“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Saint Clair

Foto: laila setton


Tinhas olhos claros quando a entidade vinha-lhe. Um sorriso solto de muitos amigos. Fumava e bebia à vontade. Pela manhã esquecia-se de quem tinha sido. Afastava as cortinas como quem não queria nada da vida. Com o corpo ainda torpe, tomava seu café antes de ir ao trabalho. Atravessava meia cidade todos os dias, nenhum descanso...

Dentro do ônibus corria-lhe calafrios no pescoço; e em pouco tempo era tomado. Abandonava tudo em busca de bebida e cigarro. Seus olhos estavam claros novamente... o interior, um fogo em brasas.

Depois de saciado o desejo mundano, retomara suas rotinas. Ia e vinha do trabalho com a mesma franqueza de uma faca abatendo ao vivo o frango de seu almoço de domingo. Tudo certinho e sem gosto. Amanheceu novamente atuado. Ninguém lhe notava a diferença, a não ser aquela pequena criatura que lhe observava compassivamente. Chicório, seu cão de estimação, que vivia deitado ao canto do sofá à espera de um afago momentâneo, e um abrigo.

Um dia, o dono de Chicório aborreceu-se daquela vida miserável e quis experimentar o céu: atirou-se de um viaduto, percebeu com seu corpo que o céu era duro. Retornou à sua casa com menos três dentes trazendo a certeza de que o céu é para aqueles que enxergam além dos muros.

Katiuscia de Sá
02 de julho de 2010

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