“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

terça-feira, 4 de março de 2014

L. S. D. (conto)



Um sono nababesco abateu-se sobre ela. De repente suas pernas despencaram e seu tórax desejou o chão. Deitou-se com ele. Quase desmaiada, com a cabeça amortecida por um dos braços, apagou por completo; indo acordar em um lugar estranhamente decorado com peixes coloridos empalhados e espetados sobre alguns móveis nus.

Suas pernas então ganharam vida novamente. Contorceram-se em direção a uma porta entreaberta que enfeitava o lugar. Do lado de fora ela viu um céu escarlate, repleto de pedaços de leite flutuando como se fossem nuvens, porém liquidas e com sabor.

Não sabia tratar-se de realidade ou delírio. Sabia tratar-se de perdição, pois a partir do momento em que seus pés ganharam vida, eles a levaram para lugares nunca dantes imaginados. E este era um deles. Quando a garota se deu conta de si, já estava sobre uma ponte feita de madeira sobre um despenhadeiro profundo e inabitado. Apenas algumas aves com cara de chinelos habitavam os céus. Um deles voou bem perto do rosto dela, e até lhe soluçou um beijo.

Depois disso a garota acordou com alguns transeuntes a sua volta, estes a chamavam... mas, ela não reconhecia ninguém e nem que estava estirada na rua por conta de um baque (de carro, talvez). Sentia-se tonta e não associou aquele céu azul ao céu escarlate que dantes vira. Contudo, as aves com cara de chinelo ainda pairavam no ar.

E por conta de seus bicos emborrachados, eles dobravam-se para todos os lados. Um par de aves pousou perto, então a garota os calçou. Prontamente suas pernas ganharam movimento outra vez, levando-a para perto da praça que havia ali. Deixou suas roupas no lugar do seu corpo junto das pessoas que a socorriam.

E com as aves enfiadas nos seus pés, foi caminhando sem muito obedecer a sua própria vontade. Diante disso, um carneirinho dourado, de olhos bem negros com seu pelo bastante enroladinho, apareceu e pôs-se a berrar. Dizia o nome do caminho que as aves com cara de chinelos deveriam atravessar. Eles então deixaram a moça novamente estirada sob o chão.

E este chão já muito intimo dela, agarrou-a e envolveu-a com vários arranhados da queda. A garota ficou parecendo o céu escarlate que vira ainda pouco. Porém, sem as nuvens de leite a sobrevoar sobre si. Estava tão absorvida reconhecendo o gosto de sua própria pele, que mal escutava um transeunte que a recolhia do chão a lhe perguntar o nome...

Quando a moça pôde falar algo, balbuciou quase derretendo sua voz numa coalhada de gelos: “meu nome é Lavínia Silvana Doroteia”. E sua voz foi apagando-se com o passar dos ventos, indo dormir à beira de um jardinzinho que ali havia por perto.



Katiuscia de Sá
Escrito em: 27 de fevereiro e 04 de março/2014, às 20:57h.


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