“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 23 de março de 2013

Vigília...



Então lá estava Lucien, tão absorto e desqualificado quanto um pinto jogado numa poça de lama... e o pior de tudo: sozinho! Havia dias que vagava pelas ruas (sempre às madrugadas, pois tinha receios de encontrar os outros garotos mais velhos e sofrer represálias à toa...). Foi numa dessas madrugadas que percorrendo uma das ruas da praça central, encontrou uma janela aberta e convidativa. Talvez o dono a esquecera sem o trinco e o braço do vento incumbiu-se de abri-la para Lucien vasculhar com suas vistas o que havia de comer por ali ao alcance das mãos. Era o descuidado Destino brincando mais uma vez de salva-vidas ao garoto.

A noite estava fria e densa, com muita neve sendo espalhada pela ventania. Mal se podia ver a silhueta das coisas, mas a baixa luz que vinha de dentro do aposento trazia esperança a um coração precocemente danificado pelas injustiças da vida. A rua era o único amigo de Lucien naquelas alturas. E o que viesse era lucro...

Com os pés congelando de frio, já nem os sentia direito. Foi quase instintivo que o garoto se libertara do manto sujo e cheio de neve bem de baixo da janela; quando num piscar de olhos já estava dentro do aposento. Havia um cheiro de bolo. A urgência da fome fez com que o menino descuidasse de escutar se havia alguém acordado, ou por perto. Foi certeiro rumo à cozinha.

O ambiente silencioso e rústico era dominado por um enorme fogão a lenha. Ao lado deste um estoque de madeiras cruas cortadinhas e amontoadas, aguardando sua vez de morrerem para alucinarem o fogo que cozinhava os alimentos daquela casa repleta de espaços vazios. Uns copos de metal  sem coloração dependurados numa bancadinha acima do lavatório, davam certa frigidez ao ambiente, somando-se ao clima austero da organização.

Lucien buscava de onde vinha o cheiro de bolo... acima da mesa, feita de uma só peça de tábua crua, dormitavam alguns talheres e outros objetos usuais de cozinha. Com a lareira apagada, o ambiente era tão frio quanto o lado de fora, tendo apenas como diferença, a trégua da neve sobre os ombros e cabelos, enfeitiçando os pensamentos do menino.

Seus olhos famintos de calor vagueavam em busca de algo semelhante ao cheiro gostoso que pairava naquele ar friento, percorriam o ambiente sem muita atenção nas paredes sólidas de pedra lixada; Lucien nem percebia que o chão também era feito de pedra e que diferente da sala ao lado, não havia nenhum tapete de lã deitado ao soalho. Nem percebia a contagem das cadeiras rodeando a mesa... pelas contas dos assentos, talvez ali morasse uma família de muitas pessoas.

Assim que o imediatismo dos olhos de Lucien fincou-se num embrulhinho sobre um cantinho tão austero daquela mesa sem tecido cobrindo os afagos do tempo sobre sua superfície, as mãos cheias de calos e atormentadas do menino lançaram-se em direção do que achara que fosse a tão esperada refeição em três dias. Assim que Lucien alcançou o embrulho e o desbaratou, seus olhos choraram de alegria através do estomago.

Quando estava a mais ou menos um quarto do bolo degustado, o garoto pousava relaxadamente os olhos pela superfície da mesa. Descobriam-se varias marcas do tempo: uns cantinhos solapados pela fúria da escavação de uma faca... outras partes havia uns rabiscos a carvão... e suas mãozinhas cheias de calos acariciavam aquela superfície dura e tão calejada. Tanto tempo sem carinho que aquele gesto na superfície áspera lhe conferia uma lembrança de algo bom...

Ao satisfazer a fome urgente, Lucien embrulhou o que ainda havia para degustar, e se foi pelo mesmo caminho que adentrara. Entretanto, num cantinho da outra sala ouviu finalmente um pequeno gemido... um soluço... um choro de criança. Era uma criança menor do que ele com os olhos inchados e doloridos de tanto lamentar às escondidas. Uma menina tão abandonada feito ele, com a diferença que ela estava encurralada sob um teto onde as pessoas abertamente faziam-na o que Lucien sofria nas ruas.

Ambos se reconheceram através do olhar: um tão selvagem e livre, o outro perdido e assustado... Daí Lucien percebeu onde estava... era o abrigo onde o abade da aldeia tomava conta dos órfãos! Quando o garoto chegou mais perto viu no braço da menina, marcas do castigo... (talvez durante o dia a mesma criança também quisesse um pedaço do bolo em horário impróprio, e por desobediência, sofrera as palmatórias).

Ficaram ali parados, inertes no lago profundo dos olhos um do outro. Lucien desembrulhou o que havia ainda da guloseima, partiu um bom pedaço e ofereceu à menininha, esta num gesto quase autômato segurou-o entre as mãos. Seus olhos sorriram, e Lucien estendeu-lhe a mão; e se foram, indo ambos encarar o silencio e solidão das ruas, que embora fria e escura, a Vida lá fora oferecia algo mais convidativo que nunca haveria para eles naquele abrigo: a liberdade.


Katiuscia de Sá
22 de março de 2013
Às 23:45h 

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