“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

terça-feira, 30 de julho de 2013

Sonata de Sofia (crônica)


Sofia era uma dessas garotas desligadas, dedicava tempo e atenção suficientes apenas para a manutenção normal de sua aparência física. Arrumava-se com vestimentas básicas, nada exageradamente. Beirava o recato do necessário; amiga da sobriedade e do discreto charme cotidiano, tudo sem grandes exageros e futilidade. A moça gostava mesmo era de deter-se em outros passatempos, que não esses comuns entre a maioria das mulheres – bolsas, sapatos, maquiagens, mexericos, etc... A tudo isso, preferia ela, coisas que acrescentassem ao seu desenvolvimento intelectual, e por isso mesmo era meio apatetada de outras coisas.

Embora fosse destituída de vaidade, chamava atenção quase todas as vezes que pisava o pé fora de casa. De natureza tímida e reservada, Sofia desconcertava-se sempre das vezes que recebia gracejos na rua... e não eram poucos. Outro dia voltava ela do supermercado, passou totalmente displicente próximo a dois rapazes, e um deles ao avista-la suspirou: “olha só que bebezona ela é...”. Num repente, Sofia baixou os olhos, e com as faces rubras seguiu caminhando fazendo de conta que não era com ela.

Numa noite voltava para casa após um compromisso. Sozinha, a jovem caminhava calmamente na rua mergulhada em seus pensamentos, quando em sua direção tornava-se mais vivaz o vulto de um rapaz pedalando uma bicicleta; e este como que hipnotizado pela aparição mitológica de uma sereia do asfalto, desatinou a gritar sem parar entusiasmado com os olhos vidrados em Sofia: “você é linda, você é linda, você é linda...”, parecia que tinha visto algo extraordinário! Neste momento Sofia pensou que o individuo iria sair voando da bicicleta e pedir-lhe um autógrafo, sei lá...; depois dessa demonstração entusiástica à sua desbotada pessoa, a garota quase saiu às carreiras enfiando-se rua adentro.

De outra vez, outro rapaz numa bicicleta vinha-lhe ao encontro, com os olhos radiantes e a face jubilosa, jogava-lhe beijos e mais beijos em sua direção... Sofia baixava as vistas, desconcertada. Realmente a moça não entendia esses espontâneos arroubos masculinos para ela, pois não se considerava nenhuma “Mulher Maravilha”... ainda assim era selado quase todas as vezes que saia à rua, havia sempre uma cantada para deixá-la sem graça. A mais inusitada de todas foi da vez que ela entrara caminhando numa ruazinha de mão única, e atrás vinha um carro vagarosamente seguindo-a descaradamente na contramão; e sem mais nem menos o motorista emparelhou o veículo no meio fio, e com um largo sorriso aparvalhado de orelha a orelha ele aguardou que a jovem o avistasse também, momento que aproveitou a investida: “eu tô entrando na contramão por você... eu juro, eu juro”. Então numa manobra o rapaz estacionou o carro e Sofia apressou o passo, não dando tempo para ele saltar do veiculo e alcança-la. Mas até que essa cantada arrancou um sorriso de Sofia, o rapaz ainda conseguiu ver o rosto dela corado enterrado no chão.

Mesmo sendo a maioria desconcertante, há cantadas funcionais também! Certa vez a moça estava para atravessar o sinal e não sabia se o semáforo estaria para fechar aos transeuntes; ficou na duvida... mas um homem que estava no banco de passageiros num veiculo bem na linha de pedestre a viu, e não deu outra! Com aquela cara de encantamento – que Sofia já conhecia – o homem (bastante solicito) pôs quase a metade do corpo pra fora da janela do carro. Imediatamente num rompante de felicidade meteu o braço na avenida sinalizando para que os carros atrás abrirem espaço, ele olhou para Sofia maravilhado e sorridente: “pode passar... você merece! Você é linda... você é linda... você é linda, viu!”; e meio sem jeito Sofia sorriu amareladamente, agradecendo a gentileza enfiando-se rapidamente para o canto da rua onde não podia ser mais vista.

Outra vez Sofia quis enterrar-se de fato! Desejou tanto que se materializasse um buraco bem a sua frente pra sumir dentro dele. Num finalzinho de tarde estava ela praticando sua caminhada rotineira nas ruas, com aquele seu jeito apalermado de sempre, quando parou num cruzamento. O transito estava lento, com os carros meio engarrafados quando, de súbito foi surpreendida por uma cantada pra lá de erótica. Um carro vinha-lhe por trás e emparelhou ao seu lado. O motorista lambendo os beiços com uns olhos de fogueira pra cima de Sofia, sussurrou: “Ôh...! Mas que bundinha boa pra gozar gostoso...”. Depois dessa, a jovem realmente imaginava algo para evitar esse tipo de abordagem. Teve uns pensamentos relâmpagos e divertidos de sair na rua com um saco de papel enfiado na cabeça com uns furos na vista; ou quem sabe vestir uma burca ou um lençol feito fantasma de Halloween... mas descartou rapidamente aquelas meninices. A garota seguia seus dias, e as cantadas também. Não tendo alternativa, resolveu então coleciona-las.


Katiuscia de Sá
18 de julho de 2013.
14:09H.
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*Todos esses episódios aconteceram comigo (fora outros). Resolvi escrever essa crônica com tom divertido para expurgar essas situações, que de fato me deixam sem graça. Mas, confesso que vez por outra, dá vontade de sair à rua  fantasiada de “Pânico”... =)

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