“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O RECADO (ficção)



Outro dia eu estava andando de volta pra casa, e lá pelas tantas, deparei-me com um rolinho de papel amassado ao chão; estava à porta da residência. Então eu o apanhei para atirá-lo ao lixo. Ainda vi umas letras rabiscadas em vermelho, porém não dei importância. Atirei ao lixeiro bem na lapela frontal. Após minhas atividades corriqueiras e correria característica de meu cotidiano, sai novamente à rua. E lá estava outro rolinho de papel amassado deitado na soleira de minha porta!

“Que chatice... povo mal educado. Uma lixeira bem à mostra, e mesmo assim...”, desabafei para dentro de minha indignação. Apanhei novamente o rolinho do chão. E desta vez caminhei firmemente, nem reparei se havia algo escrito nele, ou ainda se a tinta da esferográfica era vermelha...

Retornei de noitinha, então novamente outro rolinho de papel... Já bastante cansada pelo dia metálico, mecanicamente abaixei-me, peguei o papelzinho e o atirei mecanicamente ao lixeiro que já ia passando e recolhendo mecanicamente a bagaça das casas da Vila. Era a hora corriqueira do carro do lixo passar. E lá se foi junto ao monturo os rolinhos de papel amassadinhos com algo escrito com esferográfica de tinta vermelha.

Na manhã seguinte, maquinalmente cronometrada, fiz tudo igualzinho ao dia anterior, e ensolarado pelo dia quente que despontava através das horas, igualmente outro rolinho de papel amassadinho com algo escrito por uma esferográfica de tinta vermelha estava a sorrir para mim!

“Só pode ser sacanagem!”, eu vociferava para mim mesma. Nem me dei ao trabalho de ver que o rolinho de papel era igualzinho em amassaduras e com algo escrito por uma esferográfica de tinta vermelha. Atirei o dejeto automaticamente à lixeira. Caminhei sem olhar para trás.

Neste dia anunciaram no noticiário que a categoria dos lixeiros entrava em greve geral por tempo indeterminado, reivindicando melhores salários e condições de trabalho. Muito bem! Passados uma semana, com a vida escorrendo maquinalmente azeitando todas suas peças na engrenagem social, dei-me conta de que todos os dias eu apanhava rolinhos amassados e com algo escrito por uma esferográfica de tinta vermelha, mas nunca dava atenção ao fato da insistência.

Resolvi quebrar a rotina. Sei lá o que me deu nesse dia... maquinalmente abaixei-me junto à soleira da porta de casa, apanhei o rolinho de papel amassado. Lentamente eu o desamassava, e ia desvendando suas dobraduras, e as letras em vermelho deixavam-se ler. Meus olhos viram...

Fiquei pensativa com o que eu li! E ainda bastante estarrecida, eu olhei para minha lixeira e para o chão ao redor dela... e lá estava o mesmo pedaço de papel amaçado com algo escrito por esferográfica de tinta vermelha, como se fosse uma urgência multiplicada.

Sentei-me à soleira da porta, com o papelzinho nas mãos. E aquelas palavras na cabeça: “aquele que me procura, me encontra. A meia-noite passou, e seus olhos agora veem o vermelho que corre dentro de todos os seres; o verde e o azul que pintam o céu, o mar e as matas; eu sou aquilo que eu vejo, o que faço e que digo ao meu semelhante, seja de bom ou ruim; eu sou”.

Por um instante percebi que minhas mãos refletiam uma luz incidente que vinha diretamente da noite despontando no céu. O sol escondendo-se oferecendo um sorrisinho tímido às nuvens e eu vi, lá estava... aquela estrela que chamava meu nome.

Katiuscia de Sá
07/06/12
01:55 a.m.

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