
As pernas quebradas numa quebrada de esquina esqueciam-se dos sapatos jogados à beira do asfalto esburacado. Na sarjeta, um dedo fora do lugar; a outra mão, também arremessada.
O povo inerte.
O espetáculo formado!
Grandes olhos curiosos sobre o cadáver. Tiraram-lhe uma nota de R$2,00 das algibeiras. Ainda viram a foto da mãe dele no interior da carteira.
“Olha só... servem os sapatos...” Avistaram também um relógio no pulso esquerdo. Até ele não sobreviveu frente aos atentos de plantão. Haja o povo, olhar. Muitos olhos famintos... Famintos de tinta vermelha em suas vidas preto e branco.
A viatura chegou. Os homens cobriram com uma lona furada o corpo estirado. Mas o povo continuava olhando...
Em vida José queria ser artista de TV para que olhassem por ele... Na sua morte pôde ter os olhos do povo, pelo menos. Ali ficou estirado durante quatro horas, sendo o ponto central do mórbido espetáculo que a população, misteriosamente, adorava olhar. A TV local também foi filmar José.
O rabecão do IML chegou! Acabou o sonho de José em ser (re)conhecido. Talvez sentisse falta das palmas; o povo virou-se de costas rumo ao normal cotidiano sem vida ao qual já estava acostumado. E José, como ninguém fora reconhecer o corpo, foi enterrado como indigente.
Ah! Seus sapatos saqueados do local do acidente, ainda vivem... Hoje protegem os pés de um adolescente, o mesmo que lhe tirou os R$2,00 das algibeiras. Na ocasião foi comprar pães para alimentar seus irmãos menores que, naquele dia, também estavam vendo o corpo de José estirado no chão...
Hellen Katiuscia de Sá
23 de abril de 2006.
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