Para meus avós: Benedito
Benício de Sá e Raimunda Ferreira de Sá
(in memoriam)
(in memoriam)
Acho que aos meus doze ou treze anos nos mudamos para uma
outra casa. Era mais ampla, de dois andares, e o quintal era bastante vasto,
ambas as casas ao lado da nossa estavam demolidas, então os terrenos somavam-se
ao da nossa casa. O quintal era um matagal só. Bem ao fundo havia um campinho
de futebol, ninguém usava porque o terreno era bem cercado. Mais ao fundo havia
um pequenino bosque, com uma arvore velha e medonha bem no centro, com seus
cipós escorrendo por entre os galhos, e sua copa cobrindo todo rastro de sol
que pudesse alcançar o solo. Na minha imaginação de criança, ali era o meu
refúgio, quando meus pais brigavam; eu sumia e me escondia no meio do mato, as
picadas de inseto eram menos dolorosas do que vê-los aos berros e se machucando
mutuamente.
Adorava meus momentos de solidão. Observava a natureza bem
de pertinho; via os insetos voando pelo espaço lutando com os pontinhos de
poeira inerentes à natureza... aqueles que flutuam e causam beleza na
contra-luz. A disciplina das formigas recolhendo alimentos para as tocas... os
gafanhotos, as cigarras agarradas ao tronco da árvore medonha zunindo atraindo
a noite... os gafanhotos verdinhos disfarçados de folhas... e os mosquitos me
ferrando, aumentando minha alergia.
Gostava de ficar sozinha, olhando o céu de tardinha ouvindo
piar um pequeno falcão que voava as redondezas desesperando as galinhas que
eram criadas no quintal de casa. Quando uma soltava aqueles ataques galináceos de
pavor com seus “pópopopo-ró!” eu já sabia do que se tratava... ia até o quintal
e ficava sentada num pedaço de tronco caído, para as galinhas me verem ali e
sentirem-se mais seguras. Eu olhava para o alto e via o falcãozinho. Às vezes
ele aterrissava bem no alto daquela árvore tenebrosa e ficava. Nunca machucou nenhuma
delas.
Uma vez em viagem à Algodoal, meu avô me trouxe de presente
uma franguinha. Ela era diferente de todas as galinhas que eu tinha visto. Dei-lhe
o nome de ‘Pretinha’. Suas penas eram negras com as pontas brancas, toda sua
plumagem era convexa... parecia que Pretinha estava o tempo todo arrepiada. Seus
olhos sempre arregalados de um vermelho intenso; parece que nunca piscavam. Pretinha
era melhor cão-de-guarda do que qualquer outro animal. Não podia passar nada
para o quintal que a bicha voava e estraçalhava. Tinha um temperamento de fera
bestial! Apenas comigo Pretinha era mansinha, mansinha. Adorava essa galinha...
acho que foi a única que morreu de velha e pelada. As outras minha mãe as
matava e cozinhava. Eu não as comia. Tinha febres emocionais, ficava deprimida
e chorava semanas com aqueles assassinatos em massa...
Às vezes vôzinho ia nos ver. Ele sempre nos trazia algum
mimo. Vovó nunca foi nos visitar devido sua doença que a impossibilitava de
andar muitos quilômetros. Era raro meu pai me deixar sair de casa para visitá-la.
Sentia-me tão isolada. Foi nesse período que comecei a desenhar, e ficar mais e
mais melancólica. Minha alma de artista estava brotando daquelas horas de
solidão enfiada no matagal de minha infância.
Gosto de estar só com meus pensamentos. Gosto de mergulhar
em mim e lembrar-me dessas coisas que me nutriram a imaginação e a
sensibilidade inteligível de penetrar nas coisas e ambientes. Adoro lembrar-me
de meus avós; suas presenças são tão fortes em mim até hoje. Meus doze e treze
anos foram meu Alvorecer. E aquela casa grande que me deixava esconder de meus
pais e me isolar deliberadamente de meu irmão, foi para mim como um casulo.
Às vezes eu também passava as tardes em silencio dependurada
na janela do quarto olhando a luz do dia testemunhar a noite que vinha e cobria
tudo com seu manto de veludo afogado de sapinhos dizendo uns aos outros: ‘fui...
fui... fui’. Ficavam eu e meus periquitinhos australianos à janela, um dos
muitos mimos que vôzinho me deu. Parece que ele sabia de minha solidão e sempre
me trazia algo para colorir esse abismo. Normalmente eram bichinhos de
estimação ou algum brinquedinho para meu irmão e eu brincarmos juntos. Dessa
vez foram os periquitos. Eles presos na gaiola, e eu aos meus pensamentos.
Agora parece tudo um sonho longínquo, desses que se lê em
romances do século XIX... parece outra garota que não eu, alguém que eu nunca
tivesse sido. Apenas uma lembrança para escrever um livro algum dia.
Agora o lago está bem calmo, o vento desliza sobre a superfície
e desenha contornos suaves... faz refletir o que a luz deixa ver.
Katiuscia de Sá
08/12/2012
00:10h
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