Com seu olhar vítreo, seguia adiante os passos pelo quarto
quase prisão. Não sabia o que mais lhe perturbava: se o som insistente do corvo
que rodopiava sobre si, ou se as ondas do mar quebrando nas encostas que lhe
vinham sorrir nos ouvidos. O fato era que aquele ar do dia sombrio e sem peles,
o aborrecia profundamente. E mesmo tendo as energias arrefecidas de seu corpo,
sentia muita vontade de permanecer acordado com medo que pudesse dormir para
sempre.
Das janelas de seu quarto, no terceiro pavilhão do castelo,
ele erguia para o alto aqueles olhos petrificados e cheios de morte... não
teria coragem de jogar-se e ir morrer amparado junto às flores do jardim. Tinha
pena de amassar aquelas preciosas e delicadas coisinhas amarelas que lhe
sorriam todas as manhãs. Aliás, eram as poucas coisas que ainda lhe traziam
alegria ao coração – aquelas flores amarelas.
Foi numa tarde cheia de ares modorrentos, que esse paciente
escapou das vistas de todos os enfermeiros daquele pavilhão. Parecia até que a
luz do Espírito Santo veio-lhe pessoalmente resgatar daquele sanatório, cuja
medicina em pleno 1879 era comparável às piores ideias sobre o Inferno... os
pacientes mais pareciam ter sido esquecidos à beira do tormento e do desespero
de suas proporias vidas.
Alguns pacientes libertavam seus estados vitais através de
vômitos de sangue... outros pelo simples sono profundo perdidos para sempre
dentro de si... mas Marcel, não! Ele queria algo mais. Queria sair daquelas
paredes com a sensação de preciosidade. Como se fosse uma joia a ser batizada
pela luz de uma manhã de verão. Marcel não queria tirar a própria vida, e sim
que a vida o convidasse a seguir junto com ela. Suportou todos os choques
elétricos... todos as injeções de morfinas, todos os confinamentos.
Como um pássaro voando na chuva sem ter onde pousar, sua
sanidade ia e vinha aos tropeços, feito passos de um bêbado. Quase como um
estranho sol a despontar na quina do céu, aquele homem que antes tinha tudo na
vida... agora tão abjeto que nem a si mesmo sabia ser quem fosse. Todos os dias
eram vazios, como o vazio refletido em seus olhos vítreos.
Naquela tarde quando pela janela de seu quarto avistara
aquelas flores amarelas a lhes sorrir, feito serpente d’água, um lampejo de
lembrança brilhou em Marcel. Ele amara um dia... e amara sobretudo a si mesmo. Entretanto,
por força da vida que ninguém entende o porquê de certas coisas, tropeçou e
bateu com a cabeça na calçada. Ao acordar não sabia mais quem era nem seria mais
o mesmo d’antes. Não tiveram os familiares de Marcel outra opção senão
abandoná-lo ao Sanatório.
Esgueirando-se feito um réptil pelas pedras do castelo rente
às sombras, Marcel ganhava o jardim... seus olhos quase cegos ao encontro da
luz do dia, não suportaram... choraram ao abraçar tanta luz outrora esquecida. E
cada passo bêbado dado indo em direção às flores amarelas, Marcel sentia que
flutuava...
Nem deu tempo dos enfermeiros chamarem os médicos, Marcel já
havia sido abraçado pelo jardim abaixo do seu quarto. As grades foram
arrancadas num instante sobrenatural de fúria, e Marcel caminhou pelo espaço,
tão maravilhado, não percebendo que seus pés e seu corpo foram arremessados. Ele,
por fim... agora ele pôde fechar aqueles olhos petrificados. Dormia em paz, como
nunca poderia em vida.
Katiuscia de Sá
Escrito em: 29 de janeiro e 02 de fevereiro de 2014.
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