*com imensas saudades,
para meu avô Benedito Benício de Sá, in memoriam.
Meu avô tinha olhos verdes; uns verdes que mudavam de cor. Eu
adorava contemplá-los quando criança. Às vezes estavam verde-translucido tipo as
águas do oceano confortáveis em algum laguinho refletindo o musgo pregado às
pedras marinhas. Outros momentos ficavam verde-rubi tão determinados e fortes, umas
folhas selvagens dos tajás amazônicos. Outros momentos beiravam um azul tão
fraquinho que pareciam morrer na vastidão
do céu ao meio-dia bem próximo ao sol... adorava entrar nos olhos de meu
avô. Suas cores me fascinavam; se de pertinho, eu conseguia perceber ainda ao
redor da íris uns pontinhos luminosos de castanhos pingados em círculos como
risquinhos finos e tênues da cor doce e malcriada de rapa-dura.
Aprendi a decifrar os sentimentos de meu avô apenas
observando-lhe a cor dos olhos. Secretamente eu brincava na minha imaginação de
criança que meu avô era um camaleão disfarçado de gente, e que suas emoções estavam
nos olhos, e não em outros lugares ou falas. Portanto, eu só acreditava nele
quando o olhava bem fundo e raptava seus olhos para mim.
Quando estava feliz, meu avô carregava no rosto seus dois
pedacinhos de céu junto ao sol do meio dia. Quanto mais feliz... mais azul a
sumir nos brancos; o mesmo acontecia na outra extremidade do sentimento. A raiva
de meu avô também era azul enamorado do sol do meio dia. O que diferenciava do azul-feliz,
eram-lhe as feições e a mimese corporal. Quando com raiva seus gestos eram mais
contidos e ríspidos, precisos no espaço, então ele ficava tenso e alerta. Frequentemente
quando estava assim, ele não nos dirigia a palavra a mim e ao meu irmão... com
o passar do tempo percebi que era para não despejar raiva em pessoas que não tinham
nada haver com aquilo. Aprendi com ele.
Meu avô era tão amado por mim e meu irmão; se estávamos soltos
de nossos afazeres infantis, corríamos para sua companhia. Às vezes passávamos horas
sem falar, apenas sentindo a presença uns dos outros e nisso emaranhávamos nossas
almas nos instantes que hoje trago dentro de mim feito saudade e também força
para seguir adiante colocando em prática tudo que aprendi com o velho Bené.
Vôzinho era do tipo contemplativo. Quando fechado em seus
pensamentos, seus olhos eram verde-tajá, tão selvagens e arredios quanto animal
perseguido. Ficavam assim na tristeza e saudade de sua terra-natal nos confins
do sertão nordestino onde o chão rachava em pequeninos canyons. Igualmente seco
e árido ele se mostrava ao exterior. Sentia-lhe o pesar também de vê-lo
andando a penumbra pelos cantos da casa, tentando fugir de si mesmo... e hoje
(mais do que nunca) partilho esse sentimento de desterro.
Há períodos mais que outros em que bate uma saudade dos
dois, meus avós... mas acho que vivi tão
intensamente com eles, fiz tantas travessuras, tantos dengos e choros... que
nada ficou dito pelo não dito. Eles sempre foram muito francos e transparentes como
águas cristalinas do sereno silencioso e solitário. Aprecio gente assim, e
assim eu cresci e enfrento o mundo. Um eterno outono nos olhos.
Katiuscia de Sá
Entre: 12 a 16 de outubro de 2012
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