“o poeta é com efeito coisa leve, santa e alada; só é capaz de criar quando se transforma num indivíduo que a divindade habita e que, perdendo a cabeça, fica inteiramente fora de si mesmo. Sem que essa possessão se produza, nenhum ser humano será capaz de criar ou vaticinar.” [Platão]

domingo, 2 de fevereiro de 2014

Para Edgar Allan Poe – VI (conto)


Com seu olhar vítreo, seguia adiante os passos pelo quarto quase prisão. Não sabia o que mais lhe perturbava: se o som insistente do corvo que rodopiava sobre si, ou se as ondas do mar quebrando nas encostas que lhe vinham sorrir nos ouvidos. O fato era que aquele ar do dia sombrio e sem peles, o aborrecia profundamente. E mesmo tendo as energias arrefecidas de seu corpo, sentia muita vontade de permanecer acordado com medo que pudesse dormir para sempre.

Das janelas de seu quarto, no terceiro pavilhão do castelo, ele erguia para o alto aqueles olhos petrificados e cheios de morte... não teria coragem de jogar-se e ir morrer amparado junto às flores do jardim. Tinha pena de amassar aquelas preciosas e delicadas coisinhas amarelas que lhe sorriam todas as manhãs. Aliás, eram as poucas coisas que ainda lhe traziam alegria ao coração – aquelas flores amarelas.

Foi numa tarde cheia de ares modorrentos, que esse paciente escapou das vistas de todos os enfermeiros daquele pavilhão. Parecia até que a luz do Espírito Santo veio-lhe pessoalmente resgatar daquele sanatório, cuja medicina em pleno 1879 era comparável às piores ideias sobre o Inferno... os pacientes mais pareciam ter sido esquecidos à beira do tormento e do desespero de suas proporias vidas.

Alguns pacientes libertavam seus estados vitais através de vômitos de sangue... outros pelo simples sono profundo perdidos para sempre dentro de si... mas Marcel, não! Ele queria algo mais. Queria sair daquelas paredes com a sensação de preciosidade. Como se fosse uma joia a ser batizada pela luz de uma manhã de verão. Marcel não queria tirar a própria vida, e sim que a vida o convidasse a seguir junto com ela. Suportou todos os choques elétricos... todos as injeções de morfinas, todos os confinamentos.

Como um pássaro voando na chuva sem ter onde pousar, sua sanidade ia e vinha aos tropeços, feito passos de um bêbado. Quase como um estranho sol a despontar na quina do céu, aquele homem que antes tinha tudo na vida... agora tão abjeto que nem a si mesmo sabia ser quem fosse. Todos os dias eram vazios, como o vazio refletido em seus olhos vítreos.

Naquela tarde quando pela janela de seu quarto avistara aquelas flores amarelas a lhes sorrir, feito serpente d’água, um lampejo de lembrança brilhou em Marcel. Ele amara um dia... e amara sobretudo a si mesmo. Entretanto, por força da vida que ninguém entende o porquê de certas coisas, tropeçou e bateu com a cabeça na calçada. Ao acordar não sabia mais quem era nem seria mais o mesmo d’antes. Não tiveram os familiares de Marcel outra opção senão abandoná-lo ao Sanatório.

Esgueirando-se feito um réptil pelas pedras do castelo rente às sombras, Marcel ganhava o jardim... seus olhos quase cegos ao encontro da luz do dia, não suportaram... choraram ao abraçar tanta luz outrora esquecida. E cada passo bêbado dado indo em direção às flores amarelas, Marcel sentia que flutuava...

Nem deu tempo dos enfermeiros chamarem os médicos, Marcel já havia sido abraçado pelo jardim abaixo do seu quarto. As grades foram arrancadas num instante sobrenatural de fúria, e Marcel caminhou pelo espaço, tão maravilhado, não percebendo que seus pés e seu corpo foram arremessados. Ele, por fim... agora ele pôde fechar aqueles olhos petrificados. Dormia em paz, como nunca poderia em vida.


Katiuscia de Sá
Escrito em: 29 de janeiro e 02 de fevereiro de 2014.


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