Sempre fui muito sensível a sons,
melodias... Lembro-me que eu tinha em torno de seis ou cinco anos quando ouvi “Construção”
de Chico Buarque. Meu pai juntava dinheiro e acredito que de quatro em quatro meses
ele sempre comprava um LP novo, e eram sempre MPB dos bons! Quando não os clássicos
do Rock e Word Music. Cresci ouvindo a nata. Disso eu não posso reclamar. Mas eu
lembro que eu tinha um baita medo dessa musica (e também de outra música do
mesmo LP do Chico Buarque – “Deus lhe pague”), tinha igualmente angustia de “O
Que Será?”, e eu naquela idade não sabia muito do lance da Ditadura no Brasil e
da repressão e tal, porém os acordes e a maneira sombria como a estorinha das
musicas evoluíam, me deixavam com um aperto no peito, eu sentia como se
houvesse um perigo iminente. Sentia uma angustia inexplicável. Eu não gostava
de ouvir essas musicas. Todas as vezes que meu pai colocava pra tocar
principalmente “Construção”, quando eu podia eu saia de perto, pois na minha imaginação
de criança eu estabelecia as imagens mentais da trama, e sempre eram a noite,
umas imagens de gente triste e perseguida, gente com rosto de sofrimento, de angustia,
imersos numa penumbra e uma cidade com as ruas muito cleans, mas que assustava por não ter ninguém caminhando ou que só
havia carros passando feito um trilho de formigas umas atrás das outras,
ignorando por completo a imagem de uma pessoa jogada no meio fio; sempre tudo
numa penumbra, eu que já tinha medo (e ainda tenho pavor...) do escuro, não suportava
sentir aquela sofreguidão que a melodia me causava. Falo dos arranjos
originais, pois “Construção” já foi regravada algumas vezes pelo cantor Chico
Buarque, e os novos arranjos nem de perto chegam aos pés do pavor erguido pelo
arranjo original feito em 1971 pelo maestro Rogério Duprat. O estranho que ao
mesmo tempo eu sentia repulsa pela musica, a melodia era algo fantástico,
prendia meus sentidos deixando-me quase paralisada. E as estrofes com aquela
rima agonizante e repetitiva... meu Deus! Era perturbador, (em contraponto de “Construção”,
eu amava ouvir “Águas de Março” de Jobim na voz de Elis). Há medida que fui
crescendo, “Construção”, ganhou minha admiração completa, e também igual
admiração pelo poeta Chico Buarque – que figura aguçadíssima! A genialidade de
suas letras me deixa sem palavras, (além de orgulhar-me dele ser também de Gêmeos, tal Paul MacCartney e eu!). Acredito que outro grande compositor de mesmo
quilate, porém de estilo e abordagens diferentes, é Renato Russo, embora este
tivesse sido profundo admirador do outro, ambos dividem espaço no meu gosto
pessoal em relação às letras e melodias. Claro que Chico é mais clássico e seus
arranjos são mais eruditos e de outra natureza dialogando com seu estilo
musical. Gosto muito também das letras do exagerado Cazuza. Mas Chico e também
outro grande poeta em minha opinião (Vinícius de Moraes), Caetano Veloso e Mutantes agradam-me mais que os
citados. Também quando criança eu adorava ouvir aquelas letras debochadas do
samba-de-breque do 'malandro' Moreira da Silva! Nossa!!! Que genialidade as estorinhas narradas
com uma desenvoltura teatral pelo cantor. Eram verdadeiras crônicas! Igualmente eu construía as imagens
mentais das letras na minha cabeça quando meu pai colocava os discos dele pra
tocar. Era de uma riqueza a simplicidade das letras, como retratavam a vida das
pessoas nos morros cariocas e o cotidiano do “malandro” brasileiro, aquele
sujeito relegado às classes mais baixas da sociedade que se virava para
sobreviver. As narrativas sempre com muito bom humor e também com pitadas de
criticas sociais de modo cômico, mas não menos importantes e imponentes. Também
curtia muito as musicas de Elizeth Cardoso, embora fossem as letras muito
passionais às vezes, mas a voz da cantora era belíssima. E aquele tom de musica
de auditório de Rádio anos 40... me agradavam, incitavam minhas imagens mentais
sobre o enredo das letras. Gostava muito também do misticismo contido nas letras, melodias e voz da cantora Clara Nunes. Mas, eu me lembro perfeitamente da sensação nada agradável
de quando ouvi pela primeira vez “Construção”, de Chico Buarque. Como eu já estava
habituada às estórias de meu avô, e dos livros que ele lia pra mim e para meu
irmão, eu achei a forma narrativa da “Construção” algo incrível! Diferente...
magnético. Como se meus ouvidos estivessem escutando um segredo em forma de uma
musica macabra... algo proibido, degenerado, maléfico... um lamento mudo que
somente uma musica seria capaz de se fazer sentir; realmente amanheceu um
enorme terror dentro de mim ao ouvir essa musica pela primeira vez. Atualmente compreendo
melhor é claro, e é inegável a riqueza melódica e de composição gramatical e poética
do poema. Igualmente impressiona. Chico e seu arranjador conseguiram impregnar
de vida a melodia, apresentando essa sensação de coisa maquinal, descartada
e/ou uma vida sem valor do trabalhador da construção civil (que pode tranquilamente
sintetizar todas as classes trabalhadoras da época...), e acredito que tenha
sido isso que me apavorou inconscientemente quando criança, essa coisa de o cidadão
ser algo desprezível pelo Capitalismo, pela sociedade entorpecida, consumista,
oprimida (isso dentro do contexto da musica). Acho que eu fiquei com pavor de “Construção”
até meus doze anos de idade. Com o passar dos anos esse desconforto diminui e
cresceu minha admiração pelo compositor e pela melodia épica e letra crescente
desta musica (e também muitas outras letras de Chico Buarque). Lembro-me que
também aprendi a amar The Beatles por conta da coleção em LP de meu pai (que
depois de anos - lamentavelmente - ele vendeu tudo a preço de banana para uns sebos de Belém,
acredito que a essa altura os discos devem estar na estante de alguns
colecionadores, tipo o Edgar Augusto... se assim for, pelo menos os LP’s estão
em boas mãos). Havia uma musica que eu adorava ouvir até furar um dos discos, era “Cry
For A Shadow” tocada ao vivo com os gritinhos ao fundo de John Lennon, de um LP dos Beatles onde o
baterista ainda era Pete Best. Simplesmente AMO essa musica!!!). Mas até hoje
nenhuma outra musica me causou tanto impacto imagético e emocional quanto a “Construção”,
de Chico Buarque de Holanda, que em 2009, foi eleita a melhor canção brasileira
de todos os tempos em votação promovida pela versão nacional da revista Rolling
Stones. Há outra musica que chegou a me causar alguma vertigem até agora, é “The
End” dos The Doors, porém a ‘viagem’ melódica aconteceu apenas de forma
sensorial e não chega nem próximo ao tremendo impacto emocional que a musica de
Chico Buarque me fez sentir quando criança.
Katiuscia de Sá
17 de setembro de 2013, 00:33h.
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