“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

MERCÚRIO SOLAR (conto)


No lugar dos olhos, mexia uns pares de lentes, (indiferentemente poderiam ser película cinematográfica ou simplesmente obturadores de fotografia). Adorava caminhar pelas ruas recolhendo detalhes, impressões amarrotadas do cotidiano, como um pequenino jogo de idéias e imagens correntes. Captava pormenores dantescos! E detrás disso, levantava oceanos de possibilidades.

“Vejo o mundo sempre de maneira filtrada, tudo me parece sonho dentro de sonho, dentro de outro sonho, outro sonho, e mais sonhos... um devaneio que nunca acaba! Como se o mundo girasse dentro de minha cabeça despencando em crônicas espontâneas, aquarelas, desenhos, ou filmes verdadeiros sobre algo captado pelo meu corpo-antena.”

Às vezes tudo se misturava:
Cheiros,
Planos,
Pedaços de vidas,
Gestos,
Matizes...
Um apaixonante quadro em movimento,
Aquarelas pintadas e planos refeitos a todo instante, descortinando-se bem ali, à sua frente.

“As ruas, de repente, transformam-se em cenários magníficos, palco para performances anônimas – recortes de livros de dentro de mim...”

Aprendeu ela, que existe outro mundo atrás desse que se mostra fugazmente. Aprendeu a ver o Invisível e Indizível das coisas.

“Flutuo pelas ruas, e tudo parece tão normal, porém, quem enxerga para dentro percebe-se mergulhado numa neblinazinha tênue e hipnotizadora... dela vem O Antigo Idioma, que aprendi espontaneamente a traduzir o que é Verdadeiro aqui fora...”

Então, dessa Libertação da carne, a Alma vibra e quer-se mostrar – advém o canal vibratório para a linguagem de emoções materializar-se no que, convencionalmente, acostumamos chamar de “real” – As Artes.

“Meu corpo está preso ao chão...
Mas minha Alma voa.
Vêem?
Essa aí em cima,
Sou Eu
a Ave Que Não Se Sabe o Nome.”

Num arroubo de fome Katharinna arrebatou um alfinete e furou-lhe o dedo, mas não com o entusiasmo de beber-lhe o sangue. Ficou apenas olhando o jorro cobrir o verde do chão. Transformou-se em Marrom, a superfície. E o vermelho também lhe manchou o vestido.

Por onde passava ela, as árvores punham-se a conversar. Animadamente escoltaram Katharinna até as esferas que dormitavam deitadas junto à calçada. Uns passarinhos atirados começavam a despontar à porta do despenhadeiro, havia pequenas estrelas também, avolumando-se nas arestas do coral.

Num momento, as persianas abriram-se para deixar entrar o poder solar. De um lado um Sol Amarelo, do outro um Sol Carmim... Katharinna vinha por entre ambos, um caminho traçado na superfície esponjosa dos musgos submarinos. Às vezes deslizava, escorregavam-lhe os passos, tal areia movediça. Tudo lentamente...

Sabia ela que nunca seria um deles... Suas asas e nadadeiras apareceriam em qualquer momento de felicidade, denunciando sua real procedência. Contentou-se com isso! Saberia, contudo, ocultar essa característica. Apenas outros de sua linhagem se reconheceriam em terra. A vibração filarmônica correria de Alma para Alma... O Antigo Idioma.

As linhas, cujo Destino mudava de Mão em Mão, ensinavam para o dono das mãos, que não se pode julgar alguém pelos tropeços de outrem. E que cada dedo difere em função e formato entre si!

Katharinna sempre pensava essas coisas quando flutuava, por isso as árvores conversavam com ela ao som da Orquestra-Vendaval. Em algumas noites Katharinna se despia e caminhava nua dentro dos Sonhos do “Homem-sem-Ternura-nas-Mãos”, até que num desses Sonhos, Ele a percebeu.

O olhar desse Homem foi tão forte que levantou dois Sóis brilhando Katharinna. Seu coração derramou vermelho sobre o vestido que a trajava fora do Sonho. E Katharinna orgulhou-se de estar coberta por esse vestido. Quis mostrá-lo detalhadamente: era decorado por delicadíssimos fios de Sol-de-Vicente.

Tanta prudência nas mãos fechadas, mas nenhum pássaro recolhido à esfera espalmada. O manobrista desconfiava de seu co-piloto, e este tão ingênuo quanto um foguetinho de São João, estourou à porta do estábulo. Precipitaram-se os cavalos numa correria frenética e desgovernada. A ventania tocando Carmina Burana. A estupidez e arrogância da Besta galopavam frente aos Sóis. Quis roubar as ferraduras dos corcéis.

A Ventania, porém, bateu-lhe as mãos, e soprou-os novamente... Katharinna e seu Amor estavam imunes a tais acontecimentos. Em terra assemelhavam-se aos mamíferos, em Sonhos assumiam barbatanas e asas. Katharinna acostumou-se com o Céu a entrar-lhe n’Alma.

Depois que adormeceu daquele Dia - “Homem-sem-Ternura-nas-Mãos”, os bárbaros que habitavam os bosques selvagens de Hoyorh, deram-lhe novas peles para cobrir-lhe o corpo; deram-lhe novo nome e nacionalidade. Ele, porém, não conseguira aquarelar a fúria que seus olhos de pássaro carregavam em si.

Nos seminários, lá estava Aquele corpo cheio de vida a insultar de cores os presentes. Os cinturões de hematitas retesavam aquelas estátuas que se diziam com vida, povo de areia e sal.

Aqueles olhos selvagens ela também os tinha num total controle. Era humilde nas vontades, sabia Ela respeitar àquele povo de vidro. Devia isto ao seu velho Mestre. Daquela fúria dos campos servia para a fabricação dos Sonhos e Porções de Vida.

Alguns dias se passaram. O trem continuava por entre os montes. Indiferente àquelas gentes de areia e sal.

Ninguém a controlava. Fazia Ela apenas o que era de sua vontade ou em obediência ao seu Mestre. Apenas Ele conseguira domesticar-lhe as ancas e pensamentos. Obedecia a Ele porque Ela era Ele também. Em algumas porções, entendiam-se.

Ao som do osso de flauta, ramificava-se sobre as salgadas terras, virava-se em galhos e sementes. Ao fundo, um antigo cântico xamânico encontrava os ouvidos de quem ouvia o Verbo-voz.

Depois que Ele a fertilizou, nasceram as quatorze cabeças da Antiga Linhagem. E os olhos Dele cada vez mais selvagens, mais ainda do que os Dela. Governavam ambos, a catedral dos sonhos, portal que atravessava os Mundos.

O trem continuava a movimentar-se por entre as nuvens, sacudindo os esqueletos de areia e sal...

Aquele corpo de música tirava notas de ossos de flauta. Inundavam sua mente recém-desperta. E a Luz a esperava para caminharem juntos. Faria esse esforço, por duas noites consecutivas, Ele veio vê-la, através da neblina.

A consciência, atenta como um renascentista. Ele estava do outro Lado à sua espera - tempo, o caminho a percorrer. Pedaços de vida, as mensagens para os olhos Dele. Ela escrevia desde sempre... Tudo o que era Verbo antes de conhecerem-se, apenas Ele compreendia. Acordavam tão conscientes que enxergavam até o Invisível.

Os acontecimentos seguintes seriam deitados a guisa das coisas. À horizontal parecia tudo mais eficaz, posto que as linhas imaginárias se entrecruzavam, teciam o manto do enlace noturno.

O amor promove revoluções e o despertar das idades. As borboletas, as borboletas... olhos-de-mel sobre Ela, um enigma de formas e sentimentos. O Antigo Idioma novamente proferido. Graças ao tempo de nascimento, Ela o absorvia.

Amavam-se sem que os mortais os compreendessem. Duas mãos: duas penas, a mesma folha. O entendimento – o grande circulo, o Antigo Idioma, um carvalho.

O Silêncio...
O Mar...
O vento...
As Árvores...
A Música inaudível...

O Amor cartografando um mapa de Luz sobre suas próprias frontes. Era a maneira Dele dizer-lhe “eu te amo”.

“Navegava naquele rio vermelho. Suas artérias e vasos cediam-me a passagem. Cambaleei algumas vezes, mas sempre encontrava o caminho de volta”.

O terreno era arenoso em algumas partes. O silêncio ditava os atalhos e as conversas internas. Vários seres povoavam aquele Lugar, Eu era agora um deles (eternamente agora). Enxergava através de seus olhos de vidro na minha mente, contemplávamos um para dentro do outro.

Vi aquelas crianças-verdes saindo dos cascalhos das árvores. Vi o pássaro-amigo e também o pássaro-negro. Este, através da melodia rangida pelos meus ossos, afastou-se Dele para todo sempre! Minha sombra o protegeria de agora em diante, (o meu Amor).

O solo também era líquido quando flagrei minhas barbatanas e guelra. Os olhos Dele eram felinos, dilatavam-se para cima de mim. Sorveram-me. Escoltaram-me até àquele Lugar seguro.

Sua companhia, um Leão dourado a lamber-me o corpo em carinhos e limpeza. Lambia-me acarinhando os ferimentos. Seus dentes crispados mordiscavam-me em partes onde somente quem ama verdadeiramente pode tocar sem machucar. Isso, leia-me.

Recompensa por ter ido além de onde eu poderia... fui transformando-me em terra, flor e fruto. Ele, um Leão dourado, depois Árvore. Penetravam-me, seus galhos...

Agora Katharinna era ave lá em cima. Voava sobre umas casinhas desenhadas sobre a terra, (terra natal).

“Não tive medo de ser Lá, Ele estivera comigo o tempo todo segurando minha mão. À outra margem, seria Eu qualquer coisa, cipós escorrendo do firmamento, trazendo consigo pessoas bem pequeninas para habitarem naquelas casinhas desenhadas”.

A alma daquele lugar tocou-a e acelerou nela seu hálito de Luz, Água do Ventre da Criação.
Um transe consciente - O líquido da Vida. Amor puríssimo,
Sem nome...

Depois de tanto caminhar sobre as serragens, observou Ela que o chão agora brincava de cascalhos. E a cada par de léguas encontravam-se velhas árvores esparsas umas das outras. Sabia que dentro de uma delas jazia seu Amor - à sua espera.

Mal podia ver o lume desejoso do Sol ansioso por aquecer aqueles corpos de algodão e pedra, que não mais se moviam atados aos cascalhos do chão.

Em cima, o céu e seus olhos flutuavam como estrelas arredias, observando aquele povo miúdo e inconsciente.

Katharinna caminhava incessantemente por entre as folhas do livro. E a cada árvore avistada, seu coração batia mais forte.

“Ainda não é esta Árvore em que habita meu Amor...”

Seguia adiante. Ao arredar-se de um cemitério de elefantes, notou as carcaças e as grandes presas afocinharem o solo, que agora era de lodo. Tanta caminhada... ela vira tanta coisa; tantas gentes deformadas; outras ainda nem nascidas; e outras já mortas a vagarem sem avistarem outros mundos.

Katharinna via tudo e um pouco mais. Sabia estar próxima do carvalho que aprisionava seu Amor.

Após milhares de estações não contadas, aportou numa ilha irmã de neblinas róseas. Passos afundando..., retornavam lentos e pesados, até que suas forças transformavam-na em Ave Que Não se Sabe o Nome. Seus pés e dedos afiaram-se grandes garras. Os olhos juntos na fronte acusavam uma ave de rapina. Voava naquele céu cheio de olhos.

Tantos tempos solitários apenas voando e se alimentando... até que um dia pousou sobre a árvore que a procurava. O tronco quase estéril. Do encontro, não falavam por palavras, apenas Verbo. A Ave Que Não se Sabe o Nome, ao tocar o solo, transformou-se em mulher, sobrando suas penas apenas nas omoplatas.

Estava nua a percorrer suas mãos aos retorcidos cascos ásperos da forma trançada ao chão. Não havia mais folhas prendidas aos galhos... Quase morta aquela árvore sobre a terra, reconhecera a mulher-alada. E como um milagre, suas veias cheias de verdes migraram folhas novamente.

Ela cavou por entre as raízes resgatando aquele Homem nu muito branco, muito lindo e delicado, quase adormecido... abrigou-o aninhando-o em seu colo. Amamentou-o e o vestiu com as próprias penas arrancadas das omoplatas.

Enquanto o amamentava - a mulher-alada, que se diz Katharinna - unia-se bem para dentro dos olhos de seu amado:

“Todas as noites antes de dormir, meu último pensamento é teu. Ao acordar junto com as manhãs que se levantam, és Tu minha primeira respiração consciente. Tua presença encanta meu corpo e minha Alma, na lembrança que jamais esqueci de que sou tua e de nenhum outro Homem”.

E hoje, quase Agora, Ele ainda chora ao ler sua história tal como aconteceu naquele lugar encantado. A moça nua que virava Pássaro que Não se Sabe o Nome também é Verbo. Ele também oO é. Estavam a voar nos céus sobre nossas cabeças, ainda há pouco.

De repente...

“Não lamente...”, o vento soprava violentamente lascando os ossos de Katharinna.

“O que aconteceu, aconteceu...”

Aquele homem nu, escavado da terra pelas mãos de Katharinna não fora forte o suficiente para suportar novo calor em seu peito... a terra preta já o havia carcomido as entranhas e a mulher que se vira em Ave Que Não se Sabe o Nome apenas podia ficar ali, naquele cemitério de elefantes, vendo seu Amor falecer sem nunca mesmo ter tentado viver, Ele.

O pranto de Katharinna era em vão... Ele mesmo quis morrer saboreando terra e sal.


Então Ela virou novamente Ave Que Não se Sabe o Nome, voou para longe, muito longe... onde a voz daquele homem nunca mais a alcançaria. Bebeu Ela oceano e mar. Inundou-se, virou peixe. Sendo o fardo Dele arrastar-se sobre a terra sem mãos e sem braços, para um dia tê-los novamente.

Katharinna enlouquecia, mas abandonara àquela terra. Em algum Lugar, um mundo inteiro se partia, mas a Mulher-Ave, após tantos desertos, escrevia:

“Muro de heras, tua Pátria findara
Na relva de matas escuras e densas...
Matara e profanavas um coração desabitado,
Inocente como nunca outro encontrarás.
Tivestes a quem abraçar,
A quem sorrir,
Tivestes a quem te amamentar,
A ti dei meu peito e meu leite...
Deitastes tudo no único chão
Que não te pertencia...”

Ela seria a última Ave, solitária até sua própria extinção. E desde esse dia Ela se fora, (porque Ele mesmo a havia mandado partir), tudo porque não sabia o nome Dela.

Um dia, porém...
Um dia virá de acontecer que durante as chuvas de pingos d’ouro, aquele homem nu deitado ao chão recobraria os sentidos, recordando apenas daqueles braços e daquelas pernas que o guardara do frio e das neblinas... e daquele peito que o amamentara.

E como o canto de um pássaro, seus olhos choravam o lamento de procurar aquela mulher nua com penas nas omoplatas, tinha saudades de sua própria boca naquele seio de leite. Essas eram suas únicas lembranças, desde então.

E de boca em boca, de seio em seio, Ele haveria de encontrá-la novamente. Deitou-se outra vez ao chão, como árvore frutífera, para atrair sobre si a Ave que Não se Sabe o Nome - que se diz Katharinna...

Katharinna...
Katharinna em “Terras de Vicente”...
haveria de voltar para seu Sol-de-Leão,
Mulher-satélite, sua esposa lunar, para todo sempre.
Esperava, aprendendo a sentir e ser beleza e graciosidade da Lentidão, que se diz Eternidade.

E em meio às tempestades de sal, Ela lhe escrevia:

"Sempre te amarei...,
Tu que sabes,
Subo aos céus evaporando,
Pelo sopro de teu vento,
Estarei onde estiveres Tu,
Meu querido Amor..."


"Eu te amo..."

"Eu te amo..."

"Eu te amo..."


Todas as vidas são uma. O que o braço direito começou como um movimento, o esquerdo um dia, há de acabar.

Uma renda de panos finos, telúricos, alvos, serenos, invisíveis, cobrindo a vista do povo pequenino de pedra e sal. Katharinna foi até eles. Fez a Leitura das Almas, aprendeu com as caveiras do Templo.

“Escuta-te!
Tua Música rebenta no ar...
Fere os momentos de angústias e solidão
De todos aqueles que se perdem.
O Silêncio existe...
O Silêncio exige...
Pois há um Mundo além deste,
Onde as Coisas são verdadeiras.
Quando tudo se inicia por Lá,
É que se torna Real
Aqui onde nosso corpo de carne
Habita...
Escutas minha Música, Amor?”

Voltou-se para dentro de si novamente, a chama do Fogo oscilava, fez-se novena, reza, procissão... Abraçaram-se os Tempos de ambos, uniram-se por entre a Multidão.

Ensinou.
Aprendeu.
Desesperou-se.
Mas ao final, tudo deu certo.

Amanheceu envolvida naqueles galhos da árvore frutífera. Alimentou-se e lhe fez companhia, até o momento em que os olhares pousaram um no outro, outra vez.



“Volte...”



“Fique...”



A mulher nua com asas nas omoplatas considerou a aurora que vinha inocente através daquele rosto casto e alvo. Ele era realmente lindo e nu, (da mesma nudez que a dela). Tanto tempo se passara até que estivessem prontos um para o outro.

No labirinto das fontes, foi Ele quem deu o primeiro passo. E Ela o aceitou, (como o aceitaria sempre).


***


Criança-Vicente acordara agitado naquela manhã. Sabia ele que dessa vez não teria como fugir. Aquele velho espantalho pendurado em suas coisas teria de ceder lugar ao seu novo campo de visão. Tinha medo do escuro, mas teria de atravessar aquele corredor longo e tenebroso. Faria isso sozinho?

“Mamãe, onde está você?”

Nada em resposta, além de suas próprias batidas do coração. Galopava em seu peito uma ansiedade, como se estivesse perseguido de um homem sobre si, para as caçadas...

Ao primeiro passo, avistara uma voz colada à parede esquiva daquele corredor longínquo.

“O que queres, garotinho?”

A ironia em pessoa Daquele que nada teme, persuadia Vicente a não dar outros passos...

“Desejo passar!”, deu-lhe um golpe com toda firmeza que poderia ressonar na voz infantil que ainda carregava na garganta. Com apenas seis anos, é difícil estabelecer uma real ponte entre as coisas.

Sem olhar para os lados, deu outro passo, lentamente outro, e outro...

A Aurora vinha lhe aproximando em forma desconhecida, quando ele deu de si, estava grande, (adulto, talvez?). Não sabia, mesmo se o soubesse, seus olhinhos curiosos comportavam-se como os de menino.

O mundo era-lhe sempre uma descoberta.


Passou a primeira corredeira, cacos e pedras deslizavam sobre. Levantavam tudo pelo caminho. Devastavam. Mas Ele nem piscava, não havia tempo para isso.

Um único rosto para olhar, sempre e sempre... o seu! Um cachorro morto sonâmbulo e egoísta latia sem voz entre o espaço incolor e transparente. Por falta de forças nos pulmões, que tanto secaram sem sentimentos de alguma espécie, ia pelo caminho aquele espectro envolvido de Neutro.

Permanecia colado ao isolado das coisas, levando sobre si todos os ferros que pudesse atrair e amordaçar.

Mentira!
Mentira pelo prazer e vontade da companhia egoística de estar só. Um cachorro morto a vagar pelo chumbo derretido em suas veias.

Frio.
Neblina esparsa.
Névoa molhada.
Morte.

"Vidros estilhaçados. Alguma carne foi furada, e sangra...
Qualquer pé descalço sangrando pelo caminho de fogo,
compreendia, menos aquele Ser Alvo e Doce.
Verdade e Inocência preenchiam suas tripas pensantes,
um coração enviesado,
mas que sentia Amor...
pobrezinha!"

O inocente sangue derramado chamara atenção daquele cachorro fantasmagórico, faminto de solidão e desespero. Olhos brancos, furados e vazios, cheios de ocos, as trevas e a fome de um gato. Nenhum rosto para caçar! A Verdade mantendo-se de pé como a envergadura de um bambuzal. Invariável!

Era mentira?
Egoísmo?
Ocupação do nefasto?
Ou sarcasmo?

Um prazer mórbido, roubar almas alheias e engoli-las para cuspir-lhes deformadas com a insegurança dos transeuntes... Um débil com um machado na mão arrancando o som da gargalhada. Cheios de cortes profundos e dolorosos aqueles pés-alados prosseguiam. Traduziu-se a ausência pela mentira do outro lado... Tudo desamparado... sumindo das atmosferas...

O vento fora violentado por um grito repetitivo e inaudito:
“Ele não se encontra.”

No silêncio do sono Ela experimentou o que os humanos chamavam “ódio”, algo veio junto. Um vazio da forma a acompanhava, um destruidor das coisas inanimadas e inominadas.

Depois que se recolhera para dentro de si novamente, compreendeu que aquele homem com raízes entre os dedos dos pés era Hera de si mesmo. Não havia o caminho de volta.

Ela não conhecia o que os humanos chamavam “medo”. E agora o fio condutor para àquele círculo perfeito, se perdera...

“Covardia” era o nome-humano. Como um reflexo disforme, os anelados sobre o lago iam se afastando, carregando junto cada palavra, olhares, gestos, silêncios, mudez, pranto e espera...

Os humanos, não havia matemática nem hermética. Rosnavam em nome do Cântico de flautas, e não ouviam nenhuma Música de sua voz – o vento.

Àquele estado das coisas, Ela abriu a porta e saiu. Mosaicos sobre os ares.

“A única coisa ensinada por inteiro foi aquilo que os homens chamavam desprezo...”


Como era Ave Que não Se Sabe o Nome,
Então Ela virou-se para o Nascente:

“Pedaços inteiros a partir de agora ou, Nada...”



(Fim)



Escrito por: Katiuscia de Sá
Em: 18 de setembro de 2009.

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