“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 16 de junho de 2012

CAPÍTULO COMENTADO




Abaixo está parte do segundo capitulo de meu primeiro romance, CUIA D’ÁGUA, a história se passa na Belém do Pará do inicio do século passado. A inspiração desta historia me veio através do cotidiano de meu avô. Diariamente ele ia ao mercado do Ver-O-Peso (em Belém do Pará, a maior feira ao ar livre da América Latina). E eu quando criança observava essa atitude dele, e não compreendia porque vôzinho não fazia suas compras de uma vez só; ele ia religiosamente todos os dias à pedra do mercado comprar peixes.

Uma vez eu perguntei a ele porque ele fazia suas compras desse modo, pois eu achava mais cansativo ir todos os dias, e ele me respondeu que ele adorava o Ver-O-Peso... pois na cidade de onde ele veio (Catolé do Rocha, interior da Paraíba) não havia beira de rio ou mar que cercasse a cidade. Ele era encantado com a Baía do Guajará e com aquela movimentação que embriagava o Ver-O-Peso. E eu em meus sonhadores nove, dez anos de idade não compreendia muito o que ele dizia, pois eu só pisei no Ver-O-Peso de fato, aos 22 anos por conveniência de um trabalho de fotojornalismo pela faculdade. Eu tinha medo de ir lá, devido as pessoas de minha infância dizerem que “aquele não era lugar para uma menina ir...”.

Quando criança meu avô nunca me levava para passear com ele, isso era privilegio apenas de meu mano; não sei bem, mas acho que era normalidade da velharada de minha família, as meninas só podiam sair acompanhadas pelas mulheres e os meninos pelos homens da família... enfim! eu quase não saia com minhas tias, mãe ou avó, eu achava os programas delas muito sem graça... eu tinha inveja de meu mano que acompanhava vovô à Base Naval, ao Ver-O-Peso ou até ao Aeroporto... era mais emocionante.

Quando eu pisei pela primeira vez no mercado do Ver-O-Peso, imediatamente eu lembrei dessa conversinha com meu vô, e compreendi de cara o fascínio dele por aquele lugar... fiquei impressionada, parecia que eu estava em outro País. E aquelas pessoas tão vivas e dinâmicas. Aquelas cores, cheiros, movimentos, etc... achei tudo muito exótico e muito fértil de inspiração. E foi inspirado nas narrativas de meu avô acerca do Ver-O-Peso da época dele e de minhas impressões pessoais, e também de pesquisas histórias sobre o lugar, que esse capitulo de CUIA D’ÁGUA foi inventado.

Katiuscia de Sá
16/06/2012
03:26 p.m.
-----------------------

CUIA D'ÁGUA
Capítulo dois: Dos Acontecimentos.

Diariamente embalados pelo vento da madrugada, espalhavam-se eles como um desabrochar de Tamba-Tajá. Vinham de diversos cantos da cidade. Era bonito de se ver, pareciam promesseiros transbordando oferendas para algum santo. Caminhavam lentamente, ainda sob o efeito de bolhas de sono, embebes por um transe sereno e gentil. Executavam uma coreografia de comum acordo de todos que surgiam das penumbras. Montavam suas barracas de feira.

Epidemias coloridas, o alaranjado e enrugado ouro desfolhando-se novamente – um sol parido da manhã. Seus raios preguiçosos vazavam calor e movimento ao caminhar crescente junto aos paralelepípedos da Castilhos França e arredores da feira do Ver-O-Peso. Todo tipo de homens e mulheres traziam seus pregões, na esperança do ganha-pão de cada dia.

Eram os feirantes. Os pescadores. Ferreiros. Sapateiros. Carroceiros. Frutas. Legumes. Jarros e garrafas. Pimenta de cheiro. Pimenta do reino. Farinha d’água. Cachos parrudos de açaí. Paneiros. Cerâmica marajoara. Caixotes arregalados de limões. Anéis de latão, cordões, brincos de vidros coloridos que alegravam o coração das mocinhas em idade vaidosa. Tantas e tantas mercadorias outras que se possa imaginar.

Até leitões vivos dialogavam aos berros, de igual para igual com todos que ali estivessem! E sem essa balburdia de falatório embriagado de sons, cheiros, cores, gritos, sorrisos e malandragens, não existiria o corpo taludo da feira, e sem esse corpo não haveria também a alma irrequieta do Ver-O-Peso na pessoa de seus freqüentadores.

E ao calor do sol desamarrotado, tudo ganhava graça e movimento numa saturação de matizes e gestos. À medida que a quentura roçava àquele lugar, aumentava também o som da orquestra: vozes e estrondos de caixotes jogados no chão; tilintar de facões decepando corpos de peixes; ressonar de carroças passando; chinelos arrastando-se em pegadas fumegantes. Tudo tinha ali para todos.

Acordes crescentes de um Altino Pimenta, a música da feira era regida por uma batuta cabocla e invisível... Minúsculos carimbós amorenados nas ancas carnudas das moças paraenses torciam os pescoços masculinos que por ali passassem – uma vertigens de jambú... Era assim a invasão da melodia vespertina, todos os dias na maior feira da América Latina.

Tudo começava a ganhar jeito por volta das quatro da matina. Aos olhos de quem estivesse fora daquela rotina dramaticamente espetacular, o que se via era uma pintura caprichosa, dinâmica, dolorosa e desordenada, embriagada de odores definitivos e exclusivamente nortistas, cores explosivas e sotaque paraura ainda escutado nos dias atuais.

A vida movimentava-se num ritmo único e circular. Um Lundum, um Siriá ou talvez um carimbó. Gestos misteriosos cortejados por uma neblina úmida de rio, com o sabor e suor marimbondo. Vidas entrecortadas – um clima místico e envolvente, um sagrado-profano ao parto majestoso e doloroso daquele lugar mágico e úmido, a feira parindo-se todos os dias através das mãos dos feirantes.

Os primeiros a desaneblinarem-se do transe preguiçoso da noite, eram os pescadores. Muitos dormitavam no próprio barco ancorado aos cais. Os caboclos saiam de suas naus carregando um silêncio religioso, como se realizassem uma prece de gestos. Mal se falavam, comunicavam-se através do olhar e das intenções. Tratava-se de uma compreensão diferente, como o influxo e refluxo das pequenas ondas enamoradas do cais.

Alguns cabras passavam a tarde e metade da noite pescando motivados a venderem o resultado das redes, na manhã seguinte. Os náuticos homens manobravam os caixotes pitiús, jogando os peixes macerados na pedra e os banhavam para estarem sempre fresquinhos ao julgamento e olhos atentos do freguês.

Seguidos dos peixeiros, chegavam os pequenos donos de barracas. Alguns mais caprichosos, forravam o tabuleiro com jornal “A Província do Pará” ou com “A Folha do Norte”, antes de deitarem as frutas.

Sim! O zelo dos feirantes é para o agradamento do freguês. A exigência deste era tanta, que os legumes vinham organizados por cores, tipos e tamanhos. Aos olhos do consumidor, as mercadorias gabavam-se como bandeirolas coloridas e sorridentes.

Na parte mística da feira – estavam as famosas “garrafadas”; as ervas milagrosas; olho-de-boto; defumações para todos os gêneros e gostos (e problemas...); amuletos benzidos, compotas, etc. – neste beco de feira também havia uma maneira de se apresentar as mercadorias. A ordem dos produtos vinha do menor para o maior em termos de importância. O freguês muito necessitado do poder místico, perdia-se por entre as barracas de ervas, que por vezes lembravam um pequeno território da selva Amazônica (cheiros, cores, bichos, mistérios...). Tudo ali era feito discretamente, à surdina da investigação de boca em boca. O sigilo continua sendo a alma dos negócios...

Às sete da manhã a feira já está em sedas e toalhas quentes, toda prontinha, aguardando as mãos e os olhos da freguesia sobre si: vovós e vovôs. Adoram madrugar para serem os primeiros a pisar naquele solo sagrado e falador. As últimas notícias sobre tudo e sobre todos da cidade, se fazia conhecer primeiro naquele lugar e por aquelas bocas...
”Esse quiabo não está bom!”
“Queres me roubar no preço! Olhe, veja só!”
“Menina... a dona Zulmira não pegou a afilhada em semvergonhice com o Matias ontem, atrás da cortina da sala...”

Mesmo parecendo agressivo para um voyeur desavisado, tudo não passava de um teatrinho de comum acordo entre feirantes e velhos fregueses de longa data. Boas relações de amizade e confiança.

Caro leitor, caro leitor... as relações humanas são cheias de mistérios que a selvageria pré-histórica deixou fossificada na modernidade. E o que parece antipatia, trata-se na verdade, da manifestação de carinho e reconhecimento da existência do outro. Viver moldado em uma sociedade civilizada requer muito trabalho mental e raciocínio – um teatro de caras e bocas. A comunicação humana vai além das palavras, é algo quase incompreensível e inacreditável – a civilização!

Igualmente no meio da turba, todos os dias o punguista profissional Cesário passeava pela feira, pronto para começar seu trabalho de observação.
“pegaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa! Aquele cabra ali roubou minha carteira!” E uma cobra de rabo se formava, vários caboclos agindo em favor da vítima, correndo sofregamente:“Lá vai ele... pega, pega, pega, olha aí, olha...” – mas ninguém conseguia pegar o malandro. Este se enfiava por entre as barracas, abaixava-se por detrás dos passantes, dava meia volta, volta e meia, entrava num buraco qualquer. E só era visto novamente passados uns dias. Os policiais não podiam fazer nada. Nunca pegaram Cesário. O sujeito continuava em sua lida diária,trabalhava duro...

continua...

*CAPÍTULO COMPLETO:

---------------------------
Romance na íntegra:
CUIA D’ÁGUA – cap. UM:

CUIA D’ÁGUA – cap. DOIS:

CUIA D’ÁGUA – cap. TRÊS:

CUIA D’ÁGUA – cap. QUATRO:

Nenhum comentário:

Postar um comentário