“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 21 de julho de 2012

MARFIM – conto [CAPITULO COMENTADO]

Cap. 02 – O Sonho.
[CAPITULO COMENTADO]


É engraçado como algumas lembranças marcam a gente para sempre, não importa o que se passe ou o que se veja no decorrer da vida. Carrego em mim inúmeras lembranças de impressões diversas, sobretudo de minha infância, que parece ter sido a parte mais intensa que eu vivi, pois muita coisa desse período ainda pulsa bem forte dentro de mim servindo como ingredientes para trama de meus escritos (e personagens para roteiros de filmes e/ou inspiração para composição de personagens de meu trabalho como atriz).



Recordo que eu era uma criança bem agitada, saltitante, curiosa, observadora, atrevida... em casa porém, eu era muito calada! Essa característica incomodava, sobretudo, meu pai. Meu silencio era estratégico, já que meus pais biológicos nunca compreendiam meus raciocínios, então nem me dava ao trabalho de dividi-los... Com meus avós era diferente. Conversava bastante com eles sobre minhas ideias e impressões sobre as coisas, sentia-me a vontade.



Tenho um arsenal de personagens e situações de toda espécie dessa época de infância. Coisas que eu vi; situações que eu tirei minhas conclusões; expressões marcantes de pessoas; jeitos de falar; maneiras de andar; trejeitos; manias; etc. Eu já era uma pequena voyeur a observar o mundo, com minha mente cheia de pequenas lembranças aguardando o momento para virem à tona no futuro... Claro que dialogo com meu presente, mesclo porém, muita coisa que vivi na época de minha tenra infância, como por exemplo, essa passagem inteira narrativa-descritiva do encontro de “Macaléu-Camaleão” com a senhora cega.



No conto fictício MARFIM, “Macaléu” engana-se de endereço indo parar numa outra casa que não era a de seu amigo; e nesta residência ele se depara com um ambiente meio estranho à sua leitura de mundo. As impressões de “Macaléu-Camaleão” no conto são exatamente as minhas em meus idos três aninhos de idade, quando meu pai biológico levou minha genitora, meu irmão e eu em visita a uma tia dele que se chamava Deusa. Eu já achava aquele nome inusitado, “como uma mulher se chamava Deusa?”, pensava eu aos três anos de idade...



Mas aquela visita foi tão marcante para mim que a carreguei durante todos esses anos até que ela fluiu para o conto MARFIM. Dessa visita à casa de minha tia-avó Deusa, primeiro fiquei surpresa com aqueles retratos todos espalhados pela sala e pelas paredes do corredor; depois com aquelas luzes coloridas pelos aposentos, e eu pensei exatamente a mesmíssima frase que transcrevi para “Macaléu” em seu pequenino desalinho: “Mas não é Natal ainda... Por que será que usam lâmpada colorida nessa casa?”.



Na ocasião, eu senti na verdade um misto de encantamento e curiosidade; àquele momento fui deixada sentada numa poltrona à sala onde pude examinar tudo bem de pertinho longe das vistas e censura dos adultos. Sai percorrendo a casa toda em silencio sem chamar atenção para mim, senão iriam me colocar novamente sentada feito bibelô à poltrona esquecida... E de todas as fotografias, um dos retratos me chamou mais atenção que os demais, justamente o que eu destaco no conto MARFIM, a de um casal de velhos, naquelas fotos pintadas de um colorido estranho em cima de um suporte parecido com uma fina camada de gesso, sei lá! As cores artificiais fugindo a verossimilhança nas faces e nas vestes davam um aspecto sobrenatural à foto, parecia que a qualquer hora os velhos iam saltar fora da moldura pra cima do espectador.



Outra passagem marcante dessa visita à casa de tia-avó Deusa foi o momento quando meu irmão e eu fomos levados à presença dela. Foi a primeira vez que eu vi uma pessoa cega na minha vida. Fiquei muito impressionada ao mirar aqueles olhos enevoados evaporando-se para direção alguma. Ela quis “ver” meu mano e eu nos apalpando com suas mãos trêmulas e frágeis. Meu mano que sempre foi medroso e chorão ficou meio amofinado com a situação; eu não. Fiquei observando-a bem séria e atentamente, sem deixar escapar nenhum detalhe, sensação ou emoção adicional, como se eu tivesse sugando a própria alma de tia Deusa e daquele ambiente para dentro de minha memória. Também transcrevi para o conto a frase que tia Deusa disse de mim e meu irmão: “são bonitos...”, no caso de “Macaléu”, a frase ficou no singular, mas as palavras são de tia Deusa, agora eternizadas no conto MARFIM.



Passados muitos anos desde a casa de tia Deusa, da ultima visita que fiz a meu genitor, (quase dez anos atrás), logo após a morte de meu avô, eu mencionei esse acontecimento, e meu pai ficou extremamente surpreso pelo fato de eu lembrar desse dia, pois eu tinha apenas três anos de idade. Eu respondi a ele que me lembrava de tudo muito nitidamente, como se fosse ontem; e que podia descrever toda a casa, os objetos, móveis e tudo mais que eu tinha visto, tal como transcrevi no conto MARFIM.



Herdei de meu avô essa capacidade e costume de observar, absorver o espaço e descrevê-lo em palavras. Vovô era incrível! Lembro-me que ele podia passar horas para dentro de si narrando um sonho que tivera no sono da tarde ou durante a noite, ou um acontecimento corriqueiro que lhe chamara atenção. Era tão real e rico em detalhes que parecia que o ouvinte era transportado para dentro da cabeça dele.


Para um escritor a capacidade de inventar uma história atrela-se às lembranças de qualquer acontecimento, emoção, etc... que ele tivera; e sim, conhece-se um pouco da própria história e personalidade do escritor através do quê (e como) ele escreve. Uma vez um cineasta e escritor local (Cecim), disse-me que o escritor pode escrever inúmeros romances, novelas, contos, etc. mas que na verdade ele escreve apenas uma única obra em toda sua vida, pois todos os livros são linhas que se entrelaçam nessas variadas subséries de modalidade escrita. Eu acredito nisso.

Se eu não explicar de onde vem a inspiração para o que eu escrevo, ninguém saberá que são lembranças, situações que eu vi e/ou vivi em alguma passagem de minha vida, que apenas estão sendo narradas com riqueza de poesia e ludicidade (e muita gente já me perguntou na cara dura se eu me drogo pra escrever essas coisas... não! não uso drogas, nunca usei. Nem bebo bebida alcoólica de nenhuma especie, pois não curto essas coisas. Tudo que escrevo é de cara limpa mesmo!). Para os leitores não passa de ficção, para mim são lembranças resultadas de meu comportamento voyeur. Sou uma observadora da vida. Assisto, e absorvo; sugo “a alma das coisas, cuspindo fora o bagaço...”, tal como “Vigiliana-Amaflor”...


Katiuscia de Sá
20 de julho de 2012.
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>>A seguir parte do capítulo comentado, onde eu narro o encontro de "Macaléu-Camaleão" com a senhora cega:


"Macaléu-Camaleão" e "Vigiliana-Amaflor"
(desenhos e criação: Katiuscia de Sá)


MARFIM – conto (escrito em 2009).
Capítulo 02 – O Sonho. [TRECHO]



“O passar dos dias o aborrecia. Para escapar daquela inquietação inventou um passeio à casa de um amigo, indo parar na esquina da Rua do Intervalo. Camaleão perdera-se, como sempre... “irei chegar atrasado...”, pensava, ajeitando os óculos em cima das narinas ofegantes. Devido ao entardecer dos acontecimentos, a estreita rua afundava-se em pontos escuros, e Macaléu que já não enxergava direito, achou que aquela era a rua do endereço amigo. Avistou a casa 47-B. “É aqui sim!”, confirmou de si para si, já que a viela estava vazia de mais alguém. “Vou bater...”. Não ouviu sinal de vida. “Ôh, de casa!”, insistia.



A maçaneta de leão-machado contendo um trocinho de bater na porta virou-se em seu eixo. A tábua grossa rangeu os dentes ao convidado: “nhéééém...”. Uma menina pretinha de olhos brancos com um pontinho de esmeralda dentro apareceu quase como um espectro fantástico. “Acho que a vovó está esperando o senhor”, sussurrou docemente a voz infantil e meiga daquele rosto sem sentimentos. “Entre e sente. Vou chamá-la...”, enfiou-se corredor de madeira adentro, a passos de carreira.

“Será que é mesmo aqui que eu deveria estar?”, estranhava o moço-peninsular. “Será que me enganei de endereço?”, Macaléu examinava as tábuas caprichosamente enceradas que emprestavam um tom avermelhado ao soalho. Acanhadas aos cantos da sala, as paredes de madeira-crua macheada confeitavam ao ambiente algo natural que só era quebrado pelas luminárias azuis. Umas grandes lâmpadas redondas e azuis faziam parecer que a sala-de-estar era um mundo submarino. O ar rarefeito ficava lento dentro daquele cômodo. “Mas não é Natal ainda... Por que será que usam lâmpada colorida nessa casa?”, Macaléu tentava solucionar o fato.



As órbitas curiosas dele examinavam tudo! As estantes negro-cedro pesavam suas prateleiras com delicados paninhos de croché e outros panos meticulosamente bordadinhos. Em cima destes, um monte de retratos de família. Retratos outros acamaradavam amizade às paredes. O fascínio era tanto que Macaléu teve o ímpeto de levantar-se do assento estofado-rubro. Fora contemplar de perto um retrato que parecia ser o mais antigo daquela coleção.



A moldura oval com as cores descascadas colocava a salvo a foto de um casal de velhos. Pareciam dois bonecos de cera. Pelo terno azul-bebê dele, e pelo vestido branco com broche madrepérola dela, talvez fossem gente em meados de 1929. Ela, uma senhora de faces duras, provavelmente a governanta da própria casa. Suas mãos fortes e alinhadas ao encosto da cadeira onde o homem prostrava-se sentado, acusavam ser eles os patriarcas de uma família de pelo menos doze filhos: onze varões e uma menina-moça.



As maçãs do rosto ósseo e fino esculpiam um semblante senhoril ao homem velho. As linhas e vincos profundos de sua face revelavam a dureza e dignidade com que sustentara sua família. Seus grandes olhos profundos e enigmaticamente úmidos e solares lembravam os grandes olhos que Macaléu sonhara dias atrás. “A vovó pediu pra o senhor subir ao quarto dela porque ela está meio ruim das pernas e não pode descer as escadas...”, parecia que a voz metralhada da criança pretinha trouxera Camaleão de volta de um túnel. E ao se despedir do casal de velhos da foto carcomida, notou que eles sorriam.



Às paredes esquerdas daquele comprido corredor continuava o festival de retratos dependurados. E a cada intervalo de dez tábuas, saltavam janelas abertas na parede direita de quem se enfiava residência adentro. Em todas as janelas abertas uns vasinhos contendo plantas diversas domesticavam as batentes. Já era noite lá fora. E a casa inteira pareceu adormecer em ares frientos. Às vezes morcegos precipitavam-se para dentro, repelindo-se imediatamente devido à luz amarela que esquentava aquele corredor de vida artificial.



Ao chegar ao andar de cima, Macaléu-Camaleão assustou-se com os grandes tapetes de pano a cada pé-de-porta dos quartos. Notava-se que ali morava gente de muito capricho. As paredes do andar superior eram nuas, retornando a sobriedade dos pensamentos. Eram tábuas cruas também, porém sem janelas a revelar.



No último quarto estava uma senhora sentada à cama. A luminária do ambiente era cor de outono. O cômodo quente e oprimido por um guarda-roupa simples, dividia espaço com uma cômoda compacta sem nada em cima, e um criado-mudo comportado, o que lhe permitia a regalia de ter sobre si um paninho de croché. A colcha da cama também era tecida, mas de fio grosso. Tudo dava a impressão de que o ar ficava sempre parado naquele lugar. Nada se movimentava. Os ponteiros do relógio fizeram-se assombrosos como aspectos de museu.



Os ossos sobrepostos de peles morenas de maracujá moviam-se lentamente, buscando segurar algo no espaço. “Traga-o aqui perto...”, abanavam as mãos trêmulas à menina pretinha que poderia estar a qualquer canto do quarto, que mesmo assim seria ignorada pela senhora. “Aqui está ele, vovó...”, empurrava as mãozinhas nas costas de Camaleão em direção à senhora de pedra-pome.
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Ela o apalpava os braços e o rosto, precisando seu semblante. “É bonito...”, confirmava a velha aos seus sentidos. Os olhos da senhora de pedra-pome já não tinham mais o lume. O vapor do tempo levou embora a visão dela deixando-lhe apenas a vontade de viver no escuro”.



Leia o conto MARFIM na íntegra em:

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