“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

segunda-feira, 25 de março de 2013

CONVERSAS DE MULHERES #1: o homem dos sonhos (crônica)



Estavam as duas acomodadas desacomodadamente remexendo as pernas, os troncos, jogando os cabelos de um lado a outro, nervosamente chupando os canudinhos de suas bebidas, retumbando os braços em posições frenéticas sem perderem a compostura; faziam uns malabarismos corporais, equilibrando-se em cima de uma cadeira alta de assento minúsculo na beira do bar. Ambiente muito sofisticado, com iluminação rotunda e fresca, paredes pretas e outras espelhadas e prateadas, ambiente refrigerado, drinks coloridos e transparentes, música incidente e provocativa, poltronas zebradas bem mais ao fundo (no escurinho), luz néon, abajus cor de carne... Pessoas educadamente gesticulando como se nadassem a dez metros abaixo d’água. Tudo muito organizado e nas rédeas do bom comportamento social aceitável. Nos olhos de ambas as moças, entretanto, o fogo inquieto da indignação!

– Mas Cacilda, eu não acredito nisso... o cara nunca aparece em publico com a mulher!

– Será que ela deve ter galhos tão grandes que nem tem forças para erguer a cabeça para ter o equilíbrio mínimo, e caminhar fora de casa com o marido?...

– Hahaha! Não tem graça, amiga! Eu aqui me descabelando por causa daquele sem-vergonha, que me canta a morrer, e no entanto fica esfregando na minha cara aquela aliança como se fosse um escudo ou camisa de força para ele mesmo se dar um motivo plausível para não ser devasso!

– ‘Devasso’  para ele é pouco! Acredito que com aquela carinha de santo dele, já comeu a maioria da mulherada da sua repartição!

– Pois é, imagina! E agora ele está todo ‘fofinho’ para cima de mim, que só pedi para levar à sala do chefe umas papeladas...

– Amiga, convenhamos, até que ele dá pra passar uma chuva... né querida? Diz que não!

Mariana dava umas piscadelas e uns tapinhas no ombro da outra, para atiçar mais ainda a amiga.

– Ei garçom, por favor... traga-nos dois drinques nº54 do cardápio... com bastante gelo.

– Pra mim, sem gelo, por favor...

E o garçom indiferente à conversa de ambas recolhe o cardápio de bebidas. Por detrás dele, sem maiores esforços, avistava-se o outro lado do balcão que dava uma graciosa curva de trinta graus à esquerda, indo parar na parte mais escura do pub.

– Mas sim Mariana, eu não lhe disse que a mesa do dito-cujo fica na quina da minha, então toda vez que ele passa em direção à máquina de Xerox ele esbarra na minha mesa e faz cair algo de proposito, só pra puxar assunto?

– Aproveita, amiga! Deixa de ser boba... se tá brotando um girassol com cara de flor de jerimum-de-rato, pelo menos a flor do mato é bonita... ahahaha.

– Credo Mariana! Você tem uns ditados estranhos que eu nunca ouvi!

– Minha avó que dizia isso, Cacilda! Ela morava no interior da Capital... bem pra lá da fronteira com Mato Grosso do Norte.

Ambas já afogadas em seus drinques, com os olhares esfumaçados e languidos passeando pelo ambiente.

– Sabe Mariana, eu só não arrisco nada com esse cara, porque além dele ser casado... ele não leva às festas da repartição, a esposa. E se começamos algum romance, como vai ser sem saber como é minha futura ex-possivel adversária? Vai que eu me apaixone pelo cara? Com que armas eu vou competir com a esposa-fantasma dele, se ela nunca está nos eventos?

– É... aí a coisa complica... Talvez, de repente ele nem tenha esposa. Aquela aliança é só um disfarce pra ele galinhar mais e não se prender a mulher alguma. Que safado... Mas você não precisa se apaixonar pelo cara pra poder dar umas mordidinhas no churros dele, besta!

– Aí, Mariana! Que coisa vulgar...

– Vulgar, nada! Todo mundo sabe que homem-paquerador só pensa nisso mesmo! Eles nos chegam com aquela educação toda, e tal... e com aquela conversa mole e macia, nos deixam enfeitiçadas com aquelas coisinhas que a maioria dos homens de hoje não fazem mais...

– O quê os homens não fazem mais?

– Ora: puxar a cadeira pra gente sentar no restaurante; abrir a porta do carro; mandar mensagem pro celular dizendo que estavam pensando na gente... coisas desse tipo, amiga! Só pensando no momento em que eles vão lambuzar o churros deles no nosso doce de leite!!!!

– Mariana, você me assusta. Você é tão...

– Prática, querida! Prática e realista! No fundo a gente sabe que relação na cabeça masculina se resume a uma única palavra: sexo!

– Ah! Eu quero mais... eu desejo romance.

– Romance? Cai na real Cacilda... ‘romance’ na cabeça dos homens é poder transar ouvindo um clássico brega dos Scorpions.

Enquanto as mulheres faziam suas conjecturas, na quina do balcão – lá no escurinho – dois homens jogavam olhares em sua direção, sem saberem exatamente, entretanto, se estavam sendo correspondidos pelas mulheres já meio altas.

– Ah, Mariana eu queria tanto encontrar o homem dos meus sonhos. Será pedir muito?

– Querida, eu aprendi que o ‘homem dos sonhos’ de uma mulher é como o papel higiênico.

– Papel higiênico?

– Sim: frágil e sem consistência; que não dá pra manter nas mãos por muito tempo porque esfarela por qualquer coisinha, e que nunca tem o tamanho especificado na embalagem.

– Depois dessa pérola Mariana, eu acho que tá na hora de ir pra casa. Ó garçom... traga a conta, meu filho... por hoje já deu.

Mariana e Cacilda atravessavam em passos trançados, sincronizados com o jogar de cabelos de um lado a outro. Uma ajeitando o sutiã que teimava gritar decote fora da camiseta; a outra verificando se o batom estava realmente dentro da bolsa. Passaram pelos homens no lado escurinho do balcão sem ao menos notarem seu interesse. Um deles tinha nas mãos um bilhetinho endereçado à Cacilda, escrito num rasguinho de papel higiênico.


Katiuscia de Sá
25 de março de 2013, às 20:38h.
*ouvindo ‘Sadeness’ – Enigma


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