“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

terça-feira, 3 de maio de 2011

Vem...





I

Apaga-te.
O rio não está diante de ti
Como imaginas.
Há apenas o fosso
E a mesa inundada de papéis:
Cenjeturas lassas
Sobre a aspereza das palavras.

O rio não está diante de ti.
Está além. Viaja.

II

Finas farpas, vastas redes
Por que te fazes ausente, Loucura
Há tantos meses
E dás lugar à torpe lucidez
Ao nojo do existir
E do me ver morrer?

Por que me atiras
À desordem de ser
E à futilidade do mover-se?
Carpas crispadas
Na torçura das redes.
Por que te ausentas, amada
Se estou atado, permissivo e luzente
Ao corpo de teu corpo que é o lago?


III

Tranca-me. Teus ares de luta
Têm o corpo dos pátios devastados
Esses que se sonharam cordas
E por que não cadeados de volúpia?

Deita-me.
Laça-me os pés. Beija-me os passos
Para o cárcere da minha volta.
Sonha navios. Ocasos.
Sonha-me trancado. Teu.

IV

Há de viver um tempo, morte minha
Como se fosse o tempo do viver.
E carantonhas, fogos-fátuos, foices
Hão de reverdecer em azul e ocre
E banhado de luz volto a nascer.

Hás de viver um tempo, morte minha
Como se fosses noite apenas.
E haverá pássaros do dia
E nunca mais e nunca mais coiotes.

E nunca mais o sangue em nossos corpos
Só luz, entropia, e o riso deslavado
De não ser.


V

Aquiesce. Vem ver o barco.
Toca as velas de seda
E o opalino do casco:
O asco do adentrar-se na vertigem
Essa, onde navegas.

Toca teus verdes, esses
Que parecem amanhecer
E à noite são memórias
Descompasso, perdas.

Vem ver o barco
Carregoso de sombras de teus atos.
Vem ver o barco partir para morrer.
Aquiesce. Vem te ver.



HILST, Hilda. “ESTAR SENDO. TER SIDO”. 2° Ed. – São Paulo: Globo, 2006.
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