“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sábado, 18 de outubro de 2014

SAL (conto)



A fúria do mar lambia as rochas. Deixava-lheS a cada segundo, seus beijos que vinham do outro lado do continente. E sob a areia caminhava o homem. Ignorava o lamento das gaivotas sobrevoando sua cabeça. Esta ia longe... pensava em sua amada deixada em um País longínquo...

Quieto, ele fixou novamente seus olhos no horizonte, e em seus ouvidos rompia apenas o grito das ondas beijando as pedras. A cada beijo dissolviam mais e mais suas esperanças de voltar a ver aqueles olhos que se encantavam a todos os encontros que mantinham às escondidas de suas famílias – ele e aquela moça de cabelos negros.

Novamente voltava a si. E novamente o barulho das ondas ensurdeciam seus pensamentos. Ele andava lentamente como se não quisesse sair do lugar. E as gaivotas lamentando-se em rodopios. Algumas delas atiravam-se ao leito do mar à procura de algum peixe. Às vezes sem muito sucesso. Outras vezes com o bico cheio.

Cansado de caminhar pelas vagas, o homem sentou-se à beira de uma rocha solitária. Ela estava longe dos beijos do mar, e por isso mesmo enxuta. Porém a praia inteira vazia, continuava assolada pelos lamentos das gaivotas que teimavam por alimento. E as lagrimas do homem eram tão azuis que se estendiam ao mar como pequenos cristais que espirravam para fora das águas violentas. Eram tão pequenas porém, nem a chuva que desbotava as cores do horizonte percebia serem elas suas pequenas filhas que se soltavam de vez em quando de dentro das pessoas porque recordavam de coisas que as fazia chorar.

O homem lembrava-se de seu amor, que agora estava longe... muito longe de qualquer tentativa de aproximação ou convivência. Ele só continuava vivo, porque sabia que em algum momento quando as águas da praia estivessem calmas, poderia ele ao menos ouvi-la cantar para filha deles adormecer. E nessas horas, aquele velho lobo do mar choraria, mas de alegria por ver as duas no reflexo do oceano – aquele marinheiro aposentado jamais as esqueceria, uma por quem se apaixonara, a outra por ser sua filha. Dizem que este homem caminhou naquela praia europeia até desaparecer em fins de 1801, quando ninguém mais o viu. Alguns marinheiros acreditam que ele não resistiu a tanta saudade e atirou-se nas águas. Foi morar com elas nas profundezas do mar.


Katiuscia de Sá
[18 de outubro de 2014, 01:04h a.m.]


sexta-feira, 17 de outubro de 2014

A CERIMONIA (conto)



E como naquele País ninguém podia tomar qualquer bebida que fosse, sozinho, ambos tiveram que aceitar a cortesia um do outro. Com toda precisão e cortesia abriu a garrafa um deles. Com uma das mãos no corpo e a outra apertando e enroscando a rolha, a boca ficou livre; e cuidadosamente o liquido foi derramado no copo do outro. Beberam a primeira dose em silencio. Não se olhavam. Retinham a respiração de angustia e tensão. Dois rivais de aldeias diferentes (e inimigas), ironicamente em um pequeno tratado de paz. Estavam ambos ali um de frente para o outro pelas circunstancias de viagem e também subordinados às leis e à tradição das cerimonias.

A cada copo curvavam-se, porque a ocasião pedia os modos. Mas por dentro, a vontade que tinham era a de sacar suas espadas ou seus ferros para liquidarem um ao outro. Não podiam, porém, devido ao tratado de Paz estabelecido naquele pequeno território fronteiriço. A partir do terceiro copo, ambos já cambaleavam um pouquinho. Estavam muito cansados também devido à longa viagem que cada um foi submetido. E o trajeto ficava mais árduo em toda aquela região por causa do Inverno. O vento cortava a pele de quem ousasse atravessar àquelas estradas, e a energia dos forasteiros ainda era sugada pela atenção dispensada aos animais selvagens à espreita em torno dos viajantes que vinham a pé, o que era o caso deles; por isso o cansaço os vencia, domesticava a raiva.

Além daquele pequeno acordo forçado de paz, devido às convenções, o que segurava suas armas nas bainhas e seus punhais nas sacolas era o próprio local. Um recinto religioso que abrigava sacerdotes, alguns idosos, mulheres e seus filhos órfãos. Em período de guerra, essas cabanas sempre servem de acolhida aos necessitados. Entretanto, nem aqueles olhos salgados pelas lágrimas fazia-lhes amolecer o coração. Uma vez forjados para serem soldados, os homens endurecem permanentemente a alma.

Mantinham-se firmes nas cortesias mutuas. Mas a delicadeza aos poucos era derrotada a cada segundo pela força nas mãos, que já não eram as mesmas de antes dos três primeiros copos de bebida. Agora ambos treinavam o autocontrole dentro de si. O guerreiro antes adormecido pelo cansaço, era atiçado pela falta de juízo que a bebida fazia faiscar nos olhos. E as mãos de ambos queriam sacar e apertar suas espadas, fazê-las bailar pelo ar.

E num comum acordo os homens, vencidos pela bebida, olharam-se longamente. Seus rostos eram um fio de fogo. Ardiam a mesma vontade de duelarem. Consentiram e abandonaram-se a essa ideia. Então iniciaram o ritual para trazer a virgindade de volta aos ferros de suas espadas. Decidiram se encontrar brevemente passados dois dias, quando finalizado o “ritual das armas”.

Afastados, cada homem procurou um local isolado naquela redondeza. E ao pôr-do-sol, cuidadosamente lavaram suas espadas com as águas de um pequeno riacho que teimosamente ainda se mantinha correndo; e cada um abriu uma cova perto de uma árvore. Deixaram descansar suas espadas ao peso e quentura profunda da terra. No segundo amanhecer depois disso, suas espadas estariam prontas novamente para a luta.

À tardinha do segundo dia, lá estavam ambos novamente a se encararem. Um deles trazia uma vela rotunda juntamente com uma caixa de fósforos. Escolheram o local mais afastado possível e sem vento. Foi difícil, pois naquele inverno severo, onde até mesmo as arvores sem folhas se mexem, achar um local tranquilo era de igual desafio.

Encontraram uma pequena gruta, que ainda se mantinha úmida. A neve ignorava o seu interior, igualmente o vento não se atrevia entrar. Então ali, o homem com a vela iniciou os preparativos para o duelo. Encontrou uma pequena plataforma de pedra e assentou a vela acesa. Um de cada vez teria apenas uma chance. E assim procederam. O primeiro errou a pontaria. O segundo, porém, foi certeiro! Apagara a chama num golpe sem cortar o pavio. O soldado que perdeu o duelo, não acreditando, precipitou-se em direção à vela e a segurou atentamente. Estava realmente sem nenhum corte. Então, o homem deixou escorrer o sal de seu corpo através dos olhos. Após conter seu choro pela vergonha da derrota, ajoelhou-se humildemente, consentiu ser até o fim de sua vida o servo do guerreiro que o vencera no milenar duelo da vela.



Katiuscia de Sá
[17 de outubro de 2014, 22:24h]


domingo, 7 de setembro de 2014

O ABAJUR E A ROSA MENINA (conto)



Era uma vez um vaso que foi colocado à soleira de uma janela. Era de uma casinha bem bonitinha. A dona da residência sentia falta de plantas, logo inaugurou uma das janelas com uma pequena muda de Rosa Menina. O vaso ficava bem na direção de um abajur comprido, de hastes imitando pétalas abertas, cuja lâmpada era o centro. Era uma luz antiga, daquelas amarelas. E ela testemunhou toda a metamorfose da pequena planta acomodada naquele gentil vaso.

Passado um mês mais ou menos, começaram a despontar os gomos das flores. Certa madrugada o abajur percebeu que o primeiro gomo estava se abrindo, e dela saindo vagarosamente, como se espreguiçando, a primeira Rosa Menina. Vendo aquele milagre orgânico da Vida, o abajur apaixonou-se pela florzinha. Ficou incandescente desde a manhãzinha com sua luz amarela a se alastrar pelo ambiente. E pouco antes de ser desligado, o abajur soube pela própria florzinha que na madrugada seguinte ela não mais estaria ali, pois ao longo do dia iria murchar e morrer. O abajur ficou tão triste... tão triste, que aquela emoção fez o filamento de sua lâmpada se romper.

Porem, a luminária sabia que sua luz seria trocada por outra, mas aquele abajur não poderia mais suportar a ausência de sua rosa menina. Então decidiu nunca mais passar energia pelos seus filamentos, e desse modo não teria mais serventia. Aconteceu assim de a dona da residência se desfazer do objeto, indo ele parar em um canto do quintal da casa, onde eram depositadas coisas que não tinham mais serventia.


Deitado no chão onde alguma grama o acalentava, por coincidência da Natureza, precipitou-se espontaneamente um pequeno canteiro de Rosas Meninas. Visto isso a dona da casa não teve outra opção, senão deixar a luminária onde estava, pois se o retirasse de lá, todo o canteiro iria ser arrancado junto. Assim, aquele abajur foi sepultado, sendo ele consolado diariamente pelo nascimento de várias Rosas Meninas, que lembravam a primeira que ele havia visto e se apaixonado.



[Katiuscia de Sá – 07/09/2014, às 11:10h]



terça-feira, 19 de agosto de 2014

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

O Céu Escuro de Baal_ILUSTRAÇÕES

Em breve estará online meu novo livro "O Céu Escuro de Baal", é uma ficção em estilo realismo fantástico, totalmente em linguagem poética. Aguardem! Enquanto isso, apreciem as ilustrações que fiz para acompanhar o texto.




















sábado, 19 de abril de 2014

SÁBADO DE ALELUIA _curta de bolso

Fiz hoje, aproveitando a luz que estava tão bonita esta manhã... e quando se mora num casarão de mais de cem anos, tudo é inspirador. Este curta de bolso é mais um exercício do olhar, uma brincadeirinha séria.




sábado, 8 de março de 2014

QUANDO TUDO COMEÇOU


Desde a primeira vez que fiz, foi diferente. Mesmo sendo um pequeno exercício de campo. Sob o olhar de quem entendia. Já naquele momento ele soubera que algo grande estava em gestação, pois havia bem ali na frente do professor, uma semente rara em estado de potencia, que era eu... mas eu não sabia.

Depois que as luzes se acenderam dentro do quarto, a consciência dentro da cabeça caminhava em circunferência, levitaram meus cabelos e eu me arrepiei. Era o pensamento tomando conta de mim bem pela raiz. Abriram-se as janelas, cada uma com uma velocidade diferente para as dobradiças.

O sol pôs-se a passear lentamente pelo céu, como fazia todos os dias... já era costume sua luz invadir por aquela imperfeição bem no meio da porta. Não dava para consertar. E era justamente por causa dessa falha, que tudo se iluminava.

Eu sempre fui estranha para os outros. Gostava de coisas que ninguém entendia. Adorava a solidão junto à Natureza. Isolava-me passeando por entre as folhas e mato. Abraçava as arvores, e adorava os bichos. Não sabia conversar com as pessoas muito bem, faltava-me o idioma. E este eu descobri ao longo da vida, realizando e criando coisas inúteis.

Foi um dialogo difícil. Muito difícil... mas que no final, o esforço fora recompensado. Ao deitar todos os dias para dormir... ela não dormia. Ouvia o som da noite; as corujas piando ao rasgarem o céu em cima de si. Os grilos rangendo-se; os sapos festejando escondidinhos na umidade da lagoa. E se houvesse neblina, certamente a engoliria.

Gostava desses sons... como se ouvisse música. E ela criava enquanto todos a chamavam de imprestável. Ela inventava enquanto todos a faziam chorar e a assustavam... por isso gostava de ficar isolada no meio do mato... ali ela era igual a tudo, não incomodava ninguém, e nem havia gente para apontar-lhe o dedo.

Estava sempre de mãos dadas com o vazio. Às vezes chorava por não saber o que acontecia consigo. E em três momentos de desespero, quis tirar a vida – a sua própria. Só não conseguiu porque fora fraca o suficiente para acreditar em Deus. Isso a salvou de querer morrer de uma vez. Agora morre apenas aos pouquinhos... porque ainda consegue ver beleza e sorrir em curtos circuitos.

E mesmo assim, continua fazendo coisas imprestáveis. Continua sendo ela mesma... enfrentando todas as tempestades de frio. Certa vez, aquele raio de sol que invade através da imperfeição, a deixa feliz. Mas parece sonho. Coisa distante e que não dá para tocar. Então, vem o escuro... a sombra... e ela sempre criava seus filhos na penumbra. Talvez para evitar que sofressem como ela sofreu quando criança, que enxergava tudo, que via tudo... que sabia de tudo.

Mas com toda penumbra, eles escapavam... e conhecem a luz. E quando isso acontecia... não retornavam mais. E ela permanecia só como dantes, e como sempre fora. Permanecia enfeitada como uma ninfa rodeada de Natureza. Tão bela quanto a tristeza de todos os tempos. Imensamente jovem feito o desespero dos apaixonados que não podem ver seus próprios rostos. “Essa era eu... Ou essa sou eu” – assim estava escrito no conto.


Katiuscia de Sá
08 de março, às 17:02h


terça-feira, 4 de março de 2014

L. S. D. (conto)



Um sono nababesco abateu-se sobre ela. De repente suas pernas despencaram e seu tórax desejou o chão. Deitou-se com ele. Quase desmaiada, com a cabeça amortecida por um dos braços, apagou por completo; indo acordar em um lugar estranhamente decorado com peixes coloridos empalhados e espetados sobre alguns móveis nus.

Suas pernas então ganharam vida novamente. Contorceram-se em direção a uma porta entreaberta que enfeitava o lugar. Do lado de fora ela viu um céu escarlate, repleto de pedaços de leite flutuando como se fossem nuvens, porém liquidas e com sabor.

Não sabia tratar-se de realidade ou delírio. Sabia tratar-se de perdição, pois a partir do momento em que seus pés ganharam vida, eles a levaram para lugares nunca dantes imaginados. E este era um deles. Quando a garota se deu conta de si, já estava sobre uma ponte feita de madeira sobre um despenhadeiro profundo e inabitado. Apenas algumas aves com cara de chinelos habitavam os céus. Um deles voou bem perto do rosto dela, e até lhe soluçou um beijo.

Depois disso a garota acordou com alguns transeuntes a sua volta, estes a chamavam... mas, ela não reconhecia ninguém e nem que estava estirada na rua por conta de um baque (de carro, talvez). Sentia-se tonta e não associou aquele céu azul ao céu escarlate que dantes vira. Contudo, as aves com cara de chinelo ainda pairavam no ar.

E por conta de seus bicos emborrachados, eles dobravam-se para todos os lados. Um par de aves pousou perto, então a garota os calçou. Prontamente suas pernas ganharam movimento outra vez, levando-a para perto da praça que havia ali. Deixou suas roupas no lugar do seu corpo junto das pessoas que a socorriam.

E com as aves enfiadas nos seus pés, foi caminhando sem muito obedecer a sua própria vontade. Diante disso, um carneirinho dourado, de olhos bem negros com seu pelo bastante enroladinho, apareceu e pôs-se a berrar. Dizia o nome do caminho que as aves com cara de chinelos deveriam atravessar. Eles então deixaram a moça novamente estirada sob o chão.

E este chão já muito intimo dela, agarrou-a e envolveu-a com vários arranhados da queda. A garota ficou parecendo o céu escarlate que vira ainda pouco. Porém, sem as nuvens de leite a sobrevoar sobre si. Estava tão absorvida reconhecendo o gosto de sua própria pele, que mal escutava um transeunte que a recolhia do chão a lhe perguntar o nome...

Quando a moça pôde falar algo, balbuciou quase derretendo sua voz numa coalhada de gelos: “meu nome é Lavínia Silvana Doroteia”. E sua voz foi apagando-se com o passar dos ventos, indo dormir à beira de um jardinzinho que ali havia por perto.



Katiuscia de Sá
Escrito em: 27 de fevereiro e 04 de março/2014, às 20:57h.