
Xandaua Rauani era tão pequenino diante daquelas estruturas orgânicas de raízes amplas e rasteiras, que chegava mesmo a confundir-se com a imensidão do solo. Com seus passinhos apressados reconhecia o terreno, e desde que nascera de seu casulo, compreendia a linguagem que irmanava de árvore para árvore; de bicho para bicho; tal inseto para inseto. O pequeno Rauani sabia ouvir a chuva e compreender a copa das árvores irmanadas pelas folhas dadas a protegerem as riquezas líquidas, vegetais, animal e mineral contidos naquele solo vastíssimo.
Grandes filtros verdes selecionavam a luz do sol como também os pingos da chuva que chegavam até o solo sagrado da floresta. Sim, sagrado! Dali dependiam inúmeras formas de vida da terra, da água e do ar. Sabiamente as irmãs-árvores protegiam-se, nascendo estas à distancia necessária para não intervirem na liberdade de sobrevivência de outra irmã-árvore; entretanto eram dependentes da cooperação nativa e também alimentavam uma imensa população de macaquinhos; guarás; garças; onças; periquitos; papagaios; serpentes; peixes, peixinhos e peixões; borboletinhas; insetos e tantos outras espécies que prescindiam daquele ecossistema integral e equilibrado. Todas as espécies enxergavam-se e mesmo soprando músicas diferentes, todos cantavam uma mesma cação, chamada VIDA.
Um dia Xandaua Rauani passeava apressadinho consumido pelas suas perninhas, quando ouviu um acorde diferente da costumeira canção da floresta. Uma coisa grande brilhava ao rebater a luz do sol na sua pele dura e lisa, de um amarelo iluminado, porém sem vida nas veias. Dentro destas, passava gasolina.
Como um dragão metálico a amarela coisa arrastava tudo que via pela frente. Não sabia ouvir canção nenhuma: nem de harmonia, nem de desespero. Galhos despencavam e juntos caiam ao chão. Eram esmagados ninhos de passarinhos, pequenos animais, e quem mais ali estivesse desprevenido.
Um choro-canção sem lágrimas nos olhos era derramado numa gritaria atônita dos troncos partidos; das aves aflitas; dos macaquinhos perdidos. Uma canção tocada em uníssono pelos olhos dos bichos que não sabiam chorar, nem derramar lágrimas pelos olhos... uma aflição intensa longe da civilização dos homens. Um pedido de socorro que os humanos não compreendiam.
Após esse acorde dissonante, o que estivesse deitado ainda sofreria mais, com o fogo ateado. E os animais, que nem haviam recuperado o fôlego da primeira trombeta, imergiram num ardume das peles, dos pelos e das penas, perdidos naquela quentura da fumaça estalada e quebradiça. Mais dor vindo daquelas queimadas. Ardiam suas vidas sem poderem derramar lágrimas nos olhos. Pelo pensamento da maioria dos humanos, os bichos e as florestas não têm sentimentos...
O pequeno Rauani ainda sobrou um pedaço de si, e sem derramar lágrimas nos olhos, seu último lume foi ver o terreno queimado por completo e as cinzas arrastadas pelos pingos da chuva. Uma chuva tão intensa, tão profunda e solene. Vinham do céu as lágrimas dos bichos e das árvores que não sabiam chorar...
Como uma maldição, o terreno devastado para dar lugar a pastos e plantações, não servia para nada, porque o solo rico da floresta só era rico quando mantinha sobre si toda aquela orquestra cantando VIDA. E a chuva chorada lavou os restos que poderiam reavivar a fertilidade do chão, indo depositar excesso de objetos nos leitos dos rios, que também agonizavam plantinhas aquáticas e os peixes sufocados com excessos de tristezas e devastação de cima do solo.
Diante daquela frustração incontida, os humanos retornaram para dentro das coisas amarelas, indo embora deixando silêncio e morte aonde antes se ouvia a música da vida. Somente o vento e a chuva sobreviveram testemunhando que um dia naquele terreno nu, ouviu-se a Canção de Xandaua.
Katiuscia de Sá
16 de novembro de 2010.
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*Este texto foi escrito sob encomenda de um ambientalista.
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