Então lá estava Lucien, tão absorto e desqualificado quanto
um pinto jogado numa poça de lama... e o pior de tudo: sozinho! Havia dias que
vagava pelas ruas (sempre às madrugadas, pois tinha receios de encontrar os
outros garotos mais velhos e sofrer represálias à toa...). Foi numa dessas
madrugadas que percorrendo uma das ruas da praça central, encontrou uma janela
aberta e convidativa. Talvez o dono a esquecera sem o trinco e o braço do vento
incumbiu-se de abri-la para Lucien vasculhar com suas vistas o que havia de
comer por ali ao alcance das mãos. Era o descuidado Destino brincando mais uma
vez de salva-vidas ao garoto.
A noite estava fria e densa, com muita neve sendo espalhada
pela ventania. Mal se podia ver a silhueta das coisas, mas a baixa luz que
vinha de dentro do aposento trazia esperança a um coração precocemente
danificado pelas injustiças da vida. A rua era o único amigo de Lucien naquelas
alturas. E o que viesse era lucro...
Com os pés congelando de frio, já nem os sentia direito. Foi
quase instintivo que o garoto se libertara do manto sujo e cheio de neve bem de
baixo da janela; quando num piscar de olhos já estava dentro do aposento. Havia
um cheiro de bolo. A urgência da fome fez com que o menino descuidasse de escutar
se havia alguém acordado, ou por perto. Foi certeiro rumo à cozinha.
O ambiente silencioso e rústico era dominado por um enorme
fogão a lenha. Ao lado deste um estoque de madeiras cruas cortadinhas e amontoadas,
aguardando sua vez de morrerem para alucinarem o fogo que cozinhava os
alimentos daquela casa repleta de espaços vazios. Uns copos de metal sem coloração dependurados numa bancadinha
acima do lavatório, davam certa frigidez ao ambiente, somando-se ao clima
austero da organização.
Lucien buscava de onde vinha o cheiro de bolo... acima da
mesa, feita de uma só peça de tábua crua, dormitavam alguns talheres e outros
objetos usuais de cozinha. Com a lareira apagada, o ambiente era tão frio quanto
o lado de fora, tendo apenas como diferença, a trégua da neve sobre os ombros e
cabelos, enfeitiçando os pensamentos do menino.
Seus olhos famintos de calor vagueavam em busca de algo
semelhante ao cheiro gostoso que pairava naquele ar friento, percorriam o
ambiente sem muita atenção nas paredes sólidas de pedra lixada; Lucien nem
percebia que o chão também era feito de pedra e que diferente da sala ao lado, não
havia nenhum tapete de lã deitado ao soalho. Nem percebia a contagem das
cadeiras rodeando a mesa... pelas contas dos assentos, talvez ali morasse uma família
de muitas pessoas.
Assim que o imediatismo dos olhos de Lucien fincou-se num
embrulhinho sobre um cantinho tão austero daquela mesa sem tecido cobrindo os
afagos do tempo sobre sua superfície, as mãos cheias de calos e atormentadas do
menino lançaram-se em direção do que achara que fosse a tão esperada refeição
em três dias. Assim que Lucien alcançou o embrulho e o desbaratou, seus olhos
choraram de alegria através do estomago.
Quando estava a mais ou menos um quarto do bolo degustado, o
garoto pousava relaxadamente os olhos pela superfície da mesa. Descobriam-se varias
marcas do tempo: uns cantinhos solapados pela fúria da escavação de uma faca...
outras partes havia uns rabiscos a carvão... e suas mãozinhas cheias de calos
acariciavam aquela superfície dura e tão calejada. Tanto tempo sem carinho que
aquele gesto na superfície áspera lhe conferia uma lembrança de algo bom...
Ao satisfazer a fome urgente, Lucien embrulhou o que ainda
havia para degustar, e se foi pelo mesmo caminho que adentrara. Entretanto, num
cantinho da outra sala ouviu finalmente um pequeno gemido... um soluço... um
choro de criança. Era uma criança menor do que ele com os olhos inchados e
doloridos de tanto lamentar às escondidas. Uma menina tão abandonada feito ele,
com a diferença que ela estava encurralada sob um teto onde as pessoas
abertamente faziam-na o que Lucien sofria nas ruas.
Ambos se reconheceram através do olhar: um tão selvagem e
livre, o outro perdido e assustado... Daí Lucien percebeu onde estava... era o
abrigo onde o abade da aldeia tomava conta dos órfãos! Quando o garoto chegou
mais perto viu no braço da menina, marcas do castigo... (talvez durante o dia a
mesma criança também quisesse um pedaço do bolo em horário impróprio, e por desobediência,
sofrera as palmatórias).
Ficaram ali parados, inertes no lago profundo dos olhos um do
outro. Lucien desembrulhou o que havia ainda da guloseima, partiu um bom pedaço
e ofereceu à menininha, esta num gesto quase autômato segurou-o entre as mãos. Seus
olhos sorriram, e Lucien estendeu-lhe a mão; e se foram, indo ambos encarar o
silencio e solidão das ruas, que embora fria e escura, a Vida lá fora oferecia algo
mais convidativo que nunca haveria para eles naquele abrigo: a liberdade.
Katiuscia de Sá
22 de março de 2013
Às 23:45h
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