“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

O DIÁRIO DE MAGAHLLI (01)


O DIÁRIO DE MAGAHLLI
(ficção)

Hoje é o dia de meu nascimento. De acordo com o combinado, serei masculino, não pela força física, mas pelos ensinamentos. Como mulher eu não poderia acumular os conhecimentos que vim buscar. Não conheço o lugar para onde irei. Apenas sei que se trata de uma terra bastante atrasada, sem grandes tecnologias. O que deverei desenvolver são habilidades manuais e meus sentidos. Viverei pouco, devido a expectativa de vida ser deficiente. Não há medicina avançada, apenas ervas, rezas e curandeiras. Algumas mulheres sabem ler a Natureza e fazer adivinhações. Durante todas as gerações em que nascerei neste lugar, serei sempre desta raça. “Os Filhos das Estrelas”, como nos chamarão.
(...)
Quando eu abri meus olhos, já estava como nascido, envolvido por um tecido quente, grosso; sob os olhos atentos de minha mãe mortal. Era noite. Todos cantavam e dançavam em minha homenagem. Deram-me três nomes: um secreto (soprado ao meu ouvido pela minha mãe Yordana, no momento de meu nascimento); outro pelo qual eu seria conhecido e o nome de Meu clã. Então eu me chamava: Hanniel Azã. Pertencia à Tribo Média. A geografia para meu povo de nascimento não importava muito, vivíamos de um lado a outro. O céu era nosso teto, a terra nossa pátria e a Liberdade nossa religião.

Quando alcancei a idade de dez anos, já tinha percorrido mais de vinte localidades. Já nesta minha primeira vida desenvolvi ao máximo minhas capacidades corporais e junto a ela, minha autoconfiança – traço fortíssimo que atravessaria séculos e séculos amadurecendo cada vez mais em mim.

Tive três irmãos antes de minha chegada. Um deles foi capturado pelos bárbaros do ocidente. Minha mãe Yordana nunca o chorou... restaram-me Sindel e András. Aprendi muito com Sindel, ele era bastante sorridente e paciente comigo. Ensinou-me a dançar, a caminhar elegantemente, consertar as carroças e a montar a cavalo. András era namorador..., com ele apenas aprendi a perder-me nos mistérios da moças da nossa tribo. Não vivi o suficiente para conhecer a fundo o coração de uma mulher (embora viesse a ser uma da segunda vez em que nasci).

No dia da minha morte meu povo todo estava junto de mim. Não senti medo, apenas saudade de deixar meus queridos irmãos e minha mãe. Meu pai falava pouco. Educou-me apenas com o olhar. Com ele aprendi a importância e o respeito que deveríamos ter com os mais velhos da tribo. Sabia que qualquer decisão importante eu deveria pedir a opinião de minhas tias mais velhas. Antes de meu último suspiro, adentrei nos olhos de minha mãe Yordana, naquele momento soube que nas minhas demais vindas, nunca mais nos encontraríamos. Yordana era única! Bela e silenciosa. Uma mulher da Terra: rígida e sóbria. Eu nasceria bastante sob o signo das Candeias ou algo equivalente. Nesta vida eu pertencia às Águas. Em muitas outras ao Ar. Minha eterna busca seria a emoção: como compreendê-la, expressá-la e falar através dela. Ser-me-ia uma caminhada extensa e difícil, porque somente uma estrela conhece o brilho de outra irmã. E eu passaria muitos séculos só, nesta terra até encontrar outras estrelas.

Pedi para Sindel, no dia de minha primeira morte, para que ele estivesse sempre próximo de mim. Encontramo-nos em várias outras vidas: ele na forma de algum parente ou mesmo como meu fraterno novamente. Caminhávamos juntos. Minha primeira morte aconteceu devido à picada de cobra. O veneno era forte e sem cura. Todos estavam resignados e presentes. A fogueira estava linda, as estrelas no céu sorriam para mim enquanto me aguardavam a chegada. E junto com o sopro da noite, fechei os olhos abrindo-os para uma neblina morna, onde muitos braços me acolhiam e muitos rostos reluziam felicidade ao me reencontrar. Fui com Eles sem olhar para trás.

Depois de muito tempo passado, aceitei minha segunda descida. Seria feminina desta vez. Explicaram-me que minha natureza errante e mambembe proveniente de meu primeiro nascimento, estaria grafado em mim para sempre. Nasci novamente. Também era noite, como da primeira vez. A carroça estava em movimento. Meu povo fugia de uma perseguição. Atravessávamos fronteiras e não nos importávamos com os olhares assustados e desconfiados sobre nós.

Chegamos à região da Gália. Eu era pequenina e de olhos brilhantes. Tinha cabelos cor de cobre. Meu pai era corpulento e usava umas costeletas, ele e minha mãe tinham cabelos de sol poente iguais aos meus. Eu era uma criança sorridente; e com isso encantava a todos. Aos seis anos eu já sabia a arte da quiromancia, somente as cartas que eu tinha preguiça... gostava de dançar e tocar castanholas. Não cheguei a conhecer homens nessa minha existência, morri ainda mocinha. Perseguiam ferozmente meu povo, quando atravessávamos uma região. Chamavam-nos de bruxos e ladrões. Foi um período tão triste, perdurando ainda alguns séculos. Eu e outras mulheres de meu povo fomos queimadas vivas.

Foi aterrorizante sentir o ardume em meus pés, subindo pelas minhas pernas. Senti quentura tão intensa, a ponto de amortecer a própria dor. E os pulmões esquentando com a fumaça respirada. Como milhares de espinhos espetados ao mesmo tempo, meu corpo ia pertencendo ao fogo, até eu não sentir mais nada, senão a nobreza do espírito partindo. Antes de fechar meus olhos ainda pude contemplar os olhares endemoniados das pessoas que vibravam de alegria em me ver queimar na fogueira... essa foi minha segunda morte. Ao abrir meus olhos , toda aquela dor promovida pelo fogo foi substituída por uma leveza inexplicável. Flutuava. Estava eu um pouquinho em cada lugar e em cada individuo que se encontrava ali presente, à espera de minha chegada.

Foi a partir de minha primeira morte na fogueira que meu sinal etéreo localizado em meu antebraço se permaneceria. Através dele eu receberia, em vidas posteriores, toda a informação estelar-genético-psiquíca e implantes necessários para minha evolução. A marca nesse local de meu invólucro terrestre, serviria como uma espécie de “aviso” para que eu sempre lembrasse do que eu vinha fazer.

(...)
Quando eu nasci pela terceira vez, essa loucura de queimar gente viva em fogueiras nas praças públicas, ainda era vigente. A este costume bizarro atrelou-se outro: líderes religiosos impregnaram a mente da população sobre a idéia de que tomar banho era uma atitude impura diante do deus deles. Só podiam banhar-se vestidos, e poucas vezes durante a semana, pois tocar no corpo nu era pecado gravíssimo. Isso atraiu tanta sujeira e doenças em massa na população das aldeias e cidadelas, ocasionando uma grande peste que assolava regiões. Houve muita morte e paranóia durante esse período. Ainda perseguiam meu povo, e sem piedade nos matavam enforcados ou queimados em fogueiras. Foi assim que eu morri pela terceira vez, entretanto, não senti o ardume do fogo em meu corpo, não ouvia nada, não senti dor. Apenas completei minha Travessia, e estavam novamente à minha espera. Então pedi para não retornar tão cedo. Sendo assim, eu deveria ser levada para outra Nave, e desse modo aconteceu.

No novo lugar onde fiquei, eu deveria estudar. Freqüentava várias turmas. Estudava e era instruída sobre diversas coisas, dentre elas Desenho; Pintura; Escultura; Linguagens; Ética; Filosofia; E(x)oterismo; Física Quântica. A finalidade disto tudo era fortalecer o espírito para retornar. Nas diversas vidas todos nós que estudávamos poríamos o que aprendemos à prova. E do aluno que mais aprendia, simplesmente era mais exigido... eram muitas turmas, e muitíssimos alunos. Poucos chegavam à turma especial. Eu consegui chegar, nesse tempo em que deixei de nascer. Antes, freqüentei uma turma onde os professores nos ensinavam sobre diversas artes místicas e naturais. Em uma delas eu soube que meu Xamã era um falcão. Meu mestre era másculo e tinha a pele avermelhada, com olhos firmes e com a mente absolutamente segura, instruía-nos.

Durante o período em que fiquei em minha última turma de estudos, éramos apenas Pensamento. Cada um de nós era uma luz. Rodeávamos a Luz Suprema que nos transmitia conhecimento. A linguagem comum naquele estado era a serenidade. Assim nos comunicávamos. Não tínhamos aparência de nada, éramos apenas luz. Após essa etapa, não tínhamos desculpas. Teríamos que nascer novamente. Partiram primeiro, dois de nós. Eu e mais dois permanecíamos na Nave, orientando os que tinham ido a nossa frente. Era uma jornada difícil, mas todos tínhamos de retomá-la novamente, sendo nossa única chave e lembrança vaga, as cicatrizes no antebraço.

Deste meu nascimento não me recordo muito, não foi registrado muita coisa, pois eu somente nasci para poder receber os implantes e não interessava o que eu deixava de fazer em estado de nascido. Eu me lembro que era feminina e que fazia trabalhos braçais, e que um dia vaguei pelas ruas, escoltadas pelas luzes amarelas a gás que iluminavam as ruas. Era noite alta e chovia bastante. Em meu peito havia alguma lembrança de quem eu era, mas nada definitivo. Apenas sentia toda uma civilização viver dentro de mim. Nessa época era comum eu mudar de lugar freqüentemente. Nunca entendi esse nomadismo num período histórico que não comportava mais tal comportamento. Ainda assim, mudava-me repetidas vezes, e no meu rosto sempre aqueles olhos de coelho.

Nesta vida eu me lembrava de algumas sensações, e aos poucos intuía coisas sobre mim. Ainda havia nascido uma terra atrasada. Existiam indivíduos que temiam gente com olhos de coelho, eu mesma ainda não percebia que carregava olhos de coelho na minha face... os homens da cidade sabiam que as mulheres com olhos de coelho conheciam a alma das pessoas. Achavam eles que tais mulheres engendravam feitiços que as impediam de serem enganadas.

Eu tinha nascido com olhos de coelho e estava longe de meu povo, contudo, minhas raízes permaneciam latentes dentro de mim. Há esse tempo na Terra havia certos avanços tecnológicos, mas nada comparado às outras Naves. A Terra ainda era orgânica, comparado as demais Naves etéreas com seus moradores também neste estado de vida. Nestas Naves muitos outros indivíduos se dirigiam para completarem seu aprendizado. Uma vez cai numa Nave dessas, e lá estudávamos Alquimia, ficávamos tão antigos por dentro, carregando um fogo de três cores, era essa nostalgia que conferia-nos os olhos de coellho...

Ainda me lembro do dia de minha morte: estava abaixada regando meu jardim, quando se aproximaram três guardas. Era atardinha. Corujas começavam a piar. Minha casa ficava afastada da vila, e os guardas pediram para eu levantar meu rosto e olhar para eles. De repente pararam de sorrir e um deles disse que eu tinha olhos de coelho, sacou uma lança atravessando-a pelo meu ventre. Ali mesmo fiquei. Fiz novamente a travessia, esta foi de forma brusca. Do outro lado sempre havia quem me aguardasse de braços abertos. Fui com Eles para um local onde pudesse recuperar-me da lança atravessada. Permaneci algum tempo restabelecendo minhas energias antes de nascer outra vez.

(...)
“Michael Kodosh” seria meu nome de batismo. Nasci forte e com saúde. O país era frio, repleto de construções coloridas. A população era sólida de olhos avançados e cabelos escuros, uns poucos tinham cabelos de cobre, mas grande parcela da população era maciça como o aço. Meus dentes eram miúdos e todos certinhos. Tinha mãos fortes condizentes com meu oficio de sapateiro, que aprendi com meu pai. Tive muitos primos, dentre eles meu querido irmão da primeira vida (Sindel). Nessa estadia fui razoavelmente feliz. Morri com idade avançada. Tive três esposas, fiquei viúvo duas vezes, e minha terceira mulher enterrou-me num cemitério próximo ao castelo do Czar, onde minhas duas primeiras esposas jaziam. Era intrigante, mesmo desligado de meu “Povo das Estrelas”, de algum modo sabia reconhecê-los, caso encontrasse um. Não era pelo seu traje, nem por algum outro tipo de sinal. Sentíamos no tórax um filamento quente de emoção sem igual. Como uma União com o Cosmos. Era desse modo que nos reconhecíamos.

(continua...)

Katiuscia de Sá
Belém/Pa, Novembro de 2010
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O DIÁRIO DE MAGAHLLI - parte 02

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