“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

terça-feira, 19 de outubro de 2010

ÁGUAS CLARAS - radionovela


ÁGUAS CLARAS – rádionovela de um ato.
Autoria: Katiuscia de Sá – Belém, outubro de 2010.

Enredo: trágica história de amor entre Rogério Aluísio da Silva e Laura Custódio Damasceno. A história acontece no inverno de 1849, na fictícia região dos Lagos, Brasil.

PERSONAGENS:
CORONEL CUSTÓDIO DAMASCENO: viúvo; entre 58 a 60 anos; latifundiário/dono de enorme fazenda; possui inúmeros escravos, submisso às vontades de sua única filha Laura.

LAURA CUSTÓDIO DAMASCENO: jovem de 28 anos; única filha mulher do coronel Custódio. Solteira; geniosa; maléfica; tem profunda repulsa contra os negros da fazenda, sendo maligna com eles. Mas em se tratando de seu irmão caçula, parece existir sentimentos bons no coração da moça.
CARLOS CUSTÓDIO DAMASCENO: jovem de 21 anos; filho mais velho (dos homens) de coronel Custódio. Charmoso; de muita lábia e poder de persuasão.
JOÃO HENRIQUE CUSTÓDIO DAMASCENO: jovem de 17 anos; filho caçula do coronel Damasceno. Rapaz franzino; é doente mental em pequeno grau, seqüela devido a uma meningite contraída na infância.
Getúlio Müller: amigo de Carlos; tem 22 anos. Rapaz bastante espirituoso, às vezes safado.
Rogério Aluísio da Silva: altivo e inteligente. Mulato alforriado ainda quando criança. Fora criado pelo padrinho e protetor (na realidade seu pai bastardo). Possuía posses herdadas após a morte de seu protetor.
MARIA MARIANA: aia de companhia – negra, escrava da casa grande, de aproximadamente 27 anos (durante toda sua vida e desde criança foi a dama de companhia de Sinhazinha Laura, brincando com ela no período de infância e em fase adulta é quem cuida da toalete e afazeres pessoais de Laura).
PRETA DOMINGAS: escrava; cozinheira da casa grande, de aproximadamente 57 a 60 anos. Negra grande e forte. Conhecedora de toda história e segredos da família Damasceno

:: INÍCIO ::
Ouvem-se barulho de gato pulando sobre os móveis, em seguida, ouve-se um choro desesperado de nenê... e passos apressados no soalho. Um alvoroço.
MARIA MARIANA (voz infantil): foi o gato Iaiá... ele fugiu pela janela... (o choro de criança continua ao fundo).
PRETA DOMINGAS: todo dia é essa desgraceira! Deixa disso, João Henrique. O gatinho volta... vem aqui com a Preta... não chora... shhhh, shhhh. (aos poucos o choro do nenê vai se acalmando. Ouvem-se passos apressados no soalho)
LAURA (voz infantil): quantas vezes eu disse para passarem pano nos móveis, heim! Olha a água do meu aquário! Ta imunda! Já trocaram esta água hoje?!
(ouvem-se passos correndo)
LAURA (voz infantil): volta aqui Maria Mariana... venha trocar a água do meu peixinho...
(ouvem-se passos correndo)
>>música indicando passagem de tempo.
PRETA DOMINGAS: oh, meu menino... vós mêce inda lembra disso? Mas faz tanto tempo... vós mêce inda tava embrulhado nos cueiros...
JOÃO HENRIQUE (voz infantilizada): mas eu lembro vó preta!
PRETA DOMINGAS: ah, meu fio... tua vó preta vai senti muita farta doce, mas vós mêce sabe que é pra teu bem ir simbora pra capitar, sê cuidado pelos médicos...
JOÃO HENRIQUE: mas eu não quero ir, vó preta. Queria ficar aqui com a senhora, com o pai e meus irmãos... e também com meu gatinho, que um dia vai voltar... sei que vai voltar.
PRETA DOMINGAS: ora menino! Esse gato já se foi há muito tempo! Vós mêce já tem 17 anos, meu fio! Aquilo aconteceu quando ocê tinha cinco...
JOÃO HENRIQUE: mas ele vai voltar...
(vem chegando coronel Custódio e Laura)
CORONEL CUSTÓDIO: vamos meu filho! Está na hora, Laurinha já terminou suas malas. O coche já está esperando.
JOÃO HENRIQUE (contrariado): sim meu pai.
LAURA: ora... venha cá, “Riquinho”... eu irei visitar você todos os finais de semana. Não fique assim. Além do mais, são apenas três meses. Logo, logo você estará de volta. Não é papai?!
CORONEL CUSTÓDIO: sim, sim... Domingas, avise o cocheiro para vir pegar as malas.
PRETA DOMINGAS: sim, siô.
LAURA: eu amo muito você, viu “Riquinho”. Tenho certeza que o papai está fazendo o melhor para você. Não chore... você não é mais criança! Já está rapaz... não chore. Senão eu também irei...
JOÃO HENRIQUE: Laurinha, você toma conta do meu gato, quando ele voltar?
LAURA (apreensiva): sim, meu irmão, eu tomo conta dele até você voltar... agora vamos. Indo agora de manhã papai e eu já estaremos de volta à tardinha. Vamos...
PRETA DOMINGAS: siô coronel, o rapaz já levô as mala pro coche.
(ouvem-se passos)
PRETA DOMINGAS: Mariana, as vez eu óio pra esse rapazinho, e nem acredito no milagre que se deu, dele ter vivido àquela terrível meningite, de quando ele tinha seis anos!
MARIA MARIANA: é... mas Deus quis que ele ficasse pra sempre criança, não é vó preta?!
PRETA DOMINGAS: mió assim! Pelo menos ele não cresceu e ficô como os irmão... meu menino Henrique é o único que tem a alma pura nessa família...
>>música indicando passagem de tempo
(risadas espirituosas e passos se aproximam).
CARLOS: ora, viva! Minha irmã! Cheguei hoje pela manhã na cidade e acreditas que só agora consegui uma condução para cá?! Venha cá, Laurinha, dê-me um abraço!
LAURA: quem são aqueles ali, Carlos?!
CARLOS: ah, sim... trouxe meus amigos para conhecerem a fazenda e passarem as férias de verão conosco aqui, até retornarmos aos nossos estudos. Nem acredito que só falta mais um ano e pronto, papai ganhará um advogado na família! Não é maravilhoso, Laurinha!
LAURA: você deveria nos consultar, antes de trazer essa gente para cá, meu irmão...
CARLOS: “essa gente”? Que modos são esses, Laurinha? “essa gente” a qual você se refere, faz parte de meu mais seleto grupo de amigos... veja lá como você fala, heim! Não vá me envergonhar diante de meus companheiros!
(passos se aproximando)
GETÚLIO MÜLLER: não nos apresenta, Carlos?
CARLOS (sorridente): ah, sim... essa aqui é minha irmã: Laura.
GETÚLIO MÜLLER: encantado, senhorita.
CARLOS: e esse aqui Laurinha, é o Rogério Aluísio.
ROGÉRIO: como está, senhora?!
(respiração ofegante de Laura)
ROGÉRIO: a senhora está passando bem?
(logo em seguida ouvimos passos apressados)
ROGÉRIO: Carlos, sua irmã está bem? Porque ela ignorou-me desse modo. Ficou pálida de repente...
GETÚLIO MÜLLER (galhofando): vai ver ela não está acostumada a ver rapazes da cidade... fica só enfurnada nessa fazenda... ei Carlos, sua irmã já conseguiu um pretendente?
CARLOS: ei... Laura é minha irmã. Não brinque assim!
( passos apressados e bater de porta)
MARIA MARIANA: credo, sinhá! Que a sinhora tem? Parece que viu um fantasma!
(ouve-se apenas a respiração ofegante de Laura)
MARIA MARIANA: sente-se aqui. Deixe eu desapertar seu vestido... a sinhora respira com dificuldades... se continuar desse modo, vai desmaiar!
LAURA: foi o Carlos... trouxe gente desconhecida para a fazenda! Ele sabe perfeitamente que não gosto dessas suas companhias! Aborrece-me!
MARIA MARIANA: pronto, sinhá. Assim a sinhora recupera logo a cor.
>>música indicando passagem de tempo
(Almoço – risadas, burburinho paralelo, sons de talheres)
CORONEL CUSTÓDIO: então meu filho, conte-me sobre a capital!
CARLOS: sim, papai! A capital está crescendo e progredindo com a venda do cacau. Estão investindo em saneamento, agora! A cidade da Guanabara está uma riqueza. Trouxeram arquitetos ingleses para reformar a avenida principal e dar aspectos europeus por aqui!
GETÚLIO MÜLLER: finalmente! Já era hora... e com os progressos vêm as maravilhosas inglesas e francesas, com seus sapatinhos envernizados, e é claro que as avenidas da cidade de Guanabara têm de estar à altura de tão belas formosuras...
CORONEL CUSTÓDIO: acho que eu e Laurinha devemos visitar a capital para ver as novidades e estreitar amizades com os exportadores... afinal, temos muito cacau de nossa fazenda sendo vendido para a lá! E também, a viagem fará bem à Laura, pois assim sairá um pouco daqui e terá a chance de conhecer um bom moço para estabelecer casamento!
(som brusco de talher)
LAURA (ríspida): não há necessidade, papai! O senhor sabe o que eu penso sobre o “casamento”!
ROGÉRIO: e o quê a senhora pensa sobre o “casamento”?
LAURA (a contra gosto): acho o “casamento” um mal disfarçado comércio de interesses, onde a mulher é descaradamente vendida ao marido pelo pai, sem ter o direito de escolha! E ainda mais: todos os homens são uns brutos!!!
CORONEL CUSTÓDIO: Laurinha!
LAURA (secamente aborrecida): os senhores dêem-me licença! Estou indisposta. Papai!
ROGÉRIO: ...bem, bem... retornando à primeira conversa. Só lamento que o progresso do Brasil se dê através de violências, injustiças e humilhações provenientes da exploração de mão-de-obra escrava...
CORONEL CUSTÓDIO: senhor Rogério, o senhor é abolicionista?
CARLOS: ora, gente! Vamos deixar essas contradições para o Imperador resolver! Somos apenas estudantes passando as férias de verão em sua fazenda, papai. Não temos idéias abolicionistas... Sabemos o que acontece com os abolicionistas... não é Rogério!
GETÚLIO MÜLLER: pois bem... Carlos, após a sesta ainda vamos até a vila, conhecermos o lugar?
CARLOS: claro, caríssimos! Estou ansioso em mostrá-los alguns encantos que nossa cidadezinha ainda mantêm... Não quer ir conosco, papai. Faria bem ao senhor dar uma volta.
CORONEL CUSTÓDIO: não, meu filho! Esses passeios são para os moços... eu já estou muito velho para isso. Depois da morte de sua mãe, e aquela terrível doença com Henrique, que deixou essas seqüelas nele... eu realmente não consigo mais ter cabeça para essas coisas.
CARLOS: está bem, papai. Então fiquemos assim: não nos espere para o jantar. Chegaremos tarde. E não se preocupe conosco, certo?!
>>música indicando passagem de tempo
GETÚLIO MÜLLER: mas eu me lembro daquelas pernas macias... (risos bobos)
CARLOS: não! Aquela cachaça nos fez virar a cabeça... (risos bobos)
GETÚLIO MÜLLER: quem está porre aqui, ora essa! Veja como sei fazer um quatro nas pernas...
(barulho de gente caindo)
CARLOS (abre uma baita risada, para logo em seguida abafá-la)
ROGÉRIO: ora, recomponham-se rapazes! O que seria de vocês sem mim? Ainda bem que eu não bebo...
GETÚLIO MÜLLER e CARLOS: “não bebe, não fuma, não...” (ambos caem na risada)
ROGÉRIO: essa hora dar conta de dois marmanjões porres! Venham por aqui... cuidado Getúlio...
(som de vaso quebrando)
CARLOS: ei, esse vaso pertenceu a minha tataratatara...vó. Está na família a gerações!
GETÚLIO MÜLLER: você quis dizer: estava... (caem na gargalhada)
ROGÉRIO: shhh... falem baixo! Vocês vão acordar a casa toda!
(som de porta se abrindo)

ROGÉRIO: pronto! Se acomodem ai... e quietos!
(ouve-se abrir e fechar de porta, seguido de passos)
ROGÉRIO (fala consigo): meu Deus! Estou ensopado de suor! Não posso ir para cama desse jeito! Como irei lavar-me à essa hora? Ah! Vou lavar-me na cozinha... deve haver algum balde d’água por lá, sem eu ter que ir até o poço sacar água.
(som de água jogada)
ROGÉRIO: ahhhh! Assim está bem melhor. Agora já dá pra deitar na cama.
(passos andando e parados bruscamente)
LAURA: o senhor. Tire já as mãos de mim!
ROGÉRIO: como? Se a senhora estava quase caindo...
(tapa)
ROGÉRIO: Ai! A senhora está louca!
LAURA: Largue-me, seu... seu...
ROGÉRIO: ...mulato! Sou um mulato, minha senhora, e não tenho nada do que me envergonhar...
LAURA: largue-me, seu atrevido!
ROGÉRIO: a senhora pensa que eu não percebi sua repulsão à minha pessoa desde o momento em que nos conhecemos? (silêncio) Tenho certeza que a senhora apreciaria peles de minha cor...
(passos)
LAURA: Mariana, dê-me essa vela!
(passos apressados)
MARIA MARIANA: o que foi sinhá?! Espera eu...
(passos apressados)
ROGÉRIO: que mulherzinha louca! Cortou-me a cara com aquelas unhas...
>>música indicando passagem de tempo
(café da manhã – sons de xícaras, talheres, etc)
CORONEL CUSTÓDIO: Preta Domingas, onde está Laurinha?! Ande mulher, responda! Ela nunca falta ao café! Está se sentindo mal?
PRETA DOMINGAS: não siô... sinhá Laurinha está de pé desde as quatro... foi caçar negro fugitivo junto com os capataz...
ROGÉRIO(surpreso): como é que é?
CARLOS: Jesus! Laurinha não perde essa mania de calçar botas e tacar-se montada num cavalo atrás dos negros fugitivos??? Pensei que depois desses anos todos, ela havia mudado, papai.
ROGÉRIO (estupefato): a sua irmã faz isso há muitos anos???
GETÚLIO MÜLLER(sarcástico): agora entendo porque Laura ainda não encontrou nenhum pretendente...
(ouvem-se passos esbaforidos e sons de chicotes, entra Laura totalmente fora de si)
CORONEL CUSTÓDIO: Laura! Que modos são estes???
MARIA MARIANA: ...a sinhá quer que sirva seu café?
(ouve-se som de chicote, em seguida passos apressados se afastando)
CORONEL CUSTÓDIO: Mariana, ande! Vá atrás dela!
(entra Preta Domingas)
PRETA DOMINGAS: coronér, venha rápido, pela virge santíssima! Sinhazinha Laura mandô açoitar o negro fugitivo... sinhá ameaçou o capataz, caso ele não desse sessenta chibatadas no coitado... ele tá que não se agüenta!
(todos atônitos)
GETÚLIO MÜLLER (balbuciando para Rogério): ...essa Laurinha tem barbas no lugar dos pêlos???
(retorna Maria Mariana)
MARIA MARIANA: coroné, sinhá se trocou e saiu esbaforindo rumo ao bosque.
ROGÉRIO: isso tem que acabar!
CORONEL CUSTÓDIO: venha comigo, Carlos! Mariana corre atrás de Laurinha... fique de olho nessa desmiolada!
PRETA DOMINGAS(orando consigo): oh, Senhor! Vai começar tudo de novo... o demônio entrô no corpo de sinhazinha! Virge!!!
GETÚLIO MÜLLER: Domingas, a Laurinha já fez isso antes?
PRETA DOMINGAS: sim, siô... e como! Desde novinha ela tem essa desavença com os negros! Nós não entende, pois sempre fomos bons com ela...
>>música indicando passagem de tempo
(sons de ventania, mato, passarinhos e meio ambiente)
LAURA (soluçando, revoltada): eu não acredito! Não pode ser, meu Deus! Eu odeio aquele...
ROGÉRIO(chega e fala de repente): ...negro? Você me odeia porque sou negro, não é Laura? É isso que irrita você? De eu estar na casa grande sem ser nessa condição de escravo que você pode bater e mandar esfolar?!
LAURA: ora! Como se atreve... tire as mãos de mim!
ROGÉRIO (calmamente irônico): se eu não a segurasse, minha senhora... desconfio que iria cair. Não lhe parece estranho que eu tire seu sossego? Que a senhora sempre fique tonta e desfaleça em meus braços todas as vezes em que nos encontramos a sós?
(Laura luta para sair dos braços de Rogério. Silêncio indicando um beijo entre ambos, em seguida um tapa).
ROGÉRIO: volte aqui, Laura!
LAURA (em soluços, indo embora): deixe-me em paz! Eu odeio você! Eu odeio você!
>>música indicando passagem de tempo
PRETA DOMINGAS (ofegante): coroné... coroné, chegou telegrama da cidade. O carteiro disse que é do hospitar onde está nosso Joãozinho...
CORONEL CUSTÓDIO: dê-me, rápido!
PRETA DOMINGAS: o que diz, coroné??!
CORONEL CUSTÓDIO: ...diz que nosso menino não vai ficar curado da cabeça.
PRETA DOMINGAS: oh, Deus Santo!
CORONEL CUSTÓDIO (arrasado): então, mande o cocheiro ir hoje mesmo buscar nosso Henrique... não tem porque ele permanecer trancafiado naquele hospital...
PRETA DOMINGAS: sim siô, coroné!
>>música indicando passagem de tempo
JOÃO HENRIQUE: então o senhor sabe falar latim?
ROGÉRIO: sim, sei sim!
JOÃO HENRIQUE: Rogério, a vó Preta sabe falar uma língua engraçada... ela disse que é a língua dos ancestrais dela, que chegaram aqui carregados dentro da barriga de um navio, e depois, quando esse navio chegou em terra, ele abriu a barriga e os colocou pra fora...
ROGÉRIO: que história bonita...
JOÃO HENRIQUE: mas essa história não termina bonita...
ROGÉRIO: ...não? Por que, João Henrique?
JOÃO HENRIQUE: porque, a vó Preta disse que essas pessoas teriam a noite nos olhos por muitas gerações, devido ficarem muito tempo na barriga do navio que os trouxe para cá. E eles nunca mais voltariam a ver sua Terra natal...
ROGÉRIO: a África.
JOÃO HENRIQUE: é isso mesmo! Foi esse o nome que vó Preta falou. Você conhece essa história?
ROGÉRIO: não toda...
JOÃO HENRIQUE: eu lhe conto o final: então muitos deles fugiam daqui com a esperança de retornarem à África, mas eles eram impedidos pelos homens endemoniados, que os trancava novamente, até secarem todo o sangue de seus corpos... e de tanto sangue no chão, deu origem a uma árvore que dava um fruto da mesma cor da pele deles – a árvore de romã.
ROGÉRIO (triste): que poético...
JOÃO HENRIQUE: quando Laura era mais moça, ela comeu um fruto de romã, e vó Preta teve que fazer um chá para ela ficar boa... então numa noite Laura sentiu muita dor na barriga, e urinou muito sangue... vó Preta disse que se ela não tivesse feito o chá, Laurinha teria um filho da cor de romã...
ROGÉRIO (assustado): quando aconteceu isso, Joãozinho???
JOÃO HENRIQUE: quando Laura tinha dezoito anos. Lembro-me que ela chorava muito e que papai perdeu a cabeça e mandou matar um negro da fazenda... eu não entendi porque ele fez isso.
ROGÉRIO: mas eu entendi... agora.
(ouvem-se passos, entra Laura)
LAURA (altiva): Riquinho, venha para cá! Vamos!
JOÃO HENRIQUE: mas Laura, estou conversando com Rogério...
LAURA (mais raivosa): venha! Já disse!
(ouvem-se os passos dos dois afastando-se)
>>música indicando passagem de tempo
(sons da noite, passos lentos)
LAURA: quem está aí!
ROGÉRIO (voz seca): sou eu...
(breve luta entre ambos)
LAURA: Largue-me...
(silencio indicando beijo)
ROGÉRIO (ofegante): não adianta lutar, Laura!
LAURA (lânguida e com a respiração alterada): venha comigo...
(breve silêncio, sons de tecido, coito entre ambos)
>>música indicando passagem de tempo
(passarinhos cantando, indicando amanhecer)
ROGÉRIO(de repente): Laura? Ela não está no quarto... Devo ir-me antes que alguém me veja aqui.
(som de porta abrindo devagar)
ROGÉRIO (consigo): ah! Que bom... Getúlio ainda dorme.
(ouve-se gritaria e burburinho)
MARIA MARIANA (chorando e gritando): rápido vó Preta!
PRETA DOMINGAS: quê qué foi, minina! Pare de chorar...
MARIA MARIANA (chorando): a sinhazinha...
(vem entrando Coronel Custódio)
CORONEL CUSTÓDIO: o que está acontecendo? Por que essa choradeira, Mariana?!
MARIA MARIANA: coroné... a sinhazinha está morta!
TODOS JUNTOS: morta?
MARIA MARIANA: ela se enforcou na árvore de romã...
[FIM]

ÁGUAS CLARAS - radionovela
Autoria: Katiuscia de Sá
Belém, 19 de outubro de 2010.
________________
*Conto que inspirou a adaptação:

Nenhum comentário:

Postar um comentário