Mente, soltei-me de mim. Fui nevoeiro a esconder o unicórnio que estava de passagem. Anotei o recado numa concha de papel, enrolei-o ao ouvido, enfiei para dentro. Sai às carreiras atrás do Tempo para tatuar xadrez.


Reparei em volta e a condução da Mente fora absorvida pelo meu corpo. Alimentava-me de Saber sensitivo. Era maravilhoso! Os versos no Livro, e este na Mente-Meu-Corpo pintava as paredes do beco sem saída onde me aguardavam os binóculos. Marcamos outro horário aos ponteiros soltos do Tempo. Prometi voltar e voltaria, e voltei!


Da parede ultrapassei de letras a gestos. Amado-Eu tímidos versos, fazia a leitura escrita para nós dois, e na senil manhã estivemos face a face. Ele me enxergava parcialmente. Eu era metade anjo e ele não me via nada...


Sorri dentro de mim. Percebi seu doce e puro Amor como pequenina criança em meu ventre. Meu botãozinho-de-rosa espalhara-se ramalhete surgindo um chão em cores. Amado-Eu caminhou lentamente sobre seu Reino, que era eu em Alma.



Eu era dele.



Apenas dele...




Fui raposa, depois mulher. Versei todo meu Espírito para acompanhá-lo poesia. Éramos os versos não mais solitários. “Ele fica tão lindo, quando me chega tímido...”, pensava sorrindo para dentro de mim. E os olhos humanos de Amado-Eu abriram-me a passagem do beco sem saída. Entrei, e ao sair deixei minha espada e minha lanterna dentro da sala.


Amadureci pisar. Nua fiquei diante de todos para poder retirar o olho direito de Hórus que estava sob a guarda do fundo-vazio que se formava ao meu redor. Estava eu, entre o lá e o aqui.


Generalzinho-de-Botas e Pedra-Angular abriram as mãos e tocaram-me asas...



Voei!



Voei!


Voei o mais rápido e alto possível para devolver o olho direito de Hórus para Amado-Eu. Agora não era nem mais lá nem aqui. Estávamos no Livro do Mago.


Estou ardendo em febre... Os pedacinhos, a partir de agora, cientes uns dos outros, como plasticidade a dançar contínuo... Eu amanheci versos e Amado-Eu também.


Estamos aqui.

Somos aqui.
Amado-eu em mim e eu poesia em movimento à vontade e Amor de suas mãos-de-neve, para todo sempre.

O Amarelo apavorou-se! Sua manhã sairia do pêndulo e eu não seria mais lá. De posse do objeto-olho e de minhas asas, haveria de efetivar o sacrifício. Deformei-me raposa. E dessa vez meus pulmões não suportaram. Faltava-me a vida. Seria esse o preço... Faltava-me a vida. As areias retornavam à ampulheta. Faltava-me a vida.

Os ares não preencheriam mais meus pulmões. A respiração vociferou: “eis-me aqui. Agarra-me e vede além dos nevoeiros...”.
Amado-Eu em terra caminhando os pés no sol. Eu ardendo em febre, deslocava-me de mim num assombro sobre-humano. Soltaram-me peles... Lascaram-me ossos... Evaporavam-me poeiras... Nada restou... Nem lembrança... Nem dormência. Não havia pensar. Apenas Samadi.
Atravessei tempestades e ventanias, os pedacinhos unidos em uníssono. Generalzinho-de-Botas sorriu, Pedra-Angular moveu-se. Eu me desorientei anjo para pisar solo. Porém, dessa magia me era proibida. Nasci anjo, não humana... Então, em meu sofrido e derradeiro suspiro me desfiz.


Estou em tudo. Amado-Eu me sente e me enxerga em si. Os dois olhos de Hórus são sua fronte anelada e torpe. Ele me vê, finalmente.

Fui vencida pelo Tempo incompreensível e nele sangrei invisível. Meu processo vermelho findara, afinal! As vagas encontraram cada um seu par de sons. O Amor mais Sublime e Belo nascera delicadamente no subsolo de Amado-Eu extrapolando as cercanias do Pavilhão 26 – ganhava o sol, Flor-de-Cesário.
Tornamo-nos universos paralelos e helicoidal um no outro... Somos com todos que percorreram seus caminhos particulares, chegando até o final deste contar. Nasci e morri inúmeras vezes até compreender que somos imortais na literatura do universo – o Livro do Mago, que hoje está amanhecendo em tuas mãos.


~FIM~







~PRESENTE - O Olho Direito de Hórus~
*Escrito e dedicado para meu querido amor: Cesário Augusto Pimentel de Alencar.


Autoria: Katiuscia de Sá
escrito entre 20 de agosto a 18 de setembro de 2008.
(Sempre às madrugadas)
.


*Esse texto é meu Diário de Atividades, (poeticamente) escrito durante meu processo criativo para o espetáculo "Tayo To Ame", peça-conclusão de meu 1° ano no curso Técnico de Formação em Ator, pela Escola de Teatro e Dança da UFPA. A montagem cênica foi orientada pelas professoras: Wlad Lima e Karine Jansen.

Nenhum comentário:

Postar um comentário