“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

terça-feira, 16 de outubro de 2012

OLHOS VERDES


*com imensas saudades, para meu avô Benedito Benício de Sá, in memoriam.

Meu avô tinha olhos verdes; uns verdes que mudavam de cor. Eu adorava contemplá-los quando criança. Às vezes estavam verde-translucido tipo as águas do oceano confortáveis em algum laguinho refletindo o musgo pregado às pedras marinhas. Outros momentos ficavam verde-rubi tão determinados e fortes, umas folhas selvagens dos tajás amazônicos. Outros momentos beiravam um azul tão fraquinho que pareciam morrer na vastidão  do céu ao meio-dia bem próximo ao sol... adorava entrar nos olhos de meu avô. Suas cores me fascinavam; se de pertinho, eu conseguia perceber ainda ao redor da íris uns pontinhos luminosos de castanhos pingados em círculos como risquinhos finos e tênues da cor doce e malcriada de rapa-dura.

Aprendi a decifrar os sentimentos de meu avô apenas observando-lhe a cor dos olhos. Secretamente eu brincava na minha imaginação de criança que meu avô era um camaleão disfarçado de gente, e que suas emoções estavam nos olhos, e não em outros lugares ou falas. Portanto, eu só acreditava nele quando o olhava bem fundo e raptava seus olhos para mim.

Quando estava feliz, meu avô carregava no rosto seus dois pedacinhos de céu junto ao sol do meio dia. Quanto mais feliz... mais azul a sumir nos brancos; o mesmo acontecia na outra extremidade do sentimento. A raiva de meu avô também era azul enamorado do sol do meio dia. O que diferenciava do azul-feliz, eram-lhe as feições e a mimese corporal. Quando com raiva seus gestos eram mais contidos e ríspidos, precisos no espaço, então ele ficava tenso e alerta. Frequentemente quando estava assim, ele não nos dirigia a palavra a mim e ao meu irmão... com o passar do tempo percebi que era para não despejar raiva em pessoas que não tinham nada haver com aquilo. Aprendi com ele.

Meu avô era tão amado por mim e meu irmão; se estávamos soltos de nossos afazeres infantis, corríamos para sua companhia. Às vezes passávamos horas sem falar, apenas sentindo a presença uns dos outros e nisso emaranhávamos nossas almas nos instantes que hoje trago dentro de mim feito saudade e também força para seguir adiante colocando em prática tudo que aprendi com o velho Bené.

Vôzinho era do tipo contemplativo. Quando fechado em seus pensamentos, seus olhos eram verde-tajá, tão selvagens e arredios quanto animal perseguido. Ficavam assim na tristeza e saudade de sua terra-natal nos confins do sertão nordestino onde o chão rachava em pequeninos canyons. Igualmente seco e árido ele se mostrava ao exterior. Sentia-lhe o pesar também de vê-lo andando a penumbra pelos cantos da casa, tentando fugir de si mesmo... e hoje (mais do que nunca) partilho esse sentimento de desterro.

Há períodos mais que outros em que bate uma saudade dos dois, meus avós...  mas acho que vivi tão intensamente com eles, fiz tantas travessuras, tantos dengos e choros... que nada ficou dito pelo não dito. Eles sempre foram muito francos e transparentes como águas cristalinas do sereno silencioso e solitário. Aprecio gente assim, e assim eu cresci e enfrento o mundo. Um eterno outono nos olhos.


Katiuscia de Sá
Entre: 12 a 16 de outubro de 2012

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