“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

quarta-feira, 25 de dezembro de 2013

A Música de Deus



“De onde vem essa revolucionária associação entre a matemática e o divino? Uma das primeiras descobertas dos pitagóricos, em geral atribuída ao próprio Pitágoras, foi a relação entre intervalos musicais e proporções numéricas simples. Os intervalos básicos da música grega podem ser expressos como razões entre os números inteiros 1, 2, 3 e 4. O tom de uma lira (ou, para nós, de um violão), quando ferimos uma corda apertando-a na metade de seu comprimento, é uma oitava mais alto do que o tom da corda soando livremente; se ferimos a corda apertando-a a 2/3 do seu comprimento, o tom é uma quinta mais alto; a 3/4, uma quarta mais alto. Com isso, os pitagóricos mostraram que era possível construir toda a escala musical com base em razões simples entre números inteiros; números, e razões simples entre eles, explicavam por que certos sons eram agradáveis aos ouvidos, enquanto outros eram desagradáveis.13 A matemática passa a ser associada à estética, os números, à beleza. Essa descoberta tem uma enorme importância histórica: pela primeira vez a matemática é usada para descrever uma experiência sensorial, ou seja, como veículo de estudo da mente humana. Em inúmeros rituais do passado e do presente, a música sempre foi utilizada para induzir estados de transe capazes de abrir as portas da percepção espiritual. Para os pitagóricos, a explicação para esse poder mágico da música estava nos números. A sensação de harmonia não se devia simplesmente a sons agradáveis aos ouvidos, e sim a números dançando de acordo com relações matemáticas. Os números também eram representados por formas geométricas. Por exemplo, o número 4 era um quadrado (imagine os quatro vértices de um quadrado), enquanto o número 6 era associado a um triângulo (imagine os três vértices de um triângulo e adicione um ponto no meio da linha que une os três vértices). A adição de números quadrados produz números quadrados ou retangulares, como em 4 + 4 = 8, e a série de números quadrados é obtida adicionando números ímpares sucessivamente, 1 + 3 = 4 + 5 = 9 + 7=16 + 9 = 25, e assim por diante. Essas relações entre números e formas geométricas levaram à descoberta do famoso teorema de Pitagoras: a soma dos quadrados dos catetos de um triângulo retângulo é igual ao quadrado da hipotenusa. Curiosamente, parece que Pitagoras não foi o responsável pela invenção desse teorema. Para os pitagóricos o número 10 era considerado mágico. Eles o chamavam de tetraktys (nome derivado do número 4), já que podia ser obtido ao somarmos os quatro primeiros números, 1 + 2 + 3 + 4=10. Note que esses são precisamente os números envolvidos nas escalas musicais, o que, para os pitagóricos, não era nenhuma coincidência; apenas o número sacro é capaz de descrever a verdadeira natureza da harmonia. E aqui os pitagóricos dão um passo gigantesco em direção ao desenvolvimento das ideias que podemos chamar de precursoras da ciência moderna: eles estenderam sua noção abstrata da harmonia dos fenômenos que ocorrem na escala humana aos fenômenos na. Escala celeste. Segundo os pitagóricos, o Sol e os planetas, com sua beleza majestosa, devem satisfazer às mesmas leis harmônicas que induzem a comunhão dos humanos com o divino através da música. Eles acreditavam que as distâncias entre os planetas devem obedecer às mesmas razões entre números inteiros satisfeitas pelas notas da escala musical. Ao girar em torno da Terra em suas órbitas, o Sol e os planetas gerariam uma melodia cósmica, o sistema solar se transformando em um gigantesco instrumento que ressonaria a música divina, a harmonia das esferas celestes. Aparentemente, apenas o Mestre era capaz de ouvir a música celeste. Isso, no entanto, não representava um problema para os pitagóricos, que respondiam orgulhosos que “o que acontece com os homens é o que acontece com o ferreiro, tão acostumado com o constante bater de seu martelo que nem é mais capaz de ouvi-lo”. Como nascemos ouvindo a música das esferas, somos incapazes de ouvi-la. Sejamos ou não surdos para as harmonias celestes, o que é crucial aqui é que os pitagóricos iniciaram uma nova tradição no pensamento ocidental, a busca de relações matemáticas que descrevem fenômenos naturais. Essa busca representa a essência das ciências físicas”. 

['A Dança do Universo: dos mitos da Criação ao Big Bang' – Marcelo Gleiser, pg. 55 – 57]



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