“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Águas Claras (conto)


Deram asas ao gato! Este pulou de prateleira em prateleira. Voou pela janela ganhando o pátio para nunca mais... deixaram voz ao pequenino que ficou. Ainda em fraldas aprendeu que liberdade só é Liberdade quando fugidia. Mas o gato voltara à noite, retornou pela mesma passagem por onde escapara. Tomou leite em tigela. Do mesmo leite do nenê. Após o escândalo do nenê pelo sumiço do felino, todos dormiam com um olho no gato e outro no peixe... Alonso era o peixe de Laura, irmã do nenê em cueiros. Caprichosa a menina. Corria os dedos todos os dias pelos petrificados móveis de jacarandá de toda casa, e despejava seus dedinhos sob o aquário, se fizesse sombra nas águas, mandava açoitar a escrava... Laura era menina alva, feito boneca de porcelana de rosto cândido. Tinha alma desesperada como noites escuras de mortes coletivas. Seus olhos gritavam ódio e sangue pela negrada. Custava ao pai aceitar aquele gênio na menina, enquanto Carlos, o mais velho dos meninos, descambava delicado para as Artes. Laurinha era o filho mais macho do coronel Lourival Custódio Damasceno. Quando atingiu a idade de dezesseis anos, calçou botas mandando até mesmo no capataz da fazenda! Corria a cavalo junto aos capitães-do-mato. Adorava caçar negros fugitivos. Todas as suas aias tinham-lhe como um demônio naquela família. Sua ama de leite contava que sinhazinha Laura nasceu junto com a tempestade de 1839. Laurinha devastou a própria mãe, que só engravidou novamente após penosos sete anos, quando veio Carlos. Franzino e delicado, despojado pelos bons costumes. Adorava trabalhos manuais, sendo a Pintura e o gosto pelo Belo quem delinearia sua personalidade. Quando rapazola simpatizou pelas idéias abolicionistas. Articulava panfletagens debaixo das barbas do coronel Custódio, viúvo coitado... obedecia todos os caprichos de Laura, que parecia ser o homem da casa. O pequeno João Henrique nunca soube o que seria. Ainda criança tivera meningite, escapou da noite eterna, ficando com modos infantis e amedrontados para o resto da vida. Laura tinha-lhe pena. Às vezes João Henrique lembrava-se do gato de sua infância e chorava longamente, parecia o mesmo nenê de outrora. Às vezes Henrique sumia o dia inteiro, sendo encontrado cutucando formigueiros junto às senzalas. Os negros não judiavam dele, gostavam dele até! Sabiam que o jovenzinho era a única alma boa daquela família.
Os anos passavam... e coronel Custódio deveria casar a filha. Era o costume das famílias bem-nascidas. Quem seria o braçal-homem que desposaria aquele furioso animal? Todos na região dos Lagos conheciam os predicados de tão doce personalidade... Coronel Custódio queria mesmo era afastar dali aquele doce mel... isso que deu: foi dar língua à cobra, voz ao tigre, mãos e pés à gorila. Nasceu sinhazinha Laura Custódio Damasceno!
No inverno em que o jovem João Henrique fora levado para internação na Santa Casa dos Loucos, Carlos retornara da Capital. Trouxera consigo dois amigos de farra: Getúlio Müller e Rogério Aluísio da Silva. Este último mexera com as barbas da severa sinhazinha... Rogério era mulato alforriado ainda criança. Altivo como os grandiosos bambus. Foi adotado pelos senhores de sua mãe escrava; freqüentou os melhores internatos do País, teve educação de Doutor no exterior. Sempre tivera a proteção do homem que o alforriara. Bastardo no nascimento e bem-nascido de coração. O mulato acumulou a fabulosa herança de seu protetor (e não assumido pai). E não à moda dos jovens desse período, mas por amor e garra, Rogério destinava-se às causas abolicionistas.
Getúlio Müller era alto, de faces coloridas e afocinhadas. Seus olhos de doninha combinavam com seu sorriso fácil e preguiçoso de hiena. Era rapaz bastante espirituoso e também sabia ser safado. Rogério tinha a pele da cor perturbadora de romã. Seus olhos eram duas grandes poças de mel à luz solar. Lábios de caju. Faces de leopardo – muito atraente e exótico rapaz. Carlos os havia levado para passarem as férias na fazenda da família Damasceno. Laurinha ao se deparar com aquilo, não foi de bom gosto, mas o irmão soube persuadi-la. Carlos era exímio jogador de seu charme e podia converter até a mais ardente carola, quando assim quisesse. O trio de rapazes foi instalado no mesmo quarto. Gozavam das mesmas liberdades. Coronel Custódio até gostava de companhia mais juvenil. Os rapazes o acompanhavam nas conversas da tarde. À noite, sumiam para a boemia na Vila. Certa noite, Carlos e Getúlio mal se agüentavam em pé. Derramaram-se assim que entraram nos aposentos da casa grande. Rogério, que nunca bebia, os carregou até o quarto. Ficou em gotas pelo esforço de babá de marmanjos... decidiu banhar-se antes do sono. Mas àquelas horas... seria mais prático assear-se, apenas. Molharia a face e o pescoço. Já seria o bastante. Mas ao sair da cozinha vestindo apenas suas calças e o restante do traje nas mãos e os cabelos e o dorso obscenamente molhados, deu de cara com Laura no meio do corredor. A mocinha sentiu um rubor acender suas faces. Fraquejaram-lhe os joelhos indo a moça desabar se não fossem os fortes braços de Rogério a ampará-la... “o senhor. Tire já as mãos de mim!”, grunhiu Laurinha, recompondo-se dos olhos revirados. Rogério nem teve tempo de explicar coisa alguma, quando sentiu o peso certeiro da mão e o corte profundo das unhas de Laura. Maculou-se aquele lindo rosto cor de romã.
“Ai! A senhora está louca!” – escapou daqueles lábios de caju.
“Largue-me, seu... seu...” – safava-se Laurinha
“...mulato”, concluiu Rogério, cheio de vitória na voz. “Sou um mulato, minha senhora, e não tenho nada do que me envergonhar...”. Os olhos de ambos eram do mesmo fogo.
“Tenho certeza que a senhora apreciaria peles de minha cor...”, gracejou ele somente para infernizar Laurinha. Ela já estava quase em erupção, quando uma escrava materializava-se no breu do corredor; Laura aproveitou-se da vela que a escrava trazia e escapou pela fileira agourenta. Ao chegar a seu quarto, desabotoou a camisola. Os seios ofegavam. Sua roupa de baixo transpirava pelo rapaz mulato... acontecia um gozo dos sentidos, deixando Laurinha apavorada em febre. Pela manhã não estivera presente ao café da manhã. Coronel Custódio estranhou a ausência da filha. As amas disseram que a moça pôs-se em botas à caça de escravos fugitivos. Quem a viu naquela manhã, disse que sinhazinha parecia o próprio capeta de tanta malvadeza contra os negros.
Ao chegar à casa grande, Sinhazinha Laura varou pelos cômodos tal raio em tempestade. Ia abandonando tudo pelo caminho, restando-lhe às mãos apenas o chicote. A moça batia em tudo que via pela frente... e via somente aqueles lábios de caju... passou a semana toda naquela sofreguidão. Quando sua atitude chegou ao conhecimento de Rogério, a fúria de seu coração abolicionista o fez travar caloroso discurso contra a rapariga! Estavam a sós pelas mãos inconseqüentes do destino. Um delicado final de tarde envolvia ambos, quando se encontraram face a face no bosque da propriedade dos Damascenos. O vento se ressentia ao golpear a delicada pele rósea de Laura e de ressecar os tão perturbadores lábios de caju de Rogério... o vento infelizmente também testemunhava e carregava os gritos de ambos. A situação se agravou quando o rapaz arrebatou das mãos de Laura o furioso chicote com o qual ela açoitara os negros dias passados. Quando a pele de romã roçou a pele rósea, Laurinha estremeceu. Aquietou-se, porém, rapidamente quando Rogério a amparou de ir-se direto ao chão. E na fúria de seus sentimentos, ela compreendeu que amava aquele mulato, cor de romã... largou-se imediatamente das mãos de Rogério, indo carregar pesadamente seu vestido azul-marinho cravejado de pequenos lírios líquidos espartilhados de rendinhas. A moça corria afundando suas botinhas caprichosas na lama dos arredores. Afundou-se pelo bosque, escapando dos olhos afogueados do rapaz. Laurinha aportou-se num tronco caído. Não sabia se respirava e continha a euforia, ou chorava depositando seu ódio para o mundo. Seu desgosto pelos negros fora punido. Laura fora domesticada por aquilo que mais odiava... tornava-se ela, cativa... cativa de seus próprios sentimentos a partir de agora!


De seu lado, Rogério também foi pego de surpresa. Como pôde ele gostar daquela mulherzinha cruel e nojenta? Ela simbolizava tudo contra qual Rogério lutara em toda sua vida! Laurinha era má com os negros e fútil, tão rasa e inútil quanto uma lamparina enferrujada, velha e sem óleo. Mas Rogério também estava apaixonado por ela. Os últimos raios de sol daquela tardinha, o consolavam: davam brilho àquelas lágrimas sofridas que queimavam o rapaz por dentro.
Laura conseguiu tornar-se mais pálida do que uma Lua Nova. Os fios negros de seus cabelos caídos sobre a fronte davam-lhe feições cruéis e macabras. O contraste que os últimos raios do dia conferiam ao rostinho oval, afundava Laurinha num universo tempestuoso de loucuras... seus olhos grandes e negros em face pequena, dominavam os dentes fortes em pavoroso aspecto de gato do mato. Laura era um animal perseguido. Sentia-se agora, como os negros que ela tanto judiou por anos a fio...
A seu modo, Rogério continuava as rotineiras camaradagens com Getúlio e Carlos, sem que nada estes desconfiassem. Sinhazinha tornava-se mofina. Passavam-se os dias e Rogério partiria daquele lugar... e o desassossego depenava o peito de Laura.
Após algumas semanas, chegaram noticias de João Henrique. Os médicos mandaram dizer por carta, que o rapaz não poderia voltar a ter a sanidade normal, devido à meningite que ele tivera na infância; e que o único remédio era aceitá-lo como está e ter alguém ao seu lado para cuidá-lo a vida toda. Saber daquilo foi um baque para o coronel Custódio. Com a única filha em demônios e o filho caçula adoentado para sempre... o sofrimento naquela família traçava as linhas no destino de todos.
“Então, tragam-no de volta!”, resolvera coronel Custódio. O que adiantava manter o rapaz internado se não ficaria bom dos juízos! Melhor tê-lo em casa no meio dos seus. E para aborrecimento maior de Laura, Henrique simpatizara com Rogério; tornando-se ele amigo do homem que aprisionara o coração indomável da moça. Partilhavam conversas e segredos. E através de um desses segredos que Rogério compreendeu a origem do ódio que Laura alimentava pelos negros...
Numa madrugada de domingo, estavam a zanzar pela casa grande Rogério a procura de algo que o distraísse, e Laura consumida pelo furor debaixo dos tecidos, ao pensar naqueles lábios de caju... Na escuridão de um corredor, esbarraram-se novamente. E novamente, Laura deixou-se cair nos braços daquele rapaz cor de romã.
“Largue-me...”, antes dela proferir outro insulto qualquer contra Rogério, a língua obscenamente quente do rapaz entrelaçou-se na de Laura, emudecendo aquela angústia que lhe tirara o sono... e o fervor dos sentimentos de amor reprimido, que tirara ambos da cama, foi o responsável de os colocar novamente envolto nos lençóis, e nos braços um do outro... Como animais no cio devoravam-se mutuamente.
Laura jamais experimentara tão apaixonado corpo, nem os beijos que lhe afogavam a face e o ventre... Abandonava-se naquele rapaz cor de romã. E nos primeiros raios de sol vazados pela cortina, Laura ressentia-se da madrugada tão escura, que escondia a pele de Rogério, enganando a visão da sinhazinha. Mas à luz do dia, a realidade colorida judiava do mau caráter da moça. Ela odiava os negros... e agora também se odiava.
Pela manhã, Rogério ainda estava na alcova de Laurinha, mas não a encontrara nos aposentos. O rapaz escorregou discretamente para o quarto de hospedes, deitando-se em seu leito sem acordar o companheiro que dormia na outra ponta. Não seria coerente saberem que Rogério e Laura estiveram juntos naquela noite.
Entretanto, antes que todos se acomodassem para o café da manhã, ouviam-se gritos apavorados e correrias no salão principal. Um escravo bradava a notícia de que sinhá Laurinha estava morta, enforcada no saguão da casa, no alto de uma frondosa e bela árvore de romã.
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Katiuscia de Sá
25 de abril, e 18 de outubro de 2010.
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Adaptação do conto para radionovela:

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