“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A CERIMONIA (conto)



E como naquele País ninguém podia tomar qualquer bebida que fosse, sozinho, ambos tiveram que aceitar a cortesia um do outro. Com toda precisão e cortesia abriu a garrafa um deles. Com uma das mãos no corpo e a outra apertando e enroscando a rolha, a boca ficou livre; e cuidadosamente o liquido foi derramado no copo do outro. Beberam a primeira dose em silencio. Não se olhavam. Retinham a respiração de angustia e tensão. Dois rivais de aldeias diferentes (e inimigas), ironicamente em um pequeno tratado de paz. Estavam ambos ali um de frente para o outro pelas circunstancias de viagem e também subordinados às leis e à tradição das cerimonias.

A cada copo curvavam-se, porque a ocasião pedia os modos. Mas por dentro, a vontade que tinham era a de sacar suas espadas ou seus ferros para liquidarem um ao outro. Não podiam, porém, devido ao tratado de Paz estabelecido naquele pequeno território fronteiriço. A partir do terceiro copo, ambos já cambaleavam um pouquinho. Estavam muito cansados também devido à longa viagem que cada um foi submetido. E o trajeto ficava mais árduo em toda aquela região por causa do Inverno. O vento cortava a pele de quem ousasse atravessar àquelas estradas, e a energia dos forasteiros ainda era sugada pela atenção dispensada aos animais selvagens à espreita em torno dos viajantes que vinham a pé, o que era o caso deles; por isso o cansaço os vencia, domesticava a raiva.

Além daquele pequeno acordo forçado de paz, devido às convenções, o que segurava suas armas nas bainhas e seus punhais nas sacolas era o próprio local. Um recinto religioso que abrigava sacerdotes, alguns idosos, mulheres e seus filhos órfãos. Em período de guerra, essas cabanas sempre servem de acolhida aos necessitados. Entretanto, nem aqueles olhos salgados pelas lágrimas fazia-lhes amolecer o coração. Uma vez forjados para serem soldados, os homens endurecem permanentemente a alma.

Mantinham-se firmes nas cortesias mutuas. Mas a delicadeza aos poucos era derrotada a cada segundo pela força nas mãos, que já não eram as mesmas de antes dos três primeiros copos de bebida. Agora ambos treinavam o autocontrole dentro de si. O guerreiro antes adormecido pelo cansaço, era atiçado pela falta de juízo que a bebida fazia faiscar nos olhos. E as mãos de ambos queriam sacar e apertar suas espadas, fazê-las bailar pelo ar.

E num comum acordo os homens, vencidos pela bebida, olharam-se longamente. Seus rostos eram um fio de fogo. Ardiam a mesma vontade de duelarem. Consentiram e abandonaram-se a essa ideia. Então iniciaram o ritual para trazer a virgindade de volta aos ferros de suas espadas. Decidiram se encontrar brevemente passados dois dias, quando finalizado o “ritual das armas”.

Afastados, cada homem procurou um local isolado naquela redondeza. E ao pôr-do-sol, cuidadosamente lavaram suas espadas com as águas de um pequeno riacho que teimosamente ainda se mantinha correndo; e cada um abriu uma cova perto de uma árvore. Deixaram descansar suas espadas ao peso e quentura profunda da terra. No segundo amanhecer depois disso, suas espadas estariam prontas novamente para a luta.

À tardinha do segundo dia, lá estavam ambos novamente a se encararem. Um deles trazia uma vela rotunda juntamente com uma caixa de fósforos. Escolheram o local mais afastado possível e sem vento. Foi difícil, pois naquele inverno severo, onde até mesmo as arvores sem folhas se mexem, achar um local tranquilo era de igual desafio.

Encontraram uma pequena gruta, que ainda se mantinha úmida. A neve ignorava o seu interior, igualmente o vento não se atrevia entrar. Então ali, o homem com a vela iniciou os preparativos para o duelo. Encontrou uma pequena plataforma de pedra e assentou a vela acesa. Um de cada vez teria apenas uma chance. E assim procederam. O primeiro errou a pontaria. O segundo, porém, foi certeiro! Apagara a chama num golpe sem cortar o pavio. O soldado que perdeu o duelo, não acreditando, precipitou-se em direção à vela e a segurou atentamente. Estava realmente sem nenhum corte. Então, o homem deixou escorrer o sal de seu corpo através dos olhos. Após conter seu choro pela vergonha da derrota, ajoelhou-se humildemente, consentiu ser até o fim de sua vida o servo do guerreiro que o vencera no milenar duelo da vela.



Katiuscia de Sá
[17 de outubro de 2014, 22:24h]


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