“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Para Edgar Allan Poe - I (conto)


No ultimo passo do degrau observou que havia uma barata estrebuchando no carpete. Suas perninhas em frenesi pelo incomodo das costas no chão. Era uma imagem deveras perturbadora. Isadora tinha nojo de baratas e também pena de matar o inseto. Deixou-a lá até o dia seguinte. Pela manhã passou pela escada e a viu no mesmo lugar e posição. Ainda mexia as perninhas, mas agora sem tantas aflições. “Ai meu Deus...”, pensava Isadora, tentando não se contaminar com aquela visão nervosa.

De noitinha retornou fadigada, fora um dia extenuante. A barata por fim terminou seu apocalíptico ritual de morte por asfixia e desespero... A vassoura e a pá de lixo concederam um funeral digno ao inseto. Ao seu lado Isadora sentia a mesma asfixia... era mais um de seus ataques buliçosos de asma. Quanta couraça ela tinha de vencer para encher seus pulmões...

Sentia-se como o inseto ao pé da escada, mas sem perninhas para sacudir e pedir por socorro. Imaginar um anzol perfurando o tórax era a melhor saída para mentalizar a entrada do ar. Ainda com a angustiante sufocação ao passo de dois minutos, Isadora ganhava cozinha adentro, viu a silhueta da tia, protegida pela penumbra decorrente do finalzinho da tarde.

Um cheiro estranho afogava o lugar. E Isadora assustou-se com a atitude da tia. A senhora estava a mastigar algo que imediatamente escondeu das vistas da sobrinha. E sobre a pia, estrangulou num saco plástico as ultimas evidencias. Isadora procurava nervosamente o interruptor. Quando a luz ganhou vida, os olhos da moça caíram sobre o mármore da pia. Uns pingos de sangue e uma faca banhada em rubro. E o rosto da tia num meio sorriso em transito, deixando escapar um fiozinho de saliva avermelhada.

“A senhora está bem, tia?”, perguntou Isadora, intrigada.
“Sim, minha filha....”, respondia languidamente a idosa mulher afastando-se devagarinho pela penumbra do corredor, levando consigo o saco acusador. Isadora vasculhando a cozinha observou que uma panela jazia em cima do fogão. E à medida que se aproximava do recipiente, o cheiro forte culminava mais e mais.

Antes de consumar a prova, Isadora fora distraída pelo gatinho de estimação ruminando um pedaço de osso, talvez... Mas no meio da cozinha essa mastigação? Isadora aproximou-se e viu: uma parte de tripas na boca do felino. Quase vomitou, mas conteve-se indo terminar na panela sobre o fogão.

Destampou o pequeno caldeirão e antes que viesse a emitir algum som apavorante, sua tia atravessou a cozinha com a mesma faca rubra nas mãos: “hoje teremos ensopado com carnes fresquinhas para o jantar...”


Autoria: Katiuscia de Sá
26 de agosto de 2011
08:01 PM
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*Leia também:
Para Edgar Allan Poe - II
Para Edgar Allan Poe - III
Para Edgar Allan Poe - IV

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