“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 8 de dezembro de 2012

Alvorecer


Para meus avós: Benedito Benício de Sá e Raimunda Ferreira de Sá
(in memoriam)


Acho que aos meus doze ou treze anos nos mudamos para uma outra casa. Era mais ampla, de dois andares, e o quintal era bastante vasto, ambas as casas ao lado da nossa estavam demolidas, então os terrenos somavam-se ao da nossa casa. O quintal era um matagal só. Bem ao fundo havia um campinho de futebol, ninguém usava porque o terreno era bem cercado. Mais ao fundo havia um pequenino bosque, com uma arvore velha e medonha bem no centro, com seus cipós escorrendo por entre os galhos, e sua copa cobrindo todo rastro de sol que pudesse alcançar o solo. Na minha imaginação de criança, ali era o meu refúgio, quando meus pais brigavam; eu sumia e me escondia no meio do mato, as picadas de inseto eram menos dolorosas do que vê-los aos berros e se machucando mutuamente.

Adorava meus momentos de solidão. Observava a natureza bem de pertinho; via os insetos voando pelo espaço lutando com os pontinhos de poeira inerentes à natureza... aqueles que flutuam e causam beleza na contra-luz. A disciplina das formigas recolhendo alimentos para as tocas... os gafanhotos, as cigarras agarradas ao tronco da árvore medonha zunindo atraindo a noite... os gafanhotos verdinhos disfarçados de folhas... e os mosquitos me ferrando, aumentando minha alergia.

Gostava de ficar sozinha, olhando o céu de tardinha ouvindo piar um pequeno falcão que voava as redondezas desesperando as galinhas que eram criadas no quintal de casa. Quando uma soltava aqueles ataques galináceos de pavor com seus “pópopopo-ró!” eu já sabia do que se tratava... ia até o quintal e ficava sentada num pedaço de tronco caído, para as galinhas me verem ali e sentirem-se mais seguras. Eu olhava para o alto e via o falcãozinho. Às vezes ele aterrissava bem no alto daquela árvore tenebrosa e ficava. Nunca machucou nenhuma delas.

Uma vez em viagem à Algodoal, meu avô me trouxe de presente uma franguinha. Ela era diferente de todas as galinhas que eu tinha visto. Dei-lhe o nome de ‘Pretinha’. Suas penas eram negras com as pontas brancas, toda sua plumagem era convexa... parecia que Pretinha estava o tempo todo arrepiada. Seus olhos sempre arregalados de um vermelho intenso; parece que nunca piscavam. Pretinha era melhor cão-de-guarda do que qualquer outro animal. Não podia passar nada para o quintal que a bicha voava e estraçalhava. Tinha um temperamento de fera bestial! Apenas comigo Pretinha era mansinha, mansinha. Adorava essa galinha... acho que foi a única que morreu de velha e pelada. As outras minha mãe as matava e cozinhava. Eu não as comia. Tinha febres emocionais, ficava deprimida e chorava semanas com aqueles assassinatos em massa...

Às vezes vôzinho ia nos ver. Ele sempre nos trazia algum mimo. Vovó nunca foi nos visitar devido sua doença que a impossibilitava de andar muitos quilômetros. Era raro meu pai me deixar sair de casa para visitá-la. Sentia-me tão isolada. Foi nesse período que comecei a desenhar, e ficar mais e mais melancólica. Minha alma de artista estava brotando daquelas horas de solidão enfiada no matagal de minha infância.

Gosto de estar só com meus pensamentos. Gosto de mergulhar em mim e lembrar-me dessas coisas que me nutriram a imaginação e a sensibilidade inteligível de penetrar nas coisas e ambientes. Adoro lembrar-me de meus avós; suas presenças são tão fortes em mim até hoje. Meus doze e treze anos foram meu Alvorecer. E aquela casa grande que me deixava esconder de meus pais e me isolar deliberadamente de meu irmão, foi para mim como um casulo.

Às vezes eu também passava as tardes em silencio dependurada na janela do quarto olhando a luz do dia testemunhar a noite que vinha e cobria tudo com seu manto de veludo afogado de sapinhos dizendo uns aos outros: ‘fui... fui... fui’. Ficavam eu e meus periquitinhos australianos à janela, um dos muitos mimos que vôzinho me deu. Parece que ele sabia de minha solidão e sempre me trazia algo para colorir esse abismo. Normalmente eram bichinhos de estimação ou algum brinquedinho para meu irmão e eu brincarmos juntos. Dessa vez foram os periquitos. Eles presos na gaiola, e eu aos meus pensamentos.

Agora parece tudo um sonho longínquo, desses que se lê em romances do século XIX... parece outra garota que não eu, alguém que eu nunca tivesse sido. Apenas uma lembrança para escrever um livro algum dia.

Agora o lago está bem calmo, o vento desliza sobre a superfície e desenha contornos suaves... faz refletir o que a luz deixa ver.


Katiuscia de Sá
08/12/2012
00:10h

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